Acerca da prescrição, Atalá Correia adverte que “é necessário saber em que medida o legislador pode estipular os prazos para as situações jurídicas e, além disso, é preciso definir se o julgador pode corrigir e em que extensão as soluções injustas que daí considere advindas”1.
O Código Civil fixou que (i) “a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor” (CC, art. 205) e (ii) a pretensão de reparação civil prescreve em três anos (CC, art. 206, §3º, inc. V). Tais regras representaram acentuada redução dos prazos prescricionais: o art. 177 do revogado CC/16 previa um prazo de 20 anos para essas hipóteses!
Este artigo revisitará os argumentos utilizados pelo STJ a respeito do sentido e alcance da expressão “reparação civil”, contida no inc. V do §3º do art. 206 do CC. O STJ entendeu por restringir essa expressão à responsabilidade civil extracontratual. Assim, a prescrição no caso de responsabilidade civil contratual ficou em 10 anos (EREsp 1.280.825/RJ, j. 27/6/18).
Antes dessa definição, as turmas do STJ haviam oscilado no tema.
Por um lado, havia precedentes indicando que “o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual” (CORRENTE UM)2.
Por exemplo, no REsp 1.281.594/SP, 3ª Turma, j. 22/11/16, o relator Min. Bellizze mostrou-se preocupado com a segurança, a previsibilidade e a uniformidade de tratamento dos prazos prescricionais, nos seguintes termos: “foi abordada a relevância da unificação dos prazos prescricionais, sobretudo em torno da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa, visando a garantir, nas relações jurídicas contemporâneas, maior segurança, previsibilidade e uniformidade de tratamento, se levadas em consideração pretensões que trazem em si similaridade de conteúdo e objeto, mas que dão causa a ações com as mais variadas nomenclaturas.”
Ademais, o ministro chama atenção para a importância da coerência lógica do sistema jurídico, asseverando que é “importante perceber que a sistemática adotada pelo Código Civil de 2002 (...) foi a de redução dos prazos prescricionais, visando sobretudo a garantir a segurança e a estabilização das relações jurídicas em lapso temporal mais condizente com a dinâmica natural das situações contemporâneas. Seguindo essa linha de raciocínio, não parece coerente com a lógica estabelecida pelo Código Civil de 2002 deixar prevalecer, como se regra fosse, o prazo prescricional decenal (art. 205), de caráter tão alongado, para as reparações civis decorrentes de contrato, e somente entender aplicável o lapso temporal trienal para a parte veicular judicialmente as pretensões de reparação civil no âmbito extracontratual ou de enriquecimento sem causa (art. 206, § 3º, IV e V).”
Para evitar incongruências na sistemática que envolve relações privadas, é feita interessante comparação com o prazo prescricional quinquenal estabelecido pelo CDC que regula relações em que uma das partes é vulnerável, in verbis:
“É de se notar, ademais, que nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor, editado no idos de 1990 – o qual tem como objetivo maior a tutela dos direitos de vulneráveis postos no mercado de consumo, primando, assim, pela assimetria inerente às relações jurídicas estabelecidas entre o consumidor e o fornecedor –, concede tanta elasticidade ao prazo prescricional para que o interessado busque sua pretensão de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, que, ao final, também é derivada de relação contratual. O art. 27 estabelece o lapso de cinco anos para o ajuizamento de demanda fundada em acidente de consumo, o qual é exatamente a metade do prazo previsto no art. 205 do Código Civil de 2002.
Então, por que razão o Código Civil de 2002 – editado mais de uma década após o CDC – que trouxe a tônica de prazos prescricionais reduzidos e que, em regra, regula relações jurídicas em que há paridade entre os sujeitos, admitiria interpretação no sentido de fazer preponderar o prazo prescricional de dez anos para reparação de danos atinentes a contratos que nem sequer envolvem parte vulnerável?”
Por outro lado, havia precedentes no sentido de que o prazo prescricional de 3 anos só se aplica a pretensões que veiculem reparações decorrentes da prática de ato ilícito absoluto (responsabilidade extracontratual); ao passo que as pretensões decorrentes de violações contratuais (caso não haja regra especial) se submetem ao prazo decenal (CORRENTE DOIS). Ex.: REsp 1.280.825/RJ, 4ª Turma, j. 21/6/16 (sob a relatoria da Minª Maria Isabel Gallotti).
Sob essa ótica, a pretensão para o cumprimento específico de uma obrigação prevista em uma relação contratual está sujeita ao prazo prescricional de 10 anos previsto no art. 205 do CC/02 (salvo regra especial no art. 206 do CC para o referido contrato).
Seria incongruente que, caso o credor optasse por resolver o contrato e haver perdas e danos, tivesse o prazo de sua pretensão reparatória reduzido para três anos. Ora, se as perdas e danos podem ser exigidas pela frustração no implemento da obrigação contratual específica, é sintomática a constatação de que o prazo para reparação civil contratual não pode ser inferior ao prazo para o cumprimento específico da obrigação contratual. Assim, a expressão “reparação civil” estaria mais ligada à responsabilidade extracontratual3 e, por isso, o inc. V do §3º do art. 206 do CC/02 não alcançaria as pretensões fundadas em responsabilidade civil contratual.
Contra esse argumento, o Min. Belizze, no REsp 1.281.594/SP, ao tratar das obrigações de fazer inadimplidas (nas quais o credor pode optar por exigir o cumprimento da obrigação ou a resolução do contrato, cabendo, em ambos os casos, indenização por perdas e danos, conforme dicção do art. 475 do CC/20024), ponderou que: “Nessas hipóteses, optando o credor pela resolução do contrato, com pleito de indenização por perdas e danos, a pretensão estará sujeita à regra prescricional trienal da reparação civil (art. 206, § 3º, V). Entretanto, ainda que escoado esse prazo, poderá exigir o credor o cumprimento da obrigação de fazer pelo devedor no prazo decenal do art. 205, o qual, mesmo assim, poderá ser convertido em reparação por perdas e danos, desde que verificada a impossibilidade de cumprimento da obrigação (nesse caso não estará prescrita a pretensão indenizatória porque ela só tem lugar em função da impossibilidade de cumprimento da obrigação, não mais se constituindo em faculdade do credor).”
