Migalhas de Responsabilidade Civil

Danos emergentes por descumprimento do contrato: abrindo a caixa-preta

Flávio H. S. Ferreira aborda danos emergentes por descumprimento do contrato: abrindo a caixa-preta.

28/6/2022

Em sentido figurado, a “caixa-preta” se refere a qualquer sistema cujo mecanismo de funcionamento interno não é claro ao observador externo. O legislador brasileiro, no art. 402 do código civil, não realiza nenhuma distinção dentro da categoria por ele denominada de “danos emergentes”. Os tipos de danos emergentes sofridos pelo credor na hipótese de inadimplemento do contrato, as fórmulas utilizadas para o seu cálculo, bem como a interação desses danos entre si constituem uma verdadeira “caixa-preta”, no sentido acima aludido, para a doutrina e a jurisprudência brasileiras. O objetivo deste pequeno ensaio é jogar uma luz sobre o assunto, que será explorado de forma mais profunda em outro trabalho de nossa autoria, desvendando o conteúdo da “caixa-preta”.

Para entender o assunto, é necessário distinguir entre os danos tipicamente, mas não exclusivamente, sofridos pelo credor alienante e pelo credor adquirente.1 “Alienante” e “adquirente” aqui entendidos em sentido amplo, como aqueles que oferecem e adquirem, respectivamente, quaisquer tipos de bens ou serviços no mercado. Esquematicamente, o dano emergente tipicamente sofrido pelo credor alienante é a perda resultante da realização de uma transação substituta ou, alternativamente, a perda do lucro que ele (credor) esperava obter no contrato inadimplido. Tal lucro não se confunde com o denominado lucro cessante, que é um dano tipicamente – embora não exclusivamente – sofrido pelo credor adquirente.2 As duas fórmulas para a mensuração do dano sofrido pelo credor alienante (perda com a transação substituta e perda do lucro esperado) competem entre si. Em princípio, o credor alienante deve mensurar o seu dano com base no critério da perda resultante da realização de uma transação substituta; sendo-lhe facultado o emprego do critério da perda do lucro nos casos em que a realização de tal transação for inviável, extremamente onerosa ou improvável.

Para ilustrar a aplicação dessas normas, vejamos os fatos do caso Lazenby Garages Ltd. v. Wright.3 Wright comprou um BMW usado de Lazenby, um vendedor de automóveis, pela quantia de £ 1.640. No entanto, o comprador mudou de ideia no dia seguinte. Lazenby manteve o carro no seu estande de vendas e, dois meses depois, vendeu o referido carro para outro comprador pelo preço de £ 1.700. Em seguida, Lazenby entrou com um processo na justiça contra Wright para cobrar o lucro que ele havia perdido no contrato inadimplido (£ 315), calculado com base na diferença entre o preço combinado de £ 1.640 e o valor pelo qual Lazenby havia adquirido o carro, £ 1.325. O tribunal britânico julgou improcedente o pedido. O principal motivo da improcedência do pedido é o fato de que o credor não sofreu prejuízos com o inadimplemento do devedor, por ter feito uma transação substituta, vendendo o bem para um terceiro por um preço mais elevado. Assim, o credor obteve não apenas o lucro inicialmente visado (£ 315), mas também um benefício superior ao que ele teria recebido no contrato inadimplido. Portanto, não houve qualquer perda com a realização da transação substituta.

E a questão da indenização dos demais danos sofridos pelo credor (vendedor) no caso apresentado (Lazenby Garages Ltd. v. Wright) como o dano resultante da privação da prestação alheia (dinheiro) por dois meses, bem como o dano decorrente da cobrança judicial ou extrajudicial da dívida? Presumivelmente, o benefício adicional obtido pelo credor alienante com a transação substituta (£ 60), quando comparamos tal transação com o benefício que o credor alienante iria receber com base no contrato inadimplido, foi suficiente para compensar os prejuízos sofridos por Lazenby com o atraso de dois meses no recebimento da quantia de dinheiro que lhe era devida pelo comprador inadimplente, bem como os prejuízos decorrentes da cobrança da dívida (compensatio lucri cum damno). Por outro lado, se o credor – Lazenby – tivesse revendido o BMW usado por um preço mais baixo do que aquele combinado com o devedor inadimplente (ou seja, inferior a £ 1.640), ele teria o direito de cobrar indenização pela diferença entre o preço da transação substituta e o preço combinado no contrato inadimplido. Ele poderia cumular a cobrança da indenização desse prejuízo (perda com a realização da transação substituta) com a cobrança da indenização de outros prejuízos (como a perda com o atraso no recebimento do preço e a perda com eventuais cobranças judiciais ou extrajudiciais do preço devido pelo devedor inadimplente). Finalmente, é importante ressaltar que o dano resultante da realização de uma transação substituta é mensurado com base numa transação hipotética (diferença entre o preço combinado no contrato inadimplido e o preço médio pelo qual o credor poderia revender a sua prestação no mercado), sendo admitida a mensuração com base numa transação substituta efetivamente realizada apenas na hipótese: (a) de tal transação gerar um menor dano ao credor do que a transação hipotética; ou (b) na hipótese de tal transação ser considerada razoável nas circunstâncias do caso, ainda que gere um maior dano ao credor, a ser indenizado pelo devedor.

