Alguns casos, sobretudo aqueles que envolvem celebridades ou fatos de grande repercussão social, são dotados de excepcional potencialidade para o estudo das matérias a eles correlatas, seja por atraírem a atenção do público em geral, seja por permitirem a fácil visualização daquilo que se convencionou chamar de direito vivido, o direito efetivamente aplicado pelos tribunais. No dia 01 de junho deste ano sete jurados do condado de Fairfax, no estado norte americano da Virgínia, nos brindaram com um destes casos: o veredicto da contenda entre os atores Johnny Depp e sua ex-esposa e também atriz Amber Heard. O objetivo desta coluna é aproveitar a publicidade do caso para apresentar, na extensão própria esperada para este espaço, algumas reflexões dele extraídas sobre a interlocução entre responsabilidade civil e o direito de família e a função punitiva da responsabilidade civil, aplicada por meio das indenizações punitivas (punitive damages).
O caso pode ser assim sintetizado: a ação foi ajuizada por Johnny Depp em 2019, alegando que a ex-esposa o havia difamado em artigo por ela publicado no jornal Washington Post1 em dezembro de 2018, sob o título “Amber Heard: Eu falei contra a violência sexual – e enfrentei a ira de nossa cultura. Isso precisa mudar”. No texto, embora não cite expressamente o nome de Depp, a atriz afirma ter vivenciado violência no passado recente (últimos dois anos), justamente o período em que esteve casada com Johnny Depp. Afirmando que tal publicação prejudicou sua reputação profissional e até mesmo o boicote em alguns papéis, o ator pleiteou a condenação de sua ex-esposa ao pagamento de cinquenta milhões de dólares em indenizações. Em sua defesa, a atriz alegou que não mencionou o ex-marido no texto, e apresentou ainda pedido contraposto, pleiteando a condenação de Depp por difamação, especificamente em razão de uma declaração dada por seu então advogado de que as alegações de violência doméstica por ela narradas eram uma farsa.
O júri, composto por cinco homens e duas mulheres, reconheceu que houve difamação recíproca, mas decidiu de forma substancialmente favorável ao ator: de um lado, condenou Amber Heard ao pagamento de dez milhões de dólares a título compensatório e mais cinco milhões a título de danos punitivos, sendo estes reduzidos pela juíza Penney Azcarate a trezentos e cinquenta mil dólares. De outro lado, condenou Johnny Depp ao pagamento de dois milhões de dólares a título compensatório.
Para afastar a confusão realizada por alguns veículos de imprensa e postagens em redes sociais, é preciso destacar que a ação versou apenas sobre o pedido de indenização por difamação, de forma autônoma, e não teve por objeto o divórcio das partes ou qualquer medida protetiva, ações que já haviam sido julgadas anteriormente. Conforme amplamente noticiado pela imprensa, os atores se casaram em fevereiro de 2015, e poucos meses depois, em maio de 2016, Amber Heard ajuizou ação de divórcio, solicitando também uma ordem de restrição (medida protetiva) contra o marido, baseada em violência doméstica. Em agosto do mesmo ano, o casal fez uma declaração pública de que chegaram a um acordo quanto ao divórcio, e que nunca tiveram o objetivo de ferir um ao outro, seja de forma física ou emocional. Em razão do acordo, Amber desistiu da medida protetiva anteriormente ajuizada, e em janeiro de 2017 o casamento foi oficialmente dissolvido, restando estabelecido apenas que Depp pagaria a sua então esposa o valor de sete milhões de dólares.
A primeira reflexão serve a evidenciar como as relações familiares não são imunes a responsabilidade civil. Não obstante, a interlocução destas disciplinas demanda cuidadosa análise do intérprete, afinal, o direito de família se encontra estribado no afeto e em relações de caráter extrapatrimonial, ao passo que a responsabilidade civil representa, historicamente, o mecanismo de reparação à danos patrimoniais. Por vezes, o encontro destas espacialidades pode resultar em efeitos desastrosos. Basta pensar na outrora comum responsabilização civil pelo mero rompimento do noivado, que bem analisada, representa desarrazoada coação estatal dirigida à formação do casamento, mesmo quando o desfazimento do noivado representa o mais franco ato de liberdade existencial: a liberdade de constituir (ou não constituir) família (CF, art. 226, §7). Claramente, a responsabilidade civil não se presta a tal fim, e a função punitiva adotada no caso em análise pode acabar por legitimar o julgamento moral de condutas familiares diversas daquelas próprias do modelo majoritário.
