Migalhas de Responsabilidade Civil

Dano indireto indenizável e reflexões sobre o Enunciado 560 da VI Jornada de Direito Civil do CJF

Andrea Cristina Zanetti e Erik Gramstrup abordam o dano indireto indenizável e reflexões sobre o Enunciado 560 da VI Jornada de Direito Civil do CJF.

14/6/2022

A noção do dano indireto ou reflexo ainda é objeto de discussão pela doutrina brasileira e seu sentido poderá variar conforme o ordenamento jurídico analisado. Durante a evolução do regime jurídico do common law, no século XVIII, a reparação do ilícito (Torts), na perspectiva do dano direto, era tratada como trespass e o exemplo clássico era dado pelo ato de alguém atirar uma pedra atingindo outrem; o dano indireto, por sua vez, denominado trespass on the casei, cuidava da ausência de uma ação, a exemplo de alguém que tropeçava em um bastão deixado no chão e vinha a se ferir. Em síntese, os exemplos tratavam de danos provocados por ação, na modalidade direta, e danos decorrentes da negligência do ofensor, na modalidade indireta.ii    

Nos sistemas romano-germânicos, o dano indireto tem seguido outras linhas e sentidos e houve certa resistência quanto à sua aplicação. Na França, por exemplo, Geneviève Viney ressalta a evolução e o reconhecimento de determinada categoria de danos que ultrapassam os danos sobre a vítima, atingindo outras pessoas a ela relacionadas, por isso conhecidos como danos por ricochete (dommage par ricochet). O dano por ricochete é identificado especialmente em decisões do final do século XIX e reiteradas no século XX, em que há o reconhecimento aos parentes da vítima de uma indenização de  ordem moral (préjudice d'affection), atrelada especialmente às situações em que há homicídio ou lesão grave.iii Portanto, o dano indireto aqui verificado, diferentemente da situação indicada para os casos do common law,  não trata de situações de negligência, mas de danos provocados à esfera própria e pessoal de um terceiro vinculado à vítima do dano por afeição e parentesco.

No Brasil, a divisão e a noção do dano direto e indireto não apresentam propriamente um consenso, contudo pode-se considerar que, ao menos no estágio inicial do desenvolvimento da matéria, há semelhança parcial entre o conceito brasileiro e aquele presente no regime civil francês.

Tradicionalmente, são indicados como danos indenizáveis, em conformidade com o art. 403 do CC, aqueles relacionados direta e imediatamente com o fato gerador do prejuízo.  Trata-se da imediatidade do nexo causal. Logo, como justificar o dano indireto como indenizável nesse contexto?iv

Rafael Peteffi da Silva oferece uma noção do dano indireto ou reflexo ressaltando-o como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.v

Ocorre que um mesmo fato, provocado por ato ou omissão do agente infrator, poderá repercutir em danos de natureza diversa (danos emergentes, lucros cessantes, dano existencial, dano moral, entre outros) na esfera própria de pessoa distinta da vítima inicial, mas sempre preservado o liame jurídico com o dano suportado pela primeira vítima.

Logo, o lesado indireto apresenta dano próprio que é consequência do ilícito provocado pelo ofensor à vítima (lesado direto). É dano reflexo, pois atinge imediatamente um primeiro sujeito e indiretamente alcança os interesses dignos de proteção de um segundo sujeito lesado, sendo este vinculado àquele,vi mas não há vínculo prévio em relação ao ofensor e ao lesado indireto. A materialização do vínculo, consistente no dever de reparar, surge somente a partir do momento em que há a constatação do dano suportado pelo lesado inicial, com reflexos (de ordem extrapatrimonial e patrimonial) sobre o lesado indireto.

O liame jurídico dessa triangulação, portanto, justifica-se pelas teorias sobre o nexo de causalidade e, entre elas, ressaltamos o fundamento da subteoria da causalidade necessária, como um desdobramento da teoria da causalidade direta e imediata que se encontra expressa no art. 403 do CCB.

A subteoria em questão foi atribuída a Charles Dumoulin na obra de Agostinho Alvim, e, pela referida subteoria, admite-se que a causa próxima e a remota possam ser justificativas do dever de indenizar pelo agente ofensor, desde que, no segundo caso, haja a permanência de sua relação direta com o dano.vii

Logo, se o dano indireto é essencialmente decorrente da primeira relação jurídica geradora do dever de reparar – constituída pelos danos que a vítima sofre em virtude da ação ou omissão do ofensor –, a causa é única e direta, o que justifica o dever de reparar na segunda relação jurídica, não raras vezes, de consequência subsequente à primeira, constituída pelos danos que recaem sobre a pessoa distinta da vítima inicial, mas que com ela se encontra conectada.

Atualmente, o dano indireto ou reflexo (ricochete) é tradicionalmente apontado na hipótese tratada pelo art. 948 (incisos I e II) do Código Reale, de modo semelhante à previsão contida no art. 1.537 (incisos I e II) do Código Beviláqua, voltada para os casos em que ofensor, responsável pelo homicídio da vítima, ficava obrigado à prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, sem prejuízo do pagamento das despesas com o tratamento da vítima, funeral e luto da família. Todavia, essa compreensão se encontra atualmente ampliada com contemporizações dadas pela doutrinária e decisões judiciais dos tribunais.

É o que justifica o Enunciado n.º 560 da VI Jornada de Direito Civil do CJF ao afirmar que, “no plano patrimonial, a manifestação do dano reflexo ou por ricochete não se restringe às hipóteses previstas no art. 948 do Código Civil”.

Quanto ao tema, podem-se cogitar como dano patrimonial reflexo as despesas que uma família necessita realizar para adaptação do lar, ou mesmo mudança de residência, a fim de melhorar a vivência do parente ou amigo vitimado em acidente de trânsito com sequela grave e irreversível.