O caso Snelling v. Dine4 fornece uma boa ilustração a respeito do emprego da fórmula da perda do lucro esperado. Um comerciante (comprador) encomendou 50 refrigeradores customizados, a serem fabricados por uma empresa (vendedora) especializada na construção desse tipo de equipamento. Ficou combinado entre as partes que o pagamento do preço de cada um daqueles refrigeradores, no valor de $100 por unidade, seria feito na data da entrega de cada unidade. Após a construção de 10 refrigeradores, a vendedora notificou o comprador para informá-lo sobre a disponibilidade de entrega daquelas unidades. O comprador concordou em receber apenas 7 unidades, pagando o seu preço. O comprador se recusou a receber e a pagar pelas outras 3 unidades já fabricadas, bem como anunciou a sua intenção de não receber e pagar pelas outras 40 unidades que ainda precisavam ser construídas.

A vendedora então revendeu os 3 refrigeradores já fabricados para terceiros por um preço mais barato do que o preço que havia sido combinado no contrato inadimplido, sofrendo uma perda com a realização dessa transação substituta. Além da indenização desse dano, a vendedora também exigiu a indenização da perda do lucro que ela iria obter no contrato inadimplido com a venda dos 40 refrigeradores restantes. Tal lucro era representado pela diferença entre o preço de venda daquelas 40 unidades e o seu custo variável de construção.5 Por sua vez, nas circunstâncias do caso concreto, foram considerados como elementos desse custo o valor das peças e acessórios necessários para a fabricação dos 40 refrigeradores restantes; acrescido das despesas relacionadas ao trabalho de montagem. Em suma, o custo de fabricação consistia no material e na mão de obra necessários para a montagem dos refrigeradores.

Por questões de limitação de espaço, não iremos detalhar alguns pontos do caso acima apresentado. Pelo mesmo motivo, não iremos mostrar como as fórmulas cabíveis ao credor alienante (perda com a transação substituta ou perda do lucro esperado) são afetadas pelos seguintes problemas: (i) casos em que o custo variável de cumprimento para o credor no contrato inadimplido difere do seu custo variável de cumprimento na transação substituta; (ii) inadimplemento antecipado; (iii) perda do volume de vendas que não causa transtornos ao planejamento do credor; (iv) incertezas quanto à duração do contrato.

Finalmente, a título de conclusão, é importante destacar algumas questões que sequer foram abordadas nesta coluna, como a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos pelo credor adquirente e a interação entre eles (perda com a transação substituta, custo de complementação e reparo, perda com a diminuição do valor da prestação); a identificação dos danos emergentes tipicamente sofridos por qualquer credor (perda decorrente da privação da prestação alheia, despesas com o recebimento da prestação alheia, perda da prestação conferida pelo credor ao devedor e perda com a cobrança da prestação devida); e a menção aos danos atípicos e seus problemas. Tais questões, e outras não aludidas, serão detalhadas em outro trabalho.

________________

1 Tal distinção é sugerida, entre outros, por EISENBERG, Melvin Aron. Foundational principles of contract law. New York: Oxford University Press, 2018, p. 189-194, 201-215.

2 O lucro cessante não é considerado, em nossa tradição jurídica, um dano emergente. A respeito dos vários esquemas classificatórios elaborados pelos juristas europeus, após a redescoberta do direito romano, para a categorização dos diversos tipos de danos que o credor poderia sofrer, cf. COING, Helmut. Derecho privado europeo. Madrid: Fundación Cultural del Notariado, 1996, tomo I, p. 553-559 (período do direito comum mais antigo), tomo II, p. 574-577 (século XIX e período das grandes codificações). O lucro cessante é o dano, normalmente sofrido pelo credor adquirente, resultante da incapacidade de tal credor de fazer um uso produtivo da prestação que ele teria direito de receber da outra parte como um bem de capital no sentido da teoria econômica.

3 [1976] 1 W.L.R. 459 (Ct. App.) (U.K.).

4 270 Mass. 501, 170 N.E. 403 (Mass. 1930).

5 O conceito de lucro empregado aqui é utilizado exclusivamente para a mensuração da indenização cabível, não possuindo qualquer relação com o conceito de lucro eventualmente empregado nas normas tributárias. O custo variável, a ser deduzido do preço, é o custo que o credor teria de incorrer para produzir cada unidade adicional do bem ou serviço a ser entregue ao devedor. O custo fixo (e.g., aluguel da loja, salários de empregados permanentes, etc.) não é deduzido do preço; de maneira que o lucro do credor alienante é representado pela diferença entre o preço combinado e o custo variável de tal credor para a realização da sua própria prestação.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.