Migalhas de Responsabilidade Civil

Nem tudo que reluz é ouro: a Responsabilidade civil dos influenciadores digitais

Marilia Sampaio e Thainá Bezerra Miranda falam da Responsabilidade civil dos influenciadores digitais.

9/6/2022

Diante do surgimento e da ascensão da internet, destacou-se uma nova categoria de profissionais - a dos influenciadores digitais -, que são os maiores difusores de produtos ou serviços de diversas marcas, visto que são acompanhados diariamente por milhares de seguidores. Em apenas um “clique” milhares de potenciais consumidores são alcançados, público que dificilmente seria atingido por outro meio ou canal de comunicação.

Os influenciadores digitais se utilizam do seu forte poder de persuasão junto ao público para a venda de produtos e serviços, e sua influência independe do número de seguidores que possuem, pois ela é medida através do engajamento dos seus seguidores com o conteúdo postado. Por essa razão, têm sido cada vez mais responsabilizados por prejuízos experimentados por consumidores insatisfeitos com os produtos e serviços adquiridos e que não atenderam às suas expectativas.

Um exemplo disso foi a informação veiculada pelo portal do UOL notícias, de que conhecidos influenciadores como Rafa Kalimann, Jojo Toddynho, Luisa Sonza, Carla Diaz e outros, em um total de 21, foram processados, em razão da suposta propaganda enganosa de um iPhone. Os referidos influenciadores acabaram sendo citados no processo movido pelo consumidor, que alega não ter recebido os dois celulares que teria comprado. O consumidor afirma que somente se sentiu confiante para comprar com a empresa em razão da credibilidade dos influenciadores que estavam fazendo a propaganda, razão pela qual entendeu que eles também seriam responsáveis pelos prejuízos e danos sofridos, pois foram as propagandas informando sobre a solidez e confiabilidade da empresa nas redes sociais que o fizeram crer que a fornecedora do produto era confiável e a entrega do produto seria realizada.1  

O caso aconteceu em 2018 e a ação tramita na 4ª Vara Cível de Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro.

Tal fato nos leva a questionar: Qual é o limite da responsabilidade desses influenciadores digitais pelas ações publicitárias veiculadas em suas redes sociais?

Pode-se dizer que os influenciadores digitais são indivíduos que utilizam seu carisma e grande poder de persuasão para incentivar novos hábitos de consumo por meio de produção de conteúdo próprio e fomentar o consumo de produtos e serviços. Segundo a plataforma estadunidense, Insights for Professionals, os microinfluenciadores não são celebridades, mas podem atuar de maneira mais eficaz que muitos perfis famosos.

Para Gabriel Weimann, presidente do Departamento de Comunicação e professor associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Haifa, o influenciador pode ser definido como: “usuário que tem a capacidade de persuadir uma rede de contatos por meio da propagação de informações, exercendo uma espécie de autoridade, permitindo que suas mensagens sejam transmitidas de forma mais rápida e com maior credibilidade”2

Portanto, influenciadores digitais são indivíduos que exercem demasiada influência sobre um determinado público e, através de diálogos informais com seus seguidores, tem o poder de influenciar a mudança de opiniões e padrões comportamentais, pois eles possuem a ideia, a impressão de que os influenciadores são indivíduos mais acessíveis, próximos a eles, já que são alcançados por um meio informal e, até há pouco tempo, pouco tradicional, o que muitas vezes faz com que percam a percepção do que é publicidade e o que é natural.

Assim, a contratação dos influencers tornou-se uma alternativa para empresas que apostam que o público-alvo de divulgação está justamente nos perfis desses criadores de conteúdo, e não estão errados. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Qualibest, os influenciadores digitais são a segunda fonte de informações para a tomada de decisão na compra de um produto, perdendo apenas para amigos e parentes.3 .

Analisando isso, percebe-se que os influenciadores digitais estabelecem com seus seguidores uma relação de consumo conexa à relação principal, atuando assim como “ajudantes” para que esta última aconteça, pois é certo que sem a divulgação dos influenciadores digitais, as marcas teriam mais dificuldade para alcançar um grande público, motivo pelo qual a utilização dessas personalidades como seus porta-vozes têm se tornado cada vez mais comum.

