Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidades civil e gerencial na Constituição Federal

A doutrina italiana demonstra que o desenvolvimento dogmático da responsabilidade gerencial, a qual é focada na obtenção de metas pela administração pública, em muito se beneficia das reflexões acerca da responsabilidade civil.

11/8/2022

Responsabilidade civil

No texto permanente da Constituição Federal de 1988, há o emprego da palavra responsabilidade em quarenta e uma oportunidades, observando-se, por exemplo, a) a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e aos direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII), b) os crimes de responsabilidade (arts. 29, § 3º, 50, § 2º, 52, I e II, 85), c) a responsabilidade criminal dos infratores (art. 58, § 3º) e d) o grau de responsabilidade dos cargos componentes de uma carreira (art. 39, §1º, I).

Por sua vez, o termo responsabilidade civil é utilizado literalmente nas seguintes situações: a) competência da União para explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer natureza, observando a responsabilidade civil por danos nucleares independentemente da existência culpa (art. 21, XXIII, 'd'), b) encaminhamento da apuração e das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos casos cabíveis, ao Ministério Público para que, além da responsabilidade criminal, promova a responsabilidade civil dos infratores (art. 58, § 3º), c) caráter alimentar do precatório originário de indenização por morte ou invalidez, fundada na responsabilidade civil (art. 100, § 1º), e d) responsabilidade civil dos delegatários extrajudiciais dos serviços notariais e registrais, a qual é regulamentada nos termos da lei (art. 236, § 1º). Também existe o comando constitucional de que as "pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa", segundo o artigo 37, § 6º, CF/88.

Essas cinco previsões constitucionais, que relacionam a responsabilidade civil com competências estatais e temas de direito público, confirmam a importância desse instituto no Estado Constitucional brasileiro. A adequada interpretação e a correta incidência desses dispositivos produzem importantes discussões jurídicas. Vejamos. O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a COVID-19, no Senado Federal, apresentou vinte e seis indiciamentos, versando o último acerca da responsabilidade civil. Neste item, a CPI cientifica o Ministério Público Federal de "atos de todos aqueles que, por qualquer meio, promoveram de forma sistemática a difusão do tratamento precoce e da imunidade de rebanho por contaminação natural", apontando agentes "para possível condenação a reparação de dano moral coletivo à sociedade brasileira"1. De outro lado, membros da CPI da COVID-19, no Senado Federal, atualmente criticam a atuação da Procuradoria Geral da República sobre as conclusões do relatório.

Em relação à responsabilidade civil dos notários e dos registradores, o Supremo Tribunal Federal fixou o tema 777 de repercussão geral em Recurso Extraordinário, determinando que "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa"2. Como as atividades notariais e registrais são serviços públicos delegados que devem "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos", de acordo com o artigo 1º, lei Federal 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), a indenização por eventuais danos causados aos usuários e aos terceiros ganha destaque.

Apesar dos sólidos argumentos do voto do Ministro Relator no Recurso Extraordinário nº. 842.846, parece-nos que os fundamentos do voto vencido do Ministro Luís Roberto Barroso deveriam ter prevalecido, visto que a responsabilidade civil dos notários e registradores titulares não é tratada pelo artigo 37, § 6º, e sim pelo artigo 236, § 1º, CF/88. Dessa forma, o artigo 22 da lei Federal 8.935/1994 estabeleceu a responsabilidade subjetiva, não significando, "necessariamente, transferir um ônus insuportável para o demandante, porque considero que o juiz pode perfeitamente aplicar o art. 373, § 1º, do novo Código de Processo Civil - nosso Código Fux"3. 

Eleições, responsabilidade gerencial e Constituição

A responsabilização dos governos, dos servidores públicos e das pessoas físicas e jurídicas que interagem com o Estado é da essência do Estado Democrático de Direito, o qual é fixado no art. 1º, caput, Constituição Federal de 1988 (CF/88).

As eleições livres, periódicas e competitivas, nos termos do artigo 60, § 4º, II, CF/88, que ocorrerão em 2022, possuem diversas funções sociais e jurídicas, porém a responsabilização política é elemento central. A literatura especializada descreve esse fenômeno como accountability eleitoral, sendo um instrumento necessário para a concretização da democracia constitucional e dos direitos fundamentais4.

Nesse sentido, partidos e candidatos são escrutinados à luz das atividades realizadas, dos resultados obtidos no exercício de funções e cargos públicos e das propostas apresentadas, podendo ser premiados com os votos dos eleitores ou sancionados (responsabilizados) com a ausência de votação. Interessante registrar que uma tradução comum da palavra accountability é responsabilização ou responsividade.

