Migalhas de Responsabilidade Civil

Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil

Igor de Lucena Mascarenhas e Rafaella Nogaroli abordam a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil.

24/5/2022

A Era Digital alterou profundamente o modelo de comunicação me'dico-paciente e os padrões da publicidade dos profissionais da Medicina. Em um mercado cada vez mais conectado e disputado, os médicos foram lançados no meio digital e levados a promover a publicidade médica como meio de divulgação do seu trabalho. Em especial, as mídias sociais trouxeram dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidade dos profissionais se conectarem com seus potenciais pacientes, mantendo-os informados sobre os seus serviços. Todavia, o grande desafio para os médicos é fazer publicidade e, ao mesmo tempo, adequar suas técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), erroneamente, diz que o médico pode fazer publicidade, porém, por vezes, confunde os conceitos de “publicidade” com “propaganda”. Enquanto a propaganda não tem conteúdo comercial, na medida em que visa propagar uma ideia, ideal e valores, como ocorre com a propaganda eleitoral, a publicidade está relacionada ao despertar de desejo de compra e aquisição, de valorização de determinado produto ou serviço com o intuito promocional.

O Código de Ética Médica (CEM/2019) apresenta a visão de que a Medicina é exercida sem finalidade comercial, conforme o inciso IX dos princípios fundamentais: a Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. Contudo, ao regulamentar a forma de comunicação dos médicos com o público, o CFM oscila nas denominações “propaganda” e “publicidade”. O Código de Ética Médica nomina a comunicação médica como “publicidade médica”, dedicando um capítulo exclusivo para tratar da matéria. Já a Resolução CFM 1974/2011, responsável por detalhar e regulamentar a comunicação médica com o público, apresenta na sua ementa que a normativa é responsável por “estabelecer os critérios norteadores da propaganda em Medicina, conceituando os anúncios, a divulgação de assuntos médicos, o sensacionalismo, a autopromoção e as proibições referentes à matéria”.

Paradoxalmente, o Código de Ética Médica estabelece que a comunicação médica em meios de comunicação em massa deve ter finalidade exclusivamente educativa e de caráter esclarecedor, conforme o art. 111, mas a Resolução CFM 1974/11 permite que os médicos façam publicidade em revistas, jornais, busdoors, outdoors, internet e TV. Ou seja, na prática, o CFM permite tanto a publicidade como a propaganda. Frise-se que a veiculação de informação de caráter pedagógico é propaganda, mas a veiculação da marca, endereço, imagens e serviços médicos é encarada como publicidade.

Partindo-se da premissa que é possível realizar as duas formas de comunicação para a população, é necessário observar que, em um mar de quase 550 mil médicos no Brasil, conforme dados da Demografia Médica em 20201, a publicidade, especialmente em ambiente digital, torna-se ferramenta essencial para obter destaque no mercado. O problema repousa nos limites e potenciais consequências ético-jurídicas decorrentes do exercício da publicidade médica. Considerando a obrigação de meio dos profissionais médicos, é vedada a promessa de resultado, bem como a exibição de imagens de pacientes.

De acordo com o art. 75 do CEM, é vedado ao médico “fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou imagens que os tornem reconhecíveis em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente”. Complementando o referido dispositivo, a Resolução 1974/11 do CFM proíbe o uso de antes/depois.

Em um mundo hiperconectado, a partir de rápida pesquisa nas redes sociais, observa-se que a norma é pouco seguida pelos profissionais, visto que, diuturnamente, enquanto Sociedade da Informação, somos bombardeados com resultados de terceiros e a exibição de resultados de pacientes.

Nesse contexto, propõem-se dois questionamentos:

1.     Os resultados postados pelos profissionais, além de antiéticos, podem ser enquadrados como ilícitos cíveis?

2.     A veiculação de resultados pode ser interpretada como promessa de resultado?

Em relação à primeira indagação, é incontroverso que a publicação de resultados de pacientes em rede social é uma possível infração ética expressamente vedada pelo CEM em seu art. 75 e pela Resolução CFM 1974/11 em seu art. 3º, “g”, porém o possível ilícito cível, apto a reverberar na esfera da responsabilidade civil, exige a falta de consentimento e o uso indevido da imagem do paciente.

