Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade “sem dano” e a falsa alegação de sua origem “alienígena” no sistema romano-germânico

Danilo Porfírio de Castro Vieira fala sobre a responsabilidade “sem dano” e a falsa alegação de sua origem “alienígena” no sistema romano-germânico.

16/6/2022

É atribuida à tradição jurídica anglo-americana (common law) a criação do instituto do  punitive damages, definidos como “danos, diferentes daqueles do tipo compensatórios ou nominais, impostos contra uma pessoa para puni-la em razão de sua conduta ultrajante e impedir a ela e a terceiros de incorrerem na mesma conduta no futuro” (tradução nossa)1 (BRUGGGEMAN, 2010). No instituto dos punitive damages há a previsão de sujeição do ofensor a um dever de indenizar em quantia superior ao dano,  resposta retaliatória a conduta ilícita, não se tratando de uma indenização compensatória.

Nos punitive damages, o valor estabelecido é disposto distintamente do qunatum reparatório e/ou compensatório,  respondendo como forma de sanção contra o comportamento lesivo caracterizado por grave negligência, malícia ou opressão, ou seja, ato ilícito. Por sinal, valor é substancialmente maior do que seria necessário para compensar o dano sofrido (punição e prevenção punição / MARTINS-COSTA, 2005).

Os punitive damages, portanto,  têm como objetivo: educação; retribuição; reforço da lei; prevenção pela exemplaridade e compensação (OWEN, 1994). Na jurisidição brasileira a denominado como Teoria do valor do desestímulo, pois visa inibir certas práticas de forma difusa e reiterada (Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimento no agravo de instrumento 850.273-BA. Quarta Turma. Relator: Desembargador Honildo Amaral de Mello Castro (convocado do Tribunal de Justiça do Amapá). Data de julgamento: 03 ago. 2010. Data de publicação: 24 ago. 2010).

Logo, mesmo se considerando a exigência da tradição jurídica liberal do Direito do “tripé” da ilicitude, ou seja, causa (culpa), dano e nexo causal para a caracterização da responsabilidade, deve-se atentar também contra a violação do direito em si, o dano ao Direito, ao sistema de tutelas e, consequentemente as perdas patrimoniais e extrapatrimoniais (morais/existenciais) da vítima, conforme a prática jurídica da “common law”, por sinal de inspiração jus romana clássica (ROSENVALD, 2017).

Citando Jhering (2001), “também as leis do Estado, a ordem jurídica e a lei moral. Será que o devedor, que discorda do preço estabelecido com o vendedor, o locador, que não cumpre o contrato, o mandatário, que trai minha confiança, enganando-me, não fazem o mesmo?”

Pois bem, o equívoco é afirmar que instituto jurírdco dos punitive damages ou da responsabilidade “sem dano”, seria alienígena ao sistema romano-germânico. Constrariamente, o punibilidade em resposta ao ilicito civil estave presente seja na Lex Duodecimum Tabularum, na Lex Aquilia de damno e com nuancas no Direito Justinianeu.

A ênfase no delito dano inicia-se na Baixa Idade Média, no Direito Canônico e influenciou o Direito Moderno Liberal, atendendo a reivindicações emancipatórias, da mínima intervenção do Estado na vida privada e da proteção dos direitos à propriedade e de propriedade (relacionadas à liberdade material e segurança jurídica).

A tradição jurídica romana e a função punitiva da responsabilidade civil

O termo resposanbilidade civil, advém da termo latino spondeo/spondere, que na tradição jurídica latina, não era associada à sanção ou à coercitividade retaliatória/reparatória, mas a uma medida solene (fas), associada a contratos verbais (direito quiritário), sujeitando o devedor ao credor, após a resposta de uma pergunta: Spondesne (garatntes)? Spondo (garanto)! A responsabilidade no direito romano estava, a partir do século II DC,  associada ao termo Obligatio, aquilo que se esta ligado, a consequência coercitiva do descumprimento de um Debitum (nexum era entendido como sujeição, o iussum - dever), ou seja, a obrigação quando descumprida gerava respostas coercitivas exigindo o cumprimento e alcançando seu patrimônio.

No ius civile romanae, inicialmente, se reconhecia em sentido amplo a Iniuria, ou ofensa, não apenas na dimensão reparatória, mas na perspectiva punitivo-pedagógica. Por sinal, o intuito primeiro era responder ao ilícito. Entende-se, portanto, que a sanção aos delitos privados, possuía natureza de pena privada.

