Inúmeros indicadores apontaram a intensificação das mudanças climáticas diante de ações antrópicas nos últimos anos. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), divulgado no início deste ano, porém, concluiu que as mudanças climáticas já estão causando danos ao planeta e aos seres humanos1.
O planeta Terra está enfrentando as consequências negativas causadas por diversas condutas humanas que, ao promoverem o aumento da emissão de gases de efeito estufa (GEE), estão elevando anormalmente a temperatura média do planeta. Em termos dogmáticos, essas consequências negativas na composição da atmosfera mundial se traduzem no próprio dano ao clima ou danos climáticos, mas as ações antrópicas não se limitam a esses, cada vez mais o meio ambiente e a população vêm sentindo seus efeitos.
As mudanças climáticas estão aumentando a frequência de eventos climáticos extremos, como o derretimento de geleiras, o aumento do nível do mar, as enchentes, as ilhas de calor e as subsequentes secas e queimadas, e, consequentemente, estão causando danos ambientais e danos às pessoas em escala mundial. No Brasil, os ecossistemas e a população já estão enfrentando danos decorrentes das mudanças climáticas nos últimos anos. Diversos relatórios e reportagens nacionais evidenciam os danos causados, por exemplo, pelo aumento anormal das chuvas no Sudeste e no Sul e pelo aumento da estiagem no Norte e no Nordeste2.
Para além dos debates científicos e socioeconômicos, de escala mundial, a respeito do fenômeno do aquecimento global e da necessidade premente de limitação da variação da temperatura do planeta Terra, a atribuição do ônus específico de reparar os danos decorrentes das mudanças climáticas antrópicas ganha importância ímpar na sistemática nacional.
A imputação do dever de indenizar não foge à regra geral da responsabilidade civil ambiental, devendo-se comprovar os pressupostos clássicos da responsabilidade civil objetiva: dano, conduta antijurídica e nexo de causalidade. À luz do artigo 14, § 1º, da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), instituída pela lei 6.938/1981, sabe-se que
Art 14. […] § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
Todavia, apurar se a conduta humana deu causa ao dano climático e/ou aos danos daí decorrentes torna-se o grande desafio contemporâneo no âmbito das mudanças climáticas.
Evidentemente nem todos os danos decorrentes das mudanças climáticas serão corrigidos pelo instituto da responsabilidade civil, mormente diante da indeterminação das fontes emissoras de GEE e da extensão mundial das consequências negativas. Uma fonte emissora de GEE localizada na América do Norte, por exemplo, pode desencadear mudanças climáticas que causarão danos ambientais em países da América do Sul. Como corolário lógico, a adoção de políticas públicas regulatórias de prevenção e reparação de danos urge no contexto mundial3.
Sob outra perspectiva, a questão da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática nacional pode ser resolvida normativamente. Da leitura das diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela lei n. 12.187/2009, depreende-se que a norma estabeleceu a responsabilidade civil por danos climáticos diante da contribuição e do efeito da geração de fonte emissora de GEE para a subsequente mudança climática.
Sendo importante citar que os incisos I e III do artigo 3º da PNMC dispõem sobre a correlação entre a participação da fonte emissora e a responsabilidade pelo lançamento e o impacto negativo no clima terrestre:
Art. 3º A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional, e, quanto às medidas a serem adotadas na sua execução, será considerado o seguinte:
I - todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático;
[...]
III - as medidas tomadas devem levar em consideração os diferentes contextos socioeconômicos de sua aplicação, distribuir os ônus e encargos decorrentes entre os setores econômicos e as populações e comunidades interessadas de modo equitativo e equilibrado e sopesar as responsabilidades individuais quanto à origem das fontes emissoras e dos efeitos ocasionados sobre o clima; [...].
Em complementação ao PNMC, a alínea e) do inciso III do artigo 3º da PNMA definiu poluição como "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos".
O legislador nacional estabeleceu o dever de indenizar os danos climáticos a partir do grau de tolerabilidade de emissão de GEE de acordo a atividade normalmente desenvolvida. Na precisa síntese de Annelise Steigleder, “o cumprimento ou não dos limites máximos de emissão de GEE consiste em um critério muito importante para a imputação da responsabilidade civil”4.
Sempre bom pontuar, nesse contexto, que a antijuridicidade da conduta também está presente na responsabilidade civil objetiva, posto que, conforme elucida Rafael Peteffi da Silva, “o ordenamento jurídico cobre com o manto da antijuridicidade os fatos causadores de danos que estiverem dentro da área de atuação de determinado agente, ainda que a conduta normalmente desenvolvida, apesar de perigosa, não seja considerada, per se, ilícita”5.
A partir dessas perspectivas, portanto, depreende-se que o pressuposto do nexo de causalidade deve ser analisado considerando a contribuição da emissão de GEE, implicando na relação direta entre a fonte poluidora e a alteração do clima. Uma empresa que ultrapassa o limite do tolerado pela norma jurídica, ainda que licenciada, está poluindo (conduta evidentemente antijurídica) e causando danos climáticos, porque está elevando objetivamente a temperatura do planeta e, ao menos tempo, violando o escopo de proteção da norma ambiental.
Dessa forma, ao que tudo indica, as teorias clássicas do nexo de causalidade serviriam para resolver o problema da imputação do dever de indenizar os danos climáticos na sistemática do ordenamento jurídico nacional. Mais precisamente, tanto a teoria da causalidade adequada quanto a teoria do escopo de proteção da norma violada serviriam de importante mecanismo para aferição do nexo de causalidade ao tratar de danos climáticos6.
Longe de esgotar esta riquíssima temática, este pequeno ensaio buscou evidenciar um dos maiores desafios mundiais na contemporaneidade: as mudanças climáticas. É importante destacar que o clima terrestre sempre passou por ciclos naturais de aquecimento e resfriamento, mas as mais diversas condutas humanas estão alterando de forma anormal estes ciclos climáticos: a queima de combustíveis fósseis, as atividades industriais, o transporte, a agropecuária, o descarte de resíduos sólidos, o desmatamento etc.
Urge, portanto, a necessidade de se avançar no combate às mudanças climáticas, especialmente na limitação da emissão de GEE para prevenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado7, numa perspectiva homem-natureza8. Da mesma forma que é premente o reconhecimento do dever de indenizar do agente-poluidor frente aos danos climáticos na realidade nacional, considerando como lente de análise a emissão de GEE acima dos índices normalmente permitidos para a atividade normalmente desenvolvida9.
________________
1 Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Climate Change 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022.
2 Para conhecimento, ler: MUDANÇAS climáticas: como o aquecimento global afeta a vida no Brasil. National Geographic, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2022.
3 Esse é, inclusive, o entendimento da Diretiva 2004/35/CE do Parlamento Europeu.
4 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (orgs.). Direito e mudanças climáticas: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010.
5 PETEFFI DA SILVA, Rafael. Antijuridicidade como requisito da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, 2019.
6 Para maiores considerações, cf. JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. p. 671-687, 2020.
7 No Brasil possuímos o projeto de lei 1308/2021, atualmente em análise na Câmera dos Deputados, que visa instituir a Política de Promoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, definida em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU).
8 Expressão cunhada por BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano e ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, a. 3, n. 9, p. 10-52, jan./mar. 1998.
9 Os litígios climáticos estão crescendo no âmbito nacional e internacional. Para maiores considerações sobre o assunto, ler: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Desafios da responsabilidade civil frente às mudanças climáticas. Migalhas, 23 mar. 2021. Disponível aqui; e STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Os estudos de atribuição e a responsabilidade civil ambiental por danos climáticos. Migalhas, 13 abr. 2021. Disponível aqui.