Migalhas de Responsabilidade Civil

O ilícito e a proteção ao patrimônio dos sócios

O procedimento do incidente de desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil constitui um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais.

2/8/2022

O procedimento do incidente de desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil constitui um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais. Traz maior segurança jurídica para sócios e empresários ao impor a estrita observância ao contraditório. E evita surpresa à parte, tumulto processual. Tumulto que, não raro, é observado em alguns processos.

Se aplicada com razoabilidade, garantindo o devido processo legal e a ampla defesa, a técnica pode evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, ao trazer mecanismos para tornar ineficazes práticas ilícitas do devedor. A teoria, porém, só pode ser invocada se não estiver prescrito o crédito fraudado ou simulado.

Como evidenciado por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pretende destruir o histórico princípio da separação patrimonial da sociedade e seus sócios, mas, contrariamente, servir como mola propulsora da funcionalização da pessoa jurídica, garantindo as suas atividades e coibindo a prática de fraudes e abusos através dela".1

Há um acórdão do STJ, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, que elucida o instituto de que aqui se trata com clareza solar: “A desconsideração da personalidade jurídica tem como finalidade a superação episódica da personalidade da pessoa jurídica, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelos débitos contraídos pela empresa” (AgInt na Pet n. 12.712/SP, Terceira Turma, julgado em 23/9/2019).

A lei processual contém outra importante regra relativa à matéria, lastreada na possibilidade de que a desconsideração da pessoa jurídica se processe na forma “inversa”, adentrando ao patrimônio da sociedade para pagamento de dívida pessoal do sócio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, aliás, já se manifestou nesse sentido: “À semelhança do que ocorre na hipótese de sucessão de empresas, em que a sucessora é incluída no processo para atuar como se fosse a própria parte sucedida, a pessoa jurídica atingida pela desconsideração inversa da personalidade jurídica passa a integrar a relação processual na condição de parte” (REsp n. 1.978.261/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022).

Para Rolf Madaleno, a desconsideração inversa da personalidade jurídica só se afigura legítima quando se verifica que a sociedade "se tornou mera extensão da pessoa física do sócio". Trata-se, no entender do autor, de hipótese em que se verifica haver "abuso da personalidade física através do mau uso da pessoa jurídica".2

A observância do contraditório e da ampla defesa evitam decisões injustas e descabidas, como por exemplo, quando a pessoa jurídica não paga porque simplesmente não tem patrimônio. Ou então quando promoveu uma dissolução irregular perante a Junta Comercial, sem incorrer em fraude ou simulação. O STJ tem entendido que: "A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica" (AgInt no AREsp n. 1.797.130/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/6/2021).

Segundo Fábio Ulhoa Coelho, casos como o acima enunciado demonstram a aplicação incorreta da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Para o autor, "essa aplicação incorreta reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. Nela, adota-se o pressuposto de que o simples desatendimento de crédito titularizado perante uma sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta, seria suficiente para a imputação de responsabilidade aos sócios ou acionistas".3

Neste sentido, o STJ já afirmou que jurisprudência é pacífica no sentido de que "a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial" (AgInt no AREsp 2.021.508/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/4/2022).

O STJ também entende que, se o sócio tiver apenas um único bem imóvel que sirva de morada, não tendo outros bens penhoráveis, a penhora não pode recair sobre esse bem de família: "a mera desconsideração da personalidade jurídica não tem o condão de afastar a impenhorabilidade do bem de família regularmente constituído, ressalvado o enquadramento nas hipóteses excepcionadas em lei" (AgInt no AREsp n. 935.235/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 1/6/2020).

Decisão recente do tribunal diz também ser impossível que a desconsideração atinja o patrimônio do acionista minoritário: "A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica" (REsp n. 1.861.306/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/2/2021).

Da mesma forma entende o Tribunal de Justiça de São Paulo: "Sócio minoritário com 1% (um por cento) do capital social e sem poderes de administração que não deve responder pessoalmente pela dívida da pessoa executada e, por isso, deve ser excluído do polo passivo da relação jurídica processual" (TJSP, Agravo de Instrumento 2024937-74.2022.8.26.0000, Relatora Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, julgado em 03/06/2022).

A premissa é de que o sócio-administrador age com dolo ou culpa no ato abusivo, sendo que o sócio minoritário responde apenas excepcionalmente, ou seja, quando sua conduta omissiva ou comissiva contribuiu para a ocorrência do evento que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido vai o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Descabe a inclusão de sócio minoritário no polo passivo da execução, em razão da desconsideração da personalidade jurídica, quando não possui cargo de gestão, nem tampouco comprovado que tenha concorrido para a dissolução irregular da empresa executada" (Apelação Cível nº 70082719196, Décima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 05/03/2020).

É importante destacar, porém, que a decisão judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente resolve uma questão processual, determinando que o sócio se torne parte executada, mas não implica sua condenação.

Como destaquei em outro espaço, na companhia de Luiz Rodrigues Wambier e Regiane França Liblik,4 a desconsideração da personalidade jurídica, quando aplicada à luz das garantias fundamentais processuais, assume o valoroso papel de evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, tornando ineficazes as tentativas do devedor de fazer uso da empresa como escudo patrimonial.

É preciso, contudo, como lá afirmamos, que haja prudência na aplicação da medida, que deve ser empregada em situações excepcionais e no contexto da ordem constitucional.

__________

1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 486.

2 MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 81-82.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 4. ed. em e-book baseada na 23. ed. impressa. V. 2, p. RB-2.7.

4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; LOBO, Arthur Mendes; LIBLIK, Regiane França. Tipologia das sociedades e a desconsideração da personalidade jurídica. Revista eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, a. 12, v. 19, n. 3, p. 523-542, set./dez. 2018.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.