Migalhas de Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil do estado e dos agentes públicos: o tema 940 do STF e o caso Lula Vs Dellagnol

O julgamento do STJ que reconheceu a legitimidade do agente público para responder por danos causados ao particular, contrariando a diretriz assentada pelo STF no Tema 940 de repercussão geral.

7/7/2022

A responsabilidade civil do Estado é disciplinada pelo art. 37, § 6º, da Constituição, nos seguintes termos:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Diante disso, a doutrina e a jurisprudência firmaram entendimento no sentido de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada na teoria do risco administrativo (Meirelles, 1982, p. 622-623; Cahali, 2007, p. 40; Di Pietro, 2006, p. 600).

No entanto, o elemento subjetivo se faz presente na configuração do dever de indenizar, pois seu primeiro pressuposto é que o dano seja causado por algum agente estatal. Por via de consequência, embora a responsabilidade objetiva dispense prova da culpa, na maior parte dos casos é necessário analisar a conduta do agente para estabelecer o nexo de causalidade (Câmara, 2010, p. 87-90). Por fim, a demonstração da culpa do agente é requisito para a promoção da ação de regresso prevista no texto constitucional.

O aspecto subjetivo da responsabilidade civil do Estado comparece de maneira incisiva nos casos de agressões e ofensas pessoais praticadas por agentes públicos, nos quais a vítima se sente pessoalmente ofendida e deseja, não apenas receber uma indenização paga pelo poder público, mas acima de tudo responsabilizar o funcionário que praticou a ofensa.

Ocorre que a propositura da ação indenizatória diretamente contra o funcionário público traz alguns inconvenientes para a vítima, a começar porque fica obrigada a demonstrar a culpa do agente causador direto do dano. Fora isso, tratando-se de dano moral, o valor da indenização provavelmente será menor, uma vez que a condição econômica do agressor é um dos fatores considerados pelo juiz para fixação do montante indenizatório. Não bastasse, a vítima pode esbarrar na insolvência do agressor que, em muitos casos e até mesmo em consequência administrativa do fato lesivo, já se encontra desligado do serviço público.

De outro lado, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria um dilema para a defesa do ente público, que precisa alegar e provar que o agente público agiu regularmente a fim de afastar sua responsabilidade. Porém, posteriormente, caso a ação seja julgada procedente, terá que valer-se de argumento contrário para obter o ressarcimento em uma futura e eventual ação de regresso.

Por fim, a inclusão do agente público no polo passivo da demanda cria embaraços para o Poder Judiciário no que tange à colheita da prova e definição das responsabilidades dentro de um mesmo processo em que se discute responsabilidade objetiva e subjetiva simultaneamente.

Em razão disso, foi se construindo paulatinamente o entendimento de que o autor deve mover sua ação contra o poder público e este, posteriormente, caso seja vencido na ação, deve mover ação de regresso contra o agente causador do dano, mediante comprovação da culpa.

Tema 940 de Repercussão Geral: disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente público

Olhando para o processo evolutivo da responsabilidade civil em geral, observa-se uma tendência à objetivação, de modo que a teoria subjetiva tem aplicação restrita aos danos causados nos relacionamentos interindividuais, entre um causador e uma vítima, ao passo que a responsabilidade civil objetiva amplia seu alcance cada vez mais sobre os riscos das atividades desenvolvidas na vida em sociedade.

Essa tendência também se faz presente na seara da responsabilidade civil do Estado, que parte do reconhecimento da responsabilidade pessoal dos empregados públicos por atos contrários à lei, passando pela fase da culpa administrativa no início do século XX até alcançar a teoria do risco de administrativo nos dias atuais (Cavalcanti, 1956, p. 272-286, Cahali, 2007, p. 20-22, Meirelles, 1982, 620; Di Pietro, 2006, p. 597).

Neste percurso, também se observa uma mudança significativa do papel do agente público que, ao tempo do absolutismo, era considerado longa manus "del Rey" e, portanto, um representante do poder estatal, cujas ações se confundiam com as ações do Estado (Cavalcanti, 1956, p. 272-286). Nos dias atuais, procuramos nos distanciar da noção de agente público detentor de poder estatal, que age em nome do Estado e cuja vontade se confunde com a vontade soberana do Estado. Tendo em vista os princípios que regem a Administração Pública, particularmente o da legalidade e o da impessoalidade (CF, art. 37, caput), bem como o processo de modernização e de profissionalização dos serviços públicos, é mais correto a afirmar que os agentes públicos desempenham tarefas no âmbito das atividades públicas pelas quais o Estado responde objetivamente.