Em linhas gerais, a publicidade médica deve abranger os princípios da licitude, veracidade, transparência e completude, de modo que ocorra a divulgação do profissional e, em paralelo, informe-se corretamente a população sobre cuidados/tratamentos médicos. A publicidade do profissional da Medicina submete-se à disciplina deontológica estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina, contudo, eventual abuso publicitário será eventualmente analisado na esfera civil, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista as relações contratuais do médico com o seu paciente são consideradas, pela jurisprudência atual majoritária, como relação de consumo e, quando presentes as figuras do consumidor e fornecedor (artigos 2º, 3º, 17, 29, todos do CDC), aplicar-se-ão as normas consumeristas de ordem pública, as quais vedam a prática de publicidade enganosa e abusiva (artigos 6º, IV, 30, 31, 35, 36, 38, todos do CDC), cuja inobservância pode dar ensejo à sanção (artigos 56, 60, 67, 68, 69, todos do CDC).

Especificamente em relação à publicidade médica no contexto da prática do “antes e depois”, comumente utilizada nas redes sociais para demonstrar os resultados da intervenção médica no paciente, quando há consentimento do paciente para uso da sua imagem, não se pode falar em responsabilidade civil do médico, apenas em potencial responsabilidade ética. Diante do exercício da autonomia do paciente em autorizar, de forma expressa ou tácita, a veiculação do resultado, não se torna possível que o paciente vise a responsabilização civil do profissional. Frise-se que o direito à imagem é disponível, nos termos do artigo 20, do Código Civil. Por outro lado, há limitação na esfera deontológica, segundo ditames do art. 75, do CEM, de modo que mesmo diante de eventual autorização, o profissional ainda pode ser responsabilizado eticamente.

Já na hipótese de não ter ocorrido autorização do paciente, o médico poderá responder civilmente pelo uso indevido da imagem e por violação aos direitos da personalidade. Ressalte-se que, ante o sigilo aos dados do paciente, o médico não deve veicular tais informações. Desta forma, há possivelmente dois ilícitos cíveis: violação do sigilo e uso indevido da imagem do paciente.

Em relação ao segundo questionamento proposto, destaque-se que a veiculação de resultados de pacientes em redes sociais apenas representa os tempos modernos de um oceano de superficialidade formado por ilhas de sucesso, beleza e bons resultados, enquanto os bastidores e maus resultados são submersos.

Ao veicular bons resultados dos pacientes, notadamente na área estética, o profissional acaba por difundir um ideal de beleza e de possibilidade terapêutica que é extremamente subjetivo. Como bem reforça William Osler, a Medicina é a arte da incerteza e a arte da probabilidade. Ou seja, a publicidade médica pode transparecer uma garantia de certeza e alcance daquilo que é incerto e, por vezes, inalcançável.

Essa veiculação de resultados pode representar violações ao processo de consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido), uma vez que as imagens veiculadas podem comprometer a percepção e compreensão do ato médico. Uma vez violado o consentimento do paciente, o médico poderá ser responsabilizado pela distorção causada no dever de informar. Paralelamente, as imagens poderão gerar uma possível responsabilidade decorrente da violação à legítima expectativa do paciente, isto é, da promessa de resultado, ainda que de forma implícita. Ao publicizar os resultados pretéritos, o profissional pode atrair uma obrigação de resultado, pois incute no paciente que aquele resultado individual e subjetivo pode ser replicado em terceiros.

Não se nega que as regras de publicidade médica precisam ser mais bem discutidas e atualizadas, porém há uma necessidade premente de que a utilização das imagens de pacientes ocorra mediante o consentimento dos retratados, ainda que se utilize devidamente as imagens no contexto da prática do “antes e depois” para publicidade, a fim de que haja a preservação e integridade na informação, processamento e exercício da autonomia por parte do potencial paciente. Paralelamente, o profissional deve ter a exata dimensão das possíveis consequências do uso (autorizada e não autorizada) da imagem dos seus pacientes. Em um mundo de aparências, a veiculação da realidade é a maior beleza que se pode exigir.

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SCHEFFER, Mário et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. p. 37

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.