Mesmo assim, trata-se de uma matéria que necessita de cautelosa construção no Brasil, sobretudo para compreender a noção do dano indireto indenizável no contexto que extrapola as situações de morte e lesão corporal grave com reflexos de danos patrimonial e extrapatrimonial na esfera dos lesados indiretos que se vinculam à vítima (pessoa natural) por elos assistenciais ou afetivos. Daí a relevância dos estudos e das pesquisas sobre as hipóteses de ressarcimento de dano indireto ou reflexo.

Nessa perspectiva, não é simples encontrar decisões nesse sentido no Brasil. Isso porque a noção de dano indireto patrimonial não guarda um sentido comum e único nas decisões judiciais (acompanhando a ausência de uniformidade da doutrina).

Na recente decisão da 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 50000521920198210022, com a relatoria do Desembargador Carlos Eduardo Richinitti, julgado em 27 de abril de 2022, notamos situação fática que, inicialmente, poderia auxiliar na compreensão da modalidade de dano reflexo patrimonial indenizável, não vinculado à vítima, como pessoa natural.

Na situação fática, o dano ambiental consistiu no derramamento acidental de ácido sulfúrico pelo Navio Bahamas, atracado no Porto de Rio Grande, sendo atingido o estuário da Laguna dos Patos. O dano imediato foi ao meio ambiente, compreendido como direito difuso ao meio ambiente equilibrado, reconhecidos em ação civil pública precedente, com a condenação da empresa adquirente do produto químico, entre outras, na cadeia de transporte, à indenização aplicável. Além disso, dada a impossibilidade de pesca no local, com prejuízos às empresas do lugar e aos pescadores, bem como à população da região, reconheceu-se, em ação de indenização individual, o ressarcimento dos danos materiais indiretos aos pescadores que tiveram seus rendimentos afetados pelo acidente ambiental.viii

A decisão indica a teoria do risco integral a mitigar exigências relacionadas ao nexo de causalidade e aponta a responsabilidade da tripulação e do comandante do navio no caso, o que poderia levar à revisão do nexo de causalidade até aqui exposto, com a consideração do dano direto na perspectiva da cadeia de prejuízo subsequente (ou seja o dano imediato inclui os danos ao meio ambiente e aos pescadores).

De todo modo, duas decisões são apresentadas como justificativas do Enunciado supracitado. A primeira, da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconheceu-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos.ix

A segunda decisão, da 7.ª câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0159983-31.2006.8.26.0000, com relatoria da Desembargadora Constança Gonzaga, julgado em 26 de maio de 2011, condenou instituição de ensino particular ao ressarcimento de dano patrimonial indireto ao Estado, pelo furto do fardamento de um soldado (integrante do corpo de bombeiros do Estado), que se encontrava no interior de veículo parado em estacionamento ofertado pela instituição.x

Esteja, portanto, o leitor prevenido de que a identificação do dano como indireto, para além do exemplo simples e tradicional (art. 948 do CC), como favorece o enunciado em comento, é frequentemente uma questão em debate, demandando aprofundamento técnico na designação de certo dano como direto e outro, indireto.

De todo modo, ainda que a importância do tema mereça desenvolvimento detido, o que não será possível nestas breves linhas, observa-se cada vez mais a indicação da expressão “dano indireto” em cláusulas que visam estabelecer limites indenizatórios em relações civis e empresariais (habitualmente precedidas de negociação), o que tem sido reconhecido como válido por decisões judiciaisxi e que, atualmente, encontra reforço nos incisos I a III, além do caput do art. 421-A do CCB, incluído pela lei 13.874/19. Tais cláusulas, que versam sobre direitos disponíveis, não incluem os casos de responsabilidade por culpa grave e dolo, sendo sua aplicação restrita aos contratantes em situação de paridade no âmbito da responsabilidade contratual, permanecendo resguardado o terceiro lesado que está amparado na responsabilidade extracontratual.

 

__________________

i GRAMSTRUP, Erik. O ‘Tort’ anglo-saxão e norte-americano, in da Estrutura à função na responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) a professor Renan Lotufo. Coord. Alexandre Guerra… [et. al.], Indaiatuba: Foco, 2021, p.532.

ii TESAURO, Paolo; RECCHIA, Giorgio. Origini ed evoluzione del modelo del “torts”. In: MACIOCE Francesco (a cura di). La responsabilitità civile nei sistemi di common law. Padova: Cedam, 1989. v. I, p. 143 e 147.

iii VINEY, Geneviève. Traité de droit civil: introduction à la responsabilité. 2. ed. Paris: LGDJ, 1989. p. 150-151.

iv ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 341.

v SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e  de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul./dez. 2012.

vi ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe. Novo tratado de responsabilidade civil cit., p. 402.

vii ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jurídica e universitária, 1965, p. 338-339.

viii TJRS, 9.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 50000521920198210022, Rel. Des. Carlos Eduardo Richinitti, j. 27.04.2022. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2022.

ix STJ, 4.ª Turma, REsp n.º 753.512/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, relator para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 16.03.2010, DJe 10.08.2010. Disponível aqui. Acesso 30.05.2022.

x TJSP,  7.ª Câmara de Direito Público, Foro de Marília – 5.ª Vara Cível, Apelação Cível n.º 0159983-31.2006.8.26.0000, Rel. Constança Gonzaga, j. 26.05.2011, registro 1.º.06.2011.

xi Nessa linha: TJMG, 14.ª Câmara Cível, Apelação Cível  n.º 1.0024.13.304475-0/001, Rel. Des. Cláudia Maia, j. 27.04.2017, publicação da súmula em 05.05.2017.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.