Diante dessa tendência à objetivação, torna-se a cada dia mais claro que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são desempenhadas por meio de atos e condutas de seus agentes. Logo, mostra-se inadequado demandar contra os agentes públicos que não são responsáveis pelas atividades estatais, mas apenas executam tarefas no âmbito dessas atividades. Desse modo, o agente público só pode responder ao ente público ao qual se encontra vinculado, desde que fique demonstrado que cumpriu suas tarefas de modo inadequado, irregular ou ilegal.

O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extraordinário 1.027.633/SP, no caso em que um funcionário público demandou a prefeita municipal por prática de assédio político. O juiz rejeitou a demanda por entender que a vítima deveria acionar o Município e não a prefeita, mas o Tribunal de Justiça reformou a sentença por entender que a vítima poderia optar entre processar o ente público por responsabilidade objetiva ou o agente que causou o dano por responsabilidade subjetiva.

No julgamento do recurso, que teve reconhecida a repercussão geral, o Min. Marco Aurélio Mello, relator do processo, lembrou que a responsabilidade objetiva do Estado tem como base o art. 37, § 6º, da Constituição, ao passo que o agente público responde por dolo ou culpa, com base no art. 122 da Lei 8.112/1990, o Estatuto dos Funcionários Públicos Federais. Desse modo, concluiu o Ministro que "Consoante o dispositivo, a responsabilidade do Estado ocorre perante a vítima, fundamentando-se nos riscos atrelados às atividades que desempenha e na exigência de legalidade do ato administrativo. A responsabilidade subjetiva do servidor é em relação à Administração Pública, de forma regressiva"1.

Na esteira deste entendimento, o Min. Alexandre de Moraes assinalou que a responsabilidade civil objetiva prevista na Constituição se dirige exclusivamente às pessoas jurídicas de direito público e às empresas prestadoras de serviços públicos, sem possibilidade de aplicação aos agentes públicos, os quais respondem subjetiva e regressivamente perante o Estado.

Como resultado do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal fixou a seguinte tese:

A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Com o julgamento do Tema 940, está claro que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, baseada no risco da atividade administrativa. A vítima fica isenta de comprovar a culpa do agente causador do dano, mas está proibida de acionar diretamente o agente, que só pode ser demandado pelo ente público em ação de regresso. Conforme preconizado por Hely Lopes Meirelles, há uma clara disjunção entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente. O Estado indeniza a vítima e depois busca o ressarcimento contra o agente, em ação de regresso (Meirelles, 2007, p. 659-660).

O julgamento do caso Lula vs Dellagnol pelo STJ

O caso Lula vs Dellagnol é emblemático da disjunção estabelecida pelo Tema 940 entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva dos agentes públicos.

O procurador da República Delton Dellagnol, coordenador da denominada Operação Lava-jato, convocou a imprensa no dia 14/09/2016 para expor a acusação formulada contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, utilizando, para tanto, um arquivo de PowerPoint. Diante disso, o ex-presidente moveu ação indenizatória de danos morais contra o procurador da República, alegando que aquela exposição ofendeu sua imagem, seu nome e sua reputação frente à opinião pública.

O juiz de primeiro grau afastou a preliminar de ilegitimidade passiva e julgou improcedente a ação ao entendimento de que os fatos da causa não constituem violação aos direitos da personalidade do autor. O Tribunal de Justiça de São Paulo por entender que a divulgação da denúncia por meio de PowerPoint não viola os direitos da personalidade do acusado.

Ao conhecer do Recurso Especial 1.842.613, interposto pelo autor, o Superior Tribunal de Justiça decidiu reformar as decisões de primeiro e segundo graus, por maioria de votos, julgando procedente a ação e condenando o réu a pagar R$ 75.000,00 ao autor. No que diz respeito à legitimidade passiva, a Corte Superior argumentou que:

Nas hipóteses em que a conduta da qual deriva o dano consistir no exercício das funções públicas regulares, do agir funcional, (...) a demanda, necessariamente, será ajuizada em face do Estado, que, em ação regressiva, poderá acionar o agente público.