As responsabilidades civil, criminal e administrativa disciplinar dos agentes públicos, assim como as eleições, são relevantes no Estado Constitucional, porém são insuficientes para a efetivação do direito fundamental à boa administração pública. Nesse contexto, o direito administrativo europeu continental travou debate, pelo menos desde a década de sessenta do século passado, sobre a necessidade de a administração pública obter resultados.

Assim, três questões principais surgem: a) os objetivos constitucionais permanentes informam a estruturação da administração pública e a própria atuação de governos eleitos, b) a construção da correta relação entre administração pública e governos eleitos e c) a responsabilidade gerencial.

O constitucionalismo social prevê objetivos a serem implementados, consistindo em finalidades da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, de acordo com o artigo 3º, CF/88.

Os governos eleitos possuem liberdade parcial de conformar a atuação da administração pública, buscando concretizar os compromissos eleitorais. Por sua vez, as finalidades e as metas constitucionais do Estado inexoravelmente necessitam ser efetivadas por todos os governos. Dessa maneira, a competência constitucional do Presidente da República de exercer a direção da administração federal (art. 84, II, CF/88) não permite que o Chefe do Executivo estabeleça diretrizes, ainda que sufragadas eleitoralmente, contrárias aos objetivos e aos valores constitucionais.

De outra banda, as relações entre governos eleitos e administração pública precisa ser calibrada. De um lado, a administração pública permanece e os governos passam, não sendo eficiente e produtiva uma completa alteração dos procedimentos da administração pública com a mudança dos governantes. Também, a administração pública deve ser permeada e informada pelos programas políticos sufragados democraticamente.

Considerando a) o equilíbrio entre interesses e funções dos governos e dos membros da administração pública e b) o compromisso por resultados, cria-se a responsabilidade gerencial. Na Constituição Federal brasileira, essa modalidade específica de responsabilidade possui os contornos traçados no artigo 37, § 8º, caput: "A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade".

Trata-se de nítido mecanismo de contratualização da administração pública. A lei Federal 13.934/2019 regulamentou o artigo 37, § 8º, fixando, no artigo 2º, que o contrato de desempenho tem por objeto "o estabelecimento de metas de desempenho do supervisionado, com os respectivos prazos de execução e indicadores de qualidade, tendo como contrapartida a concessão de flexibilidades ou autonomias especiais".

Conforme escrevemos outrora e dialogando com o ordenamento jurídico italiano:

Para além da possível aplicação de mais de uma forma de responsabilização por um mesmo fato, existem, no entanto, semelhanças da responsabilidade gerencial especialmente com a responsabilidade civil por descumprimento contratual e com a responsabilidade disciplinar.

No  que  respeita  aos  pontos  de  contato  com  a  responsabilidade  contratual, observa-se  que  também  a  responsabilidade  gerencial  possui  uma  base  ou  uma estrutura contratual, pois pressupõe a existência de uma relação obrigacional entre órgão de orientação política e órgão de gestão administrativa. Apesar de os princípios que regem  e  disciplinam  a  responsabilidade  gerencial,  assim  como  os  objetivos prosseguidos, serem de caráter público, há o descumprimento (intencional ou por culpa) de obrigações de interesse público que decorrem dos deveres do cargo de gestão (gerencial)5.

A doutrina italiana demonstra que o desenvolvimento dogmático da responsabilidade gerencial, a qual é focada na obtenção de metas pela administração pública, em muito se beneficia das reflexões acerca da responsabilidade civil6.

__________

1 SENADO FEDERAL. Relatório Final da CPI da COVID-19. Aprovado pela Comissão em 26 de outubro de 2021.

2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº. 842.846 – Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 27.02.2019.

3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto do Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário nº. 842.846 – Santa Catarina, julgado em 27.02.2019, páginas 80 e 81.

4 Sobre o tema, ROBL FILHO, Ilton Norberto. Conselho Nacional de Justiça: Estado Democrático de Direito e Accountability. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 108-116.

5 CELONE, Cristiano; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A Garantia Constitucional da -Responsabilidade Gerencial-: Responsabilidade por Resultados dos Dirigentes Públicos nos Sistemas Brasileiro e Italiano e as Relações entre Órgãos Políticos e Administrativos. REVISTA JURÍDICA DA PRESIDÊNCIA, v. 21, p. 471, 2020.

6 CELONE, Cristiano. La Responsabilità Dirigenziale tra Stato ed Enti Locali. Torino: Napoli, 2018, p. 93-140.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.