No direito privado romano, reconhecia-se três tipos de danos: a) furtum et rapina, danos resultantes de apropriação indevida da propriedade; b) iniuriae, danos causados contra a pessoa; c) o damnum iniuria datum, prejuízos contra propriedade corpórea; e d) dolus et metus, danos resultantes de atos maliciosos (dolosos). É importante salientar que o termo iniuria era tratado de forma ampla, ou seja, qualquer forma de ofensa, patrimonial ou pessoal, ou de forma específica, restringindo-se apenas as questões de ordem moral.

Sobre a iniuria stricta, reconhecida como uma delictum maleficium, era a modalidade de ofensa instramissível e intransferível, tendo dimensões não somente morais, mas patrimoniais, cuja a punição tinha uma dimensão incialmente retaliatória, mas visando uma compensação financeira ao agredido.

Já a iniuria lata perseguia qualquer forma de dano, buscando pela aestimatio, não só a punição do agente, mas a valoração pecuniária da ofensa, o que já era previsto na Lex Duodecimum Tabularum, cumulativamente as penas de membrum ruptum e fractum ( já existia uma previsão primordial do in damnoe). Inclusive já era previsto na Lei das Doze Tábuas a actio pauperie, a actio de pastus pecoris e a actio de arboribus succissis, que será recepcionado pela Lei Aquilia sobre o dano.

É importante ratificar que o resposta jurídica ao dano reporta-se a faz, a um direito religioso, sendo a sanção um sacrifício, um ato sacro de purgação ou expiação, ritualizado.

Com a Lex Aqulia ad damnum (287 AC), a punição assume especificamente uma proteção ao patrimônio e a obrigatoriedade da compensação (simultaneamente /cumulativamente). Reconheceu-se o damnum iniuria datum, que fundamentava a responsabilização (aquiliana), na produção culposa de dano em coisa alheia.  O cálculo da pena era pecuniário e voltado para reparação ou compensação dos danos sofridos por proprietários (corpore corporis) e não proprietários (jurisprudencialmente non corpore sed corporis), porém o fim da sanção era atingir o comportamento antijurídico.

Em casos de danos causados por coisas caidas, a actio de effusis et dejectis, previa a reparação e conjugada punição.

Considerando a cláusula penal, ou stipulatio poenoe, o intuito era reforçar o cumprimento com uma advertencia de punibilidade patrimonial pela mensuração prévia da indenização. A stipulatio, portanto, por um pactum, estabelecia uma obligatio, sendo o credor protegido pela actio certae creditae pecuniae e o devedor sujeito ao actio bonae fidei.

Logo, na responsabilidade era uma medida de condenação pecuniária determinada pelo juiz ou pelo credor. O cálculo era objetivo, considerando o valor da res (quanti e a res est), na perspectiva das perdas, o valor considerado pelo credor (id quod interest) e a apreciação do juizo (iudicia bonae fidei), resguardando a equidade. Considerando novamente a Lex Aquilia, mesmo sendo o marco da patrimonialização do direito romano, o intuito não era ressarcir, mas punir, não se considerando propriamente o valor de mercado, mas uma estimativa  de maior preço no ano anterior ou nos trinta dias anteriores ao acometimento do dano. Logo, a condenação poderia ser superior ao prejuizo em si.

Com o colapso do Império Romano Ocidental, observa-se um profundo retrocesso no direito privado, sujeintando-se a um primordial direito consuetudinário e retaliatório. Na baixa Idade Média, com a restauração das rotas comerciais entre Europa e Oriente, por via do Mediterrrãneo, o Direito Romano e as noções de ilicitude civil e responsabilização ressurgem, por via dos glosadores, mas sob influência do Direito Justinianeu, que associava o delito aquiliano (ou privado) ao delito de dano (a reparação, e não mais  punição, é o teleos da responsabilidade). A fórmula id quod interest é aprimorada por meio do reconhecimento de duas referências de cálculo: o dano emergente (damnus emergens) e o lucro cessante (lucrum cessans).

O modelo reparatório de responsabilidade, desenvolvido no direito canônico, será a base para o direitos liberal, atendendo sua bandeira emancipatória e securitária. Isso já se observa no século XVII, com a construção do conceito abstrato e uniforme de Dano, que substituiu o modelo fragmentário.  A reposnsabilidade assume uma função prioritariamente reparatória em uma acepção amplissima de de Dano.