Ainda quanto a intersecção entre responsabilidade civil e direito de família, o caso Depp vs. Heard revela uma tendência da atual jurisprudência brasileira, notadamente de que as frustrações e abalos decorrentes da dissolução da sociedade conjugal, por si, não autorizam a reparação civil2. Tal fato não decorre de qualquer falsa imunidade que o casamento possa atribuir aos atos danosos praticados pelos cônjuges, mas sim de que o fim da conjugalidade, por si só, não gera danos indenizáveis. De outro lado, declarações difamatórias ou quaisquer outras condutas que ilicitamente violem diretos patrimoniais ou de personalidade de qualquer dos cônjuges encontra aptidão para deflagrar a responsabilização civil, mesmo que realizadas na seara familiar. Foi exatamente o que ocorreu com o casal Depp-Heard, personagens de um divórcio midiático e conturbado que não teve a interferência da responsabilidade civil, buscada apenas dois anos depois e em razão de outros atos, notadamente declarações difamatórias proferidas por ambas as partes.
Por fim, não se pode deixar de considerar as externalidades derivadas deste julgamento, sobretudo sua influência sobre as denúncias contra a violência doméstica, tema que não passou despercebido a Anderson Schreiber ao apontar que “a pergunta que talvez mais interesse em tudo isso é a seguinte: pode a decisão do júri desestimular a denúncia de casos de violência doméstica? Se a resposta for afirmativa, pode-se acabar produzindo o efeito oposto àquele declaradamente pretendido pela atriz em seu artigo”3. O tema é sensível e merece cuidadosa atenção dos juristas.
A segunda oportunidade oferecida pelo caso é a análise dos controversos punitive damages. Se tradicionalmente a responsabilidade civil teve por atribuição a compensação de danos, contemporaneamente avoca também as funções de prevenção do dano e punição de seu causador. O tema é controverso, tanto no Brasil4 quanto nos Estados Unidos, ao ponto de Mitchell Polinsky e Steven Shavell afirmarem que “uma das mais controversas características do sistema legal americano é a imputação de indenizações punitivas”5.
No direito norte americano, este instituto concentra tanto uma função punitiva, voltada especificamente para punir uma pessoa por uma conduta ultrajante (sendo mais frequentemente aplicado a condutas intencionais ou maliciosas), como também uma função preventiva (deterrance), voltada a evitar que esta pessoa ou mesmo outras pessoas realizem condutas similares6.
Em que pese a pretendida importação da função punitiva para o direito brasileiro se dê, no mais das vezes, de forma generalizada, estatisticamente estas indenizações são raras no Estados Unidos: o número de casos com pedidos de indenização punitiva admitidos para julgamento representa entre três a cinco por cento das causas cíveis levadas aos tribunais estaduais, e neste reduzido número de causas admitidas, menos de cinco por cento tem o pedido julgado procedente7. Ou seja, o percentual de causas em que estas indenizações são admitidas varia entre 0,15% e 0,25% das causas cíveis – menos de uma em cada quatrocentas ações.
Ponto sensível da temática é a fixação do valor desta indenização – sua quantificação. Ordinariamente, esta atribuição compete ao corpo de jurados, portanto, a leigos, e o valor atribuído é dotado de grande variação (mesmo entre casos idênticos) e imprevisibilidade. Conforme apurado por Cass Sunstein, Reid Hastie, John Payne, David Schkade e W. Kip Viscusi, os jurados são instruídos de que o valor da indenização deve ser aquele que efetivamente expresse a desaprovação social contra a conduta punida, bem assim que seja o necessário para induzir o réu ou outros indivíduos a não repetir aquela conduta, sem receber quaisquer critérios objetivos para a fixação do valor de eventual indenização, tampouco informações quanto ao valor aplicado em casos análogos.
