De tempos em tempos, debates jurídicos versam com maior ênfase sobre a teoria da perda de uma chance em razão de julgados proferidos pelo STJ. Isso revela a especial relação desta teoria com decisões judiciais, pois a sua criação ocorreu na jurisprudência, é nela que teve o seu maior desenvolvimento e é por ela que não é esquecida.
Perante a corte especial do STJ, encontram-se os casos julgados de grande repercussão no país, como a responsabilidade de uma emissora pela equivocada elaboração de uma pergunta em um jogo de acertos, o que impossibilitou o jogador de ganhar o prêmio, uma vez que não haveria resposta correta1. Também, a aplicação da teoria na responsabilidade médica, especificamente, ao considerar que a impossibilidade de sobrevida do paciente é considerada uma chance merecedora de reparação (dano chance)2.
Ainda, a decisão proferida pela 3ª turma do STJ, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial 1.877.375/RS3, sobre a responsabilidade do advogado e a conduta culposa diante da não defesa dos interesses do cliente. E é a partir deste julgamento que se passa a analisar a aplicação da teoria da perda de uma chance na responsabilidade advocatícia neste breve estudo.
Para tanto, avalia-se a responsabilização na atuação advocatícia por si só. Isto porque, trata-se de uma responsabilidade negocial, decorrente de uma contratação entre as partes, por meio da qual, o advogado obriga-se a utilizar os meios disponíveis e acessíveis para alcançar o resultado. Portanto, além da avaliação da culpa, tem-se a aplicação da divisão obrigacional consagrada por René Demogue, entre obrigação de resultado e de meio, para o que se aplica a última4.
A partir destas premissas, mesmo quando caracterizada uma conduta culposa, pela ação ou omissão, nem sempre é possível responsabilizar um advogado por não obter êxito em uma demanda judicial ou defesa dos interesses dos seus clientes, uma vez que não está no seu escopo obrigacional o resultado. A sua obrigação tem como foco a utilização de todos os meios possíveis para que ele fosse alcançado.
Por isso, a responsabilização ocorrerá após a avaliação da conduta do profissional, a fim de avaliar a eventual culpa e, também, se os meios disponíveis, existentes e acessíveis à época foram utilizados. Portanto, não há uma obrigação em relação ao resultado a ser obtido ou pretendido pelo cliente, mas sim se o advogado atuou de forma diligente, prudente e a partir de todos as possíveis formas disponíveis, à época, de defesa dos interesses do cliente.
Ademais, um fator que não pode ser ignorado é que, assim como a atuação médica, há concausas que poderão afetar o resultado. Portanto, mesmo que tenham sido adotadas todas as condutas possíveis para melhor alcançar o resultado, fatores externos, como posicionamento jurisprudencial ou informações e documentos da outra parte, poderão alterar o pretenso sucesso.
Essas concausas não podem ser ignoradas. Porque, mesmo o mais diligente advogado poderá não alcançar o resultado desejado pelo seu cliente e, por essa razão, não é necessariamente a perda de um prazo ou a não utilização adequada da melhor técnica que culminará no prejuízo ou frustração. Isso acarreta a exclusão do nexo causal entre a conduta e o resultado (dano final). Mas, não significa, por si só, que não haverá responsabilização. É preciso avaliar se até o momento da conduta culposa havia probabilidades de ter um resultado favorável ou não.
É nestas situações que se aplica a teoria da perda de uma chance, quando há um desencadeamento de eventos que ao final resultariam em uma vantagem esperada, mas que não ocorreu em virtude de uma interrupção indevida, resultante de um ato antijurídico.
Não há nexo causal entre a antijuridicidade e o resultado obtido ao final (dano final), mas há causalidade com a probabilidade perdida (dano chance)5. Por isso, a sua nomenclatura “perda de uma chance”, uma vez que se entende que há uma chance que foi perdida em virtude da conduta de outrem.