O Código Civil Francês  de 1804, a responsabilidade se reduz na consequência do fato humano culposo causador do dano, tendo como fim a reparação (art.1382). Há o reconhecimento da cláusula geral do Dano (categoria única e abstrata) no intuito de combater, em princípio, qualquer deminutio patrimonial. Logo, o dano ílcito e o dano culposo e indenizável. Observa-se, portanto, que as medidas punitivas tornaram-se exclusivas do direito penal, objeto de tutela da ordem pública.

Responsabilidade civil e a modernidade liberal: emancipação, segurança jurídica e patrimonialidade.

A se abordar o termo Modernidade, o que se expõe é um projeto filosófico e fenômeno sociocultural com dimensões civilizacionais.  A Modernidade como expressão do mundo da vida (Lebenswelt, mundo sociocultural), repositório de sentidos e símbolos compartilhados (“consciência coletiva”).

A Modernidade é, portanto, um conjunto de valores substanciais e símbolos vinculados a uma forma de vida específica e formados no processo histórico-social ocidental, desenvolvendo-se como projeto intelectual de ruptura, de contestação de uma ordem político-econômico-moral preexistente, tendo como bandeira a emancipação, a autenticidade do indivíduo pelo livre-arbítrio, pela da autodeterminação do homem (soberania decisória pessoal), como forma de alcance da autossatisfação (patrimonial e extrapatrimonial). Neste sentido, o homem é protagonista no processo de ruptura e modificação de valores.

A emancipação pressupõe pluralidade, a sujeição da coletividade à autonomia, a transição da organização coletiva comunitária em societária, desierarquizada e comutativa. A sociedade política como sistema equitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.

O “tripé” principiológico da modernidade liberal (emancipação, pluralidade e secularidade) pressupõe a formação de um Estado de Direito e um sistema de tutelas fundamentais. No caso do direito privado que visa garantir autenticidade/dignidade da pessoa pelas vias dos direitos de personalidade; no exercício negocial e familiar, a mínima intervenção dos Estado; e a liberalidade na constituição patrimonial, com segurança na conservação.

Nos espaços privados, a liberdade é um atributo natural ao homem, justificado por leis morais racionais universais. O exercício da facultas agendi  sujeita-se a requisitos racionais-procedimentais decisórios, viabilizando o exercício da autonomia.

Enfatizando, a autonomia da vontade manifesta-se em três momentos: pelo livre arbítrio o homem individualiza suas escolhas, juízos e projetos de vida; pela autodeterminação a vontade se faz em ação; pela autorrealização, o homem busca pela sua própria ação o seu sustento, a sua autonomia material, ou seja, a ação como trabalho. Porém, a autenticidade decisória (autonomia), pressupõe sociabilidade/alteridade. Logo, há o imperativo moral de sujeição da liberdade à responsabilidade. A autonomia da vontade, comporta o sentido de dever.

Porém, nos espaços privados, o preceito moral racional da autorresponsabilidade é exclusivamente moral, não tendo uma repercussão cogente de natureza punitiva. A heteronomia jurídica, que tem como fim a uniformização de condutas, acaba, no direito privado, por afiançar a supremacia decisória nos espaços particulares e a segurança jurídica resultante da liberdade material (obtenção de bens).

A ponte entre a vontade e a ação se encontra na patrimonialidade/ propriedade. A propriedade privada é tratada como a extensão do direito à liberdade. A liberdade no exercício do trabalho/empreendimento, que se objetiva no produto ou no recurso (a moeda como unidade de valor), saciando as necessidades essenciais, segurança pessoal e acúmulo de riquezas. Sem patrimônio não há o que falar de um futuro garantido (JHERING, 2002).

Ao se falar, assim, do direito à propriedade, é necessária a divisão em duas espécies: o Direito à propriedade (direito dinâmico e imediato/ obtenção) e o Direito de propriedade (direito estático e mediato / conservação). O direito de propriedade consiste na manutenção daquilo que foi adquirido.

As responsabilidades só são aventadas no direito privado liberal-continental- europeu, quando há o atentado intencional contra bens e direitos do outro-eu, no intuito da reparação/compensação, não como sanção/cerceamento deliberativo. Daí a percepção que ilícito civil só existe com a existência de culpa, dano e nexo causal.

A responsabilidade se legitima como garantidora da Segurança Jurídica, na certeza, clareza, objetividade e estabilidade (amparado pela força coercitiva de natureza indenizatória), sem se tornar meio de colonização e opressão da autonomia pessoa e da intersubjetividade. 

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1 No original, em inglês: “[...] damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a person to punish him for his outrageous conduct and deter him and others like him from similar conduct in the future”.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

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