Sendo assim, na relação de consumo entre a empresa fornecedora do produto e/ou serviço divulgado e o consumidor atraído pela credibilidade da celebridade que divulga a propaganda nas redes sociais, os influencers digitais podem ser enquadrados no conceito de fornecedor por equiparação, devido à criação de conteúdo, facilitação da comercialização e ampla divulgação dos produtos e serviços de consumo realizados por eles, atividades que lhes geram lucro.

No fornecimento por equiparação, a relação de consumo conexa contamina a relação principal, que pode ser de consumo, e atrai a incidência do arcabouço normativo consumerista. Claudia Lima Marques resumiu a teoria do fornecedor equiparado, definindo-o como: “aquele terceiro na relação de consumo, um terceiro apenas intermediário ou ajudante da relação de consumo principal, mas que atua frente a um consumidor ou a um grupo de consumidores como se fornecedor fosse”4

Basicamente, o fornecedor por equiparação seria um terceiro, que serve como ajudante na aproximação entre as marcas e os consumidores para que a relação principal entre consumidor e fornecedor se realize, atuando perante aquele – no caso dos influencers, atuando perante os seguidores – como se fornecedor fosse. O intermediário seria o responsável pela relação conexa à principal, por possuir uma espécie de poder de influência na relação com o consumidor, como é o caso dos influenciadores digitais.

Ao enquadrar o influencer como fornecedor por equiparação, ele se torna parte integrante da cadeia produtiva de consumo e, ao ter uma atuação desregrada, causando prejuízos ao consumidor, ofendendo os princípios da boa-fé objetiva, da confiança e da função social dos contratos, deve ser responsabilizado de forma objetiva.

Dessa forma, à luz do artigo 7º, parágrafo único, do CDC, havendo mais de um agente envolvido na cadeia de consumo, todos responderão solidariamente pela reparação do dano, sendo que a responsabilidade dos agentes envolvidos na atividade de colocação de produto ou serviço no mercado de consumo é de natureza objetiva, não se fazendo necessária a presença da culpa para que se configure o dever de reparar o dano.

Portanto, todos os responsáveis solidários respondem pelo descumprimento de seus deveres, não havendo necessidade de comprovação de culpa, visto que a natureza da responsabilização é objetiva.

Nessa mesma linha, estabelece o artigo 422 do CC5 que os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé6. Relacionado a esse artigo, o Conselho de Justiça Federal emitiu o Enunciado 36356, o qual estabelece que são de ordem pública os princípios da probidade e da confiança, motivo pelo qual cabe à parte lesada demonstrar apenas a existência da violação desses princípios, não havendo necessidade da demonstração de culpa.

Portanto, tomando como base no enunciado, havendo violação do princípio da confiança e da probidade pelo influenciador digital, não há necessidade de que o ofendido comprove a culpa do criador de conteúdo, devendo apenas demonstrar a violação desses princípios.

Logo, entende-se que o influenciador passa a responder de forma objetiva, levando em consideração a relação de confiança entre os influenciadores e potenciais consumidores, fazendo com que, ao se depararem com um anúncio veiculado por um influenciador, os consumidores criem legítimas expectativas, as quais devem ser protegidas e, caso contrariadas, causando prejuízos, geram dever de reparação.

Ressalta-se, portanto, a importância de o influenciador atentar-se à veracidade das informações repassadas, além de agir com cautela ao realizar a publicidade, de forma que não cause prejuízos à saúde física e/ou mental do consumidor.

Preceitua Nelson Rosenvald7 que a melhor solução para proteger os três polos dessa relação de consumo (influenciadores, marcas, seguidores) demanda o seguinte:

“(...) Um ônus de informar qualificado a quem contrata a celebridade; um “dever de se informar” por parte de quem empresta a sua fama a uma publicidade respeitante às qualidades e riscos daquilo que comercializará e, uma percepção mínima por parte do público do que objetivamente consiste em uma “expectativa” e o que de fato aquele produto possa lhe proporcionar e, além disso, se efetivamente vale a pena se vincular com aquele fornecedor.”

Nessa mesma linha, afirma Gustavo Tepedino que “em matéria de informação, tão importante quanto a cooperação do devedor é a cooperação do credor”, pois também é dever do credor esforçar-se para obter as informações necessárias, relevantes e acessíveis sobre o produto/serviço que pretende anunciar e, caso contrário, deixaria de agir conforme a boa-fé objetiva, assim como os representantes das marcas que falham com seu dever de informação. Porém, ressalta o autor que deve ser ponderada a assimetria informacional entre as partes e o grau de vulnerabilidade do credor da informação, visto que, “quanto maior a assimetria, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar”8

O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária9, em suas normas10, define os princípios éticos que devem nortear a publicidade e, entre eles, está o cuidado com o depoimento de pessoas famosas, estabelecendo que esses indivíduos devem ter uma atenção especial às recomendações do Código.