Nas decisões judiciais, os casos mais comuns para aplicação desta teoria são atuação de profissionais liberais, que se obrigam com os meios adotados e não com os resultados a serem obtidos. Também, porque nas atuações de médicos ou advogados, há concausas que poderão alterar a ocorrência do resultado e, portanto, ainda que todas as possíveis e disponíveis condutas fossem adotadas, a vantagem esperada pode não ocorrer.
Por isso, ausente o nexo causal entre o dano final, mas presente para com o dano chance, uma vez que demonstrada “a probabilidade de que tais eventos viriam a ocorrer, como também que se evidencie que eles ainda são conseqüência[s] adequada[s] do fato antijurídico”6.
Esta é a base da teoria da perda de uma chance, cuja aplicação já é consagrada na jurisprudência brasileira, “desde que efetivamente comprovadas a probabilidade de ser alcançada a vantagem esperada, acaso o desencadeamento natural dos fatos não tivesse sido interrompido”7.
A interrupção indevida do desencadeamento de fatos decorrente da inadequada conduta do advogado configura o pressuposto culpa, por sua vez, a probabilidade esperada quando desta indevida interrupção importará no dano a ser reparado (dano chance).
Há momentos da atuação advocatícia que a probabilidade será mais difícil de ser comprovada, por exemplo, quando analisadas as probabilidades de êxito antes da propositura da demanda, porque ainda não foi formado o contraditório, pois não houve sequer a citação da outra parte para apresentação de contestação. A rigor, a decisão judicial depende de fatores que acontecem no curso do processo para ser favorável ou não a um argumento apresentado8, o que impediria a certeza na probabilidade9.
Contudo, não é possível apenas afastar toda e qualquer probabilidade de êxito quando ainda não formado o contraditório. Também, não se pode presumir a total aleatoriedade nas decisões judiciais. Há temas que permitem analisar a probabilidade ou não de serem acolhidos de acordo com provas existentes à época e posicionamentos já consagrados pelos Tribunais. Não se pode olvidar que há um objetivo atual de uniformização da jurisprudência para maior segurança jurídica10, desta maneira, em demandas que não sejam inéditas não é possível dizer que haveria uma aleatoriedade tamanha que impossibilitaria a análise de probabilidades do resultado. Pelo contrário, nestes casos, há a possibilidade de se avaliar probabilidades diante dos fatos e provas existentes e as probabilidades que decorreriam da sua apresentação em juízo.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado quando da não interposição de um recurso, que a rigor estaria dentro do escopo de uma conduta culposa pela falta de cuidado pela omissão (negligência) e não utilização dos meios disponíveis (a possibilidade de interposição de um recurso). Contudo, se não há certeza de que a decisão seria revertida não há que se falar em reparação pelo prejuízo final. Deverá ser analisada qual a probabilidade de o recurso ter êxito e essa probabilidade que deverá ser reparada. Se não há certeza do provimento, também não há certeza do improvimento11.
Interpretação que também se aplica quando da não apresentação de uma defesa ou se apresentada, quando inadequada. Neste caso, além da preclusão de análise dos argumentos futuramente, haverá a possibilidade de verificação das probabilidades de êxito em afastar o pedido formulado, acaso tivessem sido apresentados os argumentos adequados ou a própria defesa.
Exatamente neste sentido é o julgado proferido pelo STJ, no acórdão de lavra da relatora Ministra Nancy Andrighi. Verificou-se a antijuridicidade, ante a omissão dos advogados que apesar de devidamente contratados não realizaram qualquer atuação em defesa do seu cliente. A partir desta ausência de defesa ou manifestações em nome do cliente, apurou-se qual seria a probabilidade de sucesso se a atuação tivesse ocorrido diligentemente12.
Constatada a existência dessa probabilidade, configurada a teoria da perda de uma chance. De um lado há a indevida conduta do advogado, que apesar de devidamente contratado, quedou-se inerte sem apresentação sequer da peça de contestação para defesa dos interesses do cliente. Por outro lado, é sabido que sem uma defesa as probabilidades de alcançar êxito para proteção de seus interesses, quando existentes, são reduzidas drasticamente. No caso julgado, concluiu-se pela probabilidade de situação mais vantajosa que não foi possível de ser alcançada pela desídia dos advogados, o que configurou a chance perdida.