Por outro lado, (...) nas situações em que o dano (...) é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se como "irregular" conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, (...) a ação com desígnio indenizatório, (...) pode ser ajuizada em face do agente.

Isso porque, não pertencendo o atuar abusivo ao rol dos atos funcionais, não se reconhece no ordenamento jurídico fundamento capaz de legitimar a inclusão do ente estatal na demanda.

Como visto, o Superior Tribunal de Justiça adotou a regularidade ou irregularidade da conduta do agente como critério para estabelecer a legitimidade passiva na ação indenizatória: se a conduta do agente público for legítima e regular, o ente público deve reparar o dano causado; se a conduta for irregular e abusiva, o próprio agente deve ser responsabilizado.

Antes de tudo, é preciso adotar como premissa que, no caso analisado, o procurador da República agiu no desempenho de suas atribuições funcionais, inclusive atendendo às orientações regulamentares emanadas de seus superiores hierárquicos.

Por outro lado, o art. 37, § 6º, da Constituição diz que o poder público é responsável pelos danos causados por seus agentes, sem fazer distinção sobre a regularidade ou irregularidade da conduta. Desse modo, a regularidade ou irregularidade da conduta só tem relevância, posteriormente, para efeito de ressarcimento do erário em ação regressiva.

Por essa razão, a Min. Isabel Gallotti deixou registrado em seu voto vencido que a ilicitude não é pressuposto da responsabilidade civil do Estado, podendo haver ato administrativo regular que acarreta dano e, por conseguinte, o dever de indenizar, em razão dos riscos inerentes à atividade estatal.

É preciso ter presente que o Estado responde objetivamente pelos danos que decorrem de suas atividades, as quais são executadas por seus agentes. O agente público só pode ser demandado diretamente se a conduta lesiva for praticada fora do âmbito das atribuições funcionais e, portanto, fora do âmbito das atividades estatais, em que sequer se pode cogitar a responsabilidade estatal. É o caso, por exemplo, do agente policial que disparou e feriu outra pessoa, mas a investigação apurou que se tratou de crime passional que se deu por questões familiares2.

De todo modo, a decisão adotada pelo STJ, no caso Lula vs Dellagnol está em desacordo com o Tema 940 de Repercussão Geral, julgado pelo STF no RE 1.027.633/SP. Tratando-se de fato supostamente lesivo praticado por agente público na execução das atividades estatais, a vítima deve mover a ação de indenização contra a pessoa jurídica de direito ente público à qual o agente se encontra vinculado, devendo demonstrar apenas o dano e o nexo de causalidade com a atividade estatal. Posteriormente, em caso de condenação, o ente público pode mover ação de regresso contra o agente para se ressarcir do prejuízo, mediante demonstração de que o agente procedeu com culpa.

Palavras finais

Em síntese conclusiva, à luz do art. 37, § 6º, da Constituição, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, com base no risco da atividade, cabendo ação de regresso contra o agente que causou dano a terceiro, no desempenho de suas atribuições, mediante demonstração da culpa.

A discussão sobre a possibilidade de mover ação indenizatória diretamente contra o agente público, isoladamente ou em conjunto com o ente público a que pertence, foi pacificada com o julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Contrariando essa diretriz, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a legitimidade passiva do agente público quando do julgamento do caso Lula vs Dellagnol, ao argumento de que os atos lesivos foram irregulares, no sentido de que não se enquadram no rol das atribuições institucionais do servidor público.

Caso o tema seja levado à Suprema Corte, é bem provável que o julgamento do STJ seja modificado a fim de que prevaleça a tese fixada quando do julgamento do Tema 940 de Repercussão Geral.

Referências

Cahali, Y. S. (2007). Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

Câmara, J. A. (2010). A relevância da culpa na responsabilidade extracontratual do Estado. In: Guerra, A. D. M., Pires, L. M. F., Benacchio, M. (coord.). Responsabilidade civil do Estado: desafios contemporâneos (p. 79-91). São Paulo: Quartier Latin.

Cavalcanti, A. (1956). Responsabilidade civil do Estado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi.

Di Pietro, M. S. Z. (2006). Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas.

Meireles, H. L. (1982). Direito administrativo brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

__________

1 Trecho do acórdão.

2 TJSP – 12ª Câm. Dir. Público. Apelação Cível 0236728-47.2009.8.26.0000 (994.09.236728-9). Rel. Desemb. EDSON FERREIRA. J. 10/10/2010, v.u.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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