Também prevê o Código que o anúncio testemunhal da pessoa famosa não deverá ser estruturado de maneira que iniba o senso crítico do consumidor em relação ao produto, além de estabelecer que o anunciante que recorrer ao testemunho de pessoa famosa deve ter presente a sua responsabilidade para com o público.

Observa-se, portanto, que o dever de informação alcança os contratantes e os influenciadores. Os criadores de conteúdo não suportam sozinhos o ônus de atentar-se às especificidades dos produtos divulgados, visto que as marcas também devem lhe prestar as devidas informações, mas tal fato não os exonera do dever de verificar os riscos de anunciar determinado produto ou serviço e a qualidade deles, pois os influencers também têm o dever de ser informar sobre o que está sendo veiculado, sob pena de responderem solidariamente.

Segundo o STJ, o anúncio da oferta integra o contrato e, assim, o fornecedor (direto ou indireto) se responsabiliza pelas expectativas que a publicidade desperta no consumidor, o que exige do anunciante, nesse caso, do influenciador digital, os deveres de lealdade, confiança, cooperação e informação, sob pena de responsabilidade11. Portanto, considerando que os influenciadores digitais obtêm vantagem econômica com os anúncios e demais atividades produzidas em suas plataformas digitais, é necessário que assumam o ônus de sua atividade caso não se comportem de maneira proba.

O ex-Ministro do STJ, Castro Filho, ao proferir seu voto no Recurso Especial 578.777/RJ, afirmou que a propaganda, em alguns casos, vincula um produto à imagem de determinada pessoa. Essa estratégia é utilizada para “fazer crer que a coisa anunciada tenha as vantagens apregoadas pela pessoa que as afirma. E o efeito positivo do anúncio dependerá do prestígio público de quem faz a propaganda”12

Portanto, o marketing de influência é muito utilizado atualmente, em razão da possibilidade de agregar as características da celebridade anunciante que, graças ao seu prestígio, contribui com a valorização do produto e estimula o consumo do bem ou serviço divulgado.

Nesse sentido, Bruno Miragem13, também defensor da responsabilização objetiva dos influenciadores, comunga que devemos nos atentar para o fato de que a credibilidade das celebridades é transferida para o produto e/ou serviço divulgado, criando assim uma ponte entre fornecedor e consumidor, motivo pelo qual os influencers devem arcar com o ônus de sua atividade.

Assim, considerando todos os argumentos expostos e enquadrando os influenciadores digitais como fornecedores por equiparação, conclui-se que, em razão dos influencers serem integrantes da cadeia de consumo, são responsáveis de forma solidária e objetiva por qualquer possível dano causado ao consumidor acerca dos produtos/serviços divulgados, pois os criadores de conteúdo, além do fornecedor principal, são incentivadores do consumo do bem/serviço anunciado.

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1 Disponível aqui.

2 WEIMANN, Gabriel. The influentials: people who influence people. Albany: State University of New York Press, 1994.

3 PACETE, Luiz Gustavo. Meio e mensagem. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 23/06/2020.

4 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 104

5 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022

6 Art. 422. Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação.

7 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. P. 212.

8 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. 09 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05.05.2022

9 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA – CONAR. Disponível aqui.

10. “2.1. O anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código. 2.2. O anúncio apoiado em testemunhal de pessoa famosa não deverá ser estruturado de forma a inibir o senso crítico do consumidor em relação ao produto. 2.3. Não será aceito o anúncio que atribuir o sucesso ou fama da testemunha ao uso do produto, a menos que isso possa ser comprovado. 2.4. O Anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa deverá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua responsabilidade para com o público.”

11 STJ, REsp 1.365.609-SP (2011/0105689-3), rel. Min.Luis Felipe Salomão, 4ªT., j.28.04.2015

12 STJ, REsp 578.777/RJ (2003/0162647-7), rel. Min. Castro Filho, 3ª T., j. 24.08.2004

13 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 281.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.