Além dos citados casos de omissão, como perda do prazo para defesa ou da propositura da ação, podem ser exemplos de aplicação da teoria da perda de uma chance, atuações em que a ação é indevida e hábil a ensejar a responsabilização do advogado, como por exemplo, quando atua de forma contrária aos interesses do cliente13. A atuação advocatícia deve primar pelo melhor interesse do cliente e não pode se pautar por interesses pessoais do advogado ou até mesmo em benefício de terceiros, mesmo que sejam outros clientes.
Verificada a conduta culposa, seja pela omissão, seja pela ação, que tenha interrompido o desencadeamento dos fatos, com o impedimento de se alcançar um resultado favorável, aplica-se a teoria.
Como consequência, deve o julgado avaliar o dano a partir das probabilidades avaliadas e verificadas no caso concreto. Isto porque, será reparado o dano chance e não o dano final suportado. No julgamento em análise neste estudo, corretamente a condenação dos advogados resultou no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), não obstante o prejuízo do cliente em decorrência da não atuação dos advogados tenha sido de R$ 947.904,20 (novecentos e quarenta e sete mil, novecentos e quatro reais e vinte centavos).
É que será reparada a chance perdida (dano chance), com aplicação do art. 403, do Código Civil, que dispõe que “(...) as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”14 Por isso repara-se a chance perdida (dano chance) e não a vantagem esperada e não alcançada (dano final).
A aplicação da teoria da perda de uma chance, a partir do julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, além dos exemplos acima apresentados, não exclui a possibilidade de responsabilização na atuação advocatícia pelo resultado (dano final). Mas, essa responsabilidade existirá apenas quando for possível verificar que a conduta culposa resultou no prejuízo total suportado pelo cliente. Caso contrário, se restar ausente o nexo causal com o resultado (dano final), averiguado o liame para com probabilidades perdidas, aplicar-se-á a teoria da perda de uma chance.
É clara portanto a possibilidade da aplicação da teoria da perda de uma chance em atuação advocatícia, quando comprovada a conduta culposa, bem como a probabilidade perdida, uma vez que a chance séria, real e efetiva é dano reparável.
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1 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459. Quarta Turma. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento: 08 de novembro de 2005.
2 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1335622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento: 18 de dezembro de 1012.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 173.148/RJ. Segunda Turma. Relatora Ministra Assusete Magalhães. Julgamento: 03 de dezembro de 2015.
3 Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022.
4 GIOSTRI, Hildegard Taggesel. Algumas reflexões sobre as obrigações de meio e de resultado na avaliação da responsabilidade médica. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro: Padma, 2001. v.5. p. 102.
5 SILVA, Rafael Peteffi. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2007, p. 13.
6 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil, 2.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1, p. 674.
7 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 97. Disponível aqui.
8 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. Paris: L.G.D.J., 1939. t.1., p. 12.
9 STOCO, Rui. Responsabilidade civil do advogado à luz das recentes alterações legislativas. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v.6, p. 549.
10 O Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015) prevê expressamente tal objetivo para maior segurança jurídica, como é possível verificar no art. 926, caput, “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.” (BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível aqui.
11 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11.ed. ver., atual. de acordo com o Código Civil de 2002. Aument. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 426.
12 No acórdão constou expressamente: “Uma vez estabelecida, de maneira incontroversa, a desídia dos réus, importa consignar que havia real possibilidade de êxito dos autores no âmbito da ação de prestação de contas ou de, ao menos, obterem uma situação mais vantajosa, se as graves falhas na prestação dos serviços advocatícios não houvessem ocorrido.” (Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.877.375/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 08 de março de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 15 de março de 2022).
13 ANDRADE, Fabio Siebeneicheler. Responsabilidade Civil do Advogado. Revista dos tribunais, São Paulo: RT, v. 697, 1993, p. 24-26.
14 BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível aqui.