Em reforço, no EREsp 1.280.825/RJ, o Min. Cueva asseverou que: “Não há falar também em incongruência resultante do fato de serem distintos os prazos prescricionais da pretensão de adimplemento (art. 206, §º 5º, inciso I, do CC/2002 - de cinco anos) e de reparação civil decorrente do inadimplemento da obrigação contratual (art. 206, §3º, inciso I, do CC/2002 - de três anos). Tal distinção se justifica em virtude da própria complexidade negocial que tratativas com vistas ao adimplemento tardio costuma apresentar e que não se apresentam quando o credor opta por demandar em juízo, de imediato, a própria reparação dos prejuízos que eventualmente tenha suportado em virtude do inadimplemento contratual.”
De todo modo, no que tange à adequada sistematicidade que se espera do ordenamento jurídico, a Minª Gallotti, no REsp 1.280.825/RJ, afirmou:
Reconheço, por fim, de lege ferenda, que seria imensamente conveniente a unificação dos prazos para a pretensão de reparação civil e ressarcimento de enriquecimento sem causa. Da mesma forma, associo-me à compreensão de que o atual prazo geral previsto pelo Código Civil no art. 205 não mais se revela compatível com a realidade social contemporânea, com a dinâmica das relações jurídicas e com a realidade de mercado hoje vigente, em que se urge pela rapidez e celeridade, sem se renunciar à segurança jurídica.
Bem se percebe pelas correntes contrapostas acima indicadas que o esforço dos julgadores, de uma e outra divisão, foi tentar manter coerência ao sistema jurídico. Por repetidas vezes, os julgadores apelaram para a “coerência sistemática”.
Diante de tal cenário: indaga-se: a que corrente pertence a força do melhor argumento?
Por maioria de votos, a Segunda Seção (EREsp 1.280.825/RJ) e a Corte Especial (EREsp 1.281.594/SP) firmaram-se a favor da segunda corrente: a que defende a distinção entre prazos prescricionais a depender do fundamento (contratual ou extracontratual) do dever de ressarcir.
Nos EREsp 1.280.825/RJ, a Minª Nancy Andrighi, a qual anteriormente havia votado a favor da CORRENTE UM5, admitiu que “a distinção dos prazos comporta crítica, mas diz respeito somente a uma possível alteração legislativa”. Todavia, mudou seu entendimento e conduziu a maioria no sentido de prestigiar a CORRENTE DOIS. Para ela, “do ponto de vista pragmático, também se mostra adequada a distinção dos prazos. Em contratos mais duradouros, sempre é viável e mais provável que as partes se componham de alguma maneira, de forma a evitar longas e dispendiosas disputas judiciais, o que é improvável de ocorrer na responsabilidade extracontratual.”6
Segundo Chaïm Perelman7, o direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência: (i) uma de ordem sistemática – a elaboração de uma ordem jurídica coerente; (ii) a outra, de ordem pragmática – a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque em conformidade ao que lhe parece justo e razoável. O enfrentamento do tema referente aos prazos prescricionais nas ações que envolvem responsabilidade civil (contratual e extracontratual) bem mostra o quão delicado e complexo é o esforço de se criar uma ordem jurídica coerente.
Respondendo à pergunta deste artigo quanto a que corrente pertence a força do melhor argumento, entendemos que melhor teria sido que os votos majoritários tivessem levado em consideração comparações entre o prazo prescricional trienal do art. 27 do CDC e prazo decenal do art. 205 do CC e concluído pela aplicação do prazo prescricional de três anos para ambos os casos de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual). Cabe ao legislador ou à jurisprudência futuramente revisitar o tema.
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1 CORREIA, Atalá. Prescrição e Decadência: entre passado e futuro. São Paulo: Universidade de São Paulo [Tese de Doutorado], 2020, p. 91.
2 A propósito, em termos doutrinários, nesse mesmo sentido, quando da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 9, 10 e 11 de novembro de 2011, foi aprovado o Enunciado nº 419.
3 É interessante notar que a expressão “reparação civil” aparece em três oportunidades no CC/2002 (art. 206, §3º, inc. V; art. 932 e art. 1.510-E, parágrafo único). No parágrafo único do art. 1.510-E do CC/2002, pode-se perceber que o legislador, quando trata do direito de laje, incluiu, na previsão de “reparação civil” contra o culpado ruína da construção-base, tanto hipóteses de responsabilidade contratual quanto extracontratual.
4 CC/2002, art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
5 REsp 1.281.594/SP.
6 Com relação a esse argumento, entendemos, em alinhamento com a doutrina de Atalá CORREIA (2020, p. 221), que: “O ideal é que haja um prazo uniforme para pretensões contratuais, sejam elas reparatórias ou não. Entretanto, não parece que esta situação seja mais incongruente do que atribuir à pretensão contratual de reparação prazo bastante superior àquele visto para as pretensões aquilianas. Dentre esses dois casos, se há um deles que merece prazo mais largo, trata-se da pretensão de responsabilidade extracontratual, pois o lesado, muitas vezes, deve diligenciar para descobrir o causador do dano. Na responsabilidade contratual, como é evidente, já se sabem, de antemão, os dados da contraparte e não é justo que essa situação seja premiada com prazo tão amplo quanto o decenal.”
7 PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: nova retórica; tradução Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 238.