Quando os autores pediram aos jurados para justificar o valor por eles atribuído a título de punitive damages, as respostas revelaram que os valores partiram dos mais variados valores-base, dentre os quais (a) o valor do orçamento anual destinado pelo réu para publicidade, (b) um milhão de dólares por réu; (c) vinte e cinco mil dólares por vítima; (d) a metade do lucro anual do réu; dentre tantos outros. Quase nenhum jurado fez referência às instruções dadas pelo magistrado e a maior parte das justificativas se referiam ao objetivo de “mandar uma mensagem” ou “ferir” o causador do dano. Os autores cogitam que tal resultado pode decorrer da dificuldade de compreensão pelos jurados das instruções sobre a indenização punitiva, o que os leva a atuar com base em sua intuição, reações emocionais ou mesmo por simpatia com a parte, ao invés de observar os critérios judiciais8. Esta constatação parece ter sido corroborada pelo caso em análise, em que tanto a mídia quanto a população em geral apresentaram forte sentimento de simpatia em relação a Johnny Depp durante o julgamento.
Em que pese a admissão de sua constitucionalidade pela Suprema Corte dos EUA, a matéria é de competência estadual, e dos cinquenta estados americanos, apenas cinco expressamente proíbem a aplicação de punitive damages. Dentre os estados que admitem a aplicação de indenizações punitivas, dezoito limitam o valor da indenização a ser atribuída pelo júri, como é o caso do estado da Virginia9. É por esta razão que embora o júri tenha condenado Amber Heard ao pagamento de cinco milhões de dólares a título de punitive damages, o valor foi reduzido pela juíza togada ao limite estadual de trezentos e cinquenta mil dólares.
No âmbito jurisdicional, em State Farm vs. Campbell a Suprema Corte Americana chegou a formular a ‘single digit rule”, ou regra de um dígito, pela qual o valor da indenização fixada a título de dano punitivo deveria ser proporcional ao valor indenização compensatória, na extensão máxima de um dígito deste valor (portanto, entre uma e nove vezes o valor da indenização compensatória). Aponta a doutrina, porém, que em casos subsequentes (Philip Morris vs. Williams) a própria Suprema Corte deixou de aplicar tal regra, deixando de responder se o critério se trata efetivamente de uma regra de julgamento ou apenas uma diretriz10.
Ao fim e ao cabo, a figura das punitive damages parecem despertar tantas controvérsias quanto o próprio caso Depp vs. Heard, cabendo a doutrina arrostar a responsabilidade de realizar as mediações necessárias à importação da figura ao direito brasileiro, sob pena da tradução acabar por revelar uma traição ao próprio instituto11.
_______________
1 Disponível aqui.
2 BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A ilicitude como requisito da responsabilidade civil no direito de família: o cotejo entre a doutrina e a jurisprudência. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (et. al.). Responsabilidade Civil e Direito de Família. O direito de danos na parentalidade e na conjugalidade. Indaiatuba: Ed. Foco, 2021.
3 SCHREIBER, Anderson. Depp x Heard e as novas funções da responsabilidade civil. Portal Jota. Publicado em 07/06/2022.
4 Entre nós, a função punitiva é acolhida por substancial parcela da doutrina, dentre os quais Nelson Rosenvald e Ricardo Dal Pizzol, ao passo que ainda é rejeitada por outra relevante parcela, capitaneada por Maria Celina Bodin Moraes e Anderson Schreiber.
5 POLINSKY, Mitchell; SHAVELL, Steven. Punitive damages: an economic analysis. Harvard Law Review. Vol. 111, n. 4, 1998.
6 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009.
7 SHARKEY, Catherine M. Economic Analysis of punitive damages: theory, empirics, and doctrine. New York University Law and Economics Working Papers. Paper 289.
8 SUNSTEIN, Cass (et. al.). Punitive Damages : how juries decide. Chicago: The University of Chicago Press. 2002.
9 SEBOK, Anthony J. Punitive Damages in the United States. In: KOZIOL, Helmut (et. al.). Punitive Damages : Common Law and Civil Law perspectives. Wien : Springer-Verlag, 2009.
10 Idem.
11 FONSECA, Ricardo Marcelo. Tradições, traduções, traições: diálogos entre culturas jurídicas. História do Direito: RHD. Curitiba, v.1., n.1., 2020.