A caracterização dos danos extrapatrimoniais no âmbito dos contratos de transporte aéreo há muito gera intenso debate em âmbito doutrinário, não havendo ainda consenso no campo jurisprudencial. Ante a histórica dificuldade da comprovação de lesão a um interesse existencial, defende-se, de um lado, que se deve presumir a ocorrência do dano (dano in re ipsa), quando perpetrado um ilícito no desenvolvimento da atividade de transporte, como, por exemplo, em casos de cancelamento ou atrasos de voo. De outra parte, no entanto, sustenta-se caber ao consumidor a prova de que houve a efetiva violação a direito da personalidade1, não se podendo concluir pela ocorrência de dano unicamente em razão de um ato ilegal efetivado pela companhia aérea.
O desenvolvimento da ideia de dano moral in re ipsa deve ser entendida no contexto da excessiva judicialização de diversos aspectos da vida social. De fato, não se pode ignorar a circunstância de que a ampliação desmesurada da litigiosidade tem como uma de suas causas a crença infundada de que o Poder Judiciário teria como um de seus escopos a transformação social, substituindo, deste modo, a atuação, muitas vezes deficitária, dos Poderes Executivo e Legislativo. O processo judicial tem-se transformado em instrumento de solução das mais variegadas mazelas sociais que afetam o país.
Debate-se, neste sentido, o custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Segundo a ANAC, no ano de 2017, as condenações judiciais decorrentes de demandas ajuizadas por passageiros representaram cerca de 1% dos custos e despesas operacionais das empresas aéreas brasileiras. De acordo com a Junta de Representantes das Companhias Aéreas Internacionais do Brasil (JURCAIB), este gasto, de aproximadamente R$ 311 milhões, é resultado de mais de 60.000 processos intentados contra as empresas de aviação nacionais. Relata-se ainda que o número de processos propostos por passageiros contra as aéreas saltou de 64 mil em 2018 para 109 mil, apenas entre os meses de janeiro e julho de 2019, de acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER). Segundo o diretor da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), em 2018 havia, em média, 174 ações por dia, elevando-se este número para 520, no primeiro semestre de 2019, de forma que a judicialização do setor no Brasil alcançou o custo de R$ 1 bilhão por ano.
Poder-se-ia argumentar, como modo de justificar os números apresentados, que as empresas de aviação aérea nacionais prestariam um serviço de péssima qualidade, ostentando números mais elevados de cancelamento e atrasos de voos, em comparação com a média internacional, e deixando de assistir os passageiros quando da ocorrência de alguma falha no exercício da atividade. Esta hipótese, no entanto, não parece coincidir com a realidade. Com efeito, segundo se noticiou, uma empresa americana operou, em 2017, 5.000 voos diários nos EUA, recebendo, ao longo do ano, cerca de 130 processos ajuizados por consumidores naquele país. Esta mesma empresa, que também tem funcionamento no Brasil, operou aproximadamente 5 voos diários no mesmo período, figurando como ré em 1.200 processos, embora siga protocolos similares em ambos os países2.
Ainda segundo dados fornecidos por Dany Oliveira, diretor da IATA, uma companhia aérea, com oferta global em 67 países, cuja participação no Brasil era de apenas 3%, possuía mais de 85% das causas judiciais alocadas em território brasileiro. Deve-se notar ainda que, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (ABEAR), cerca de 85% dos voos das empresas aéreas associadas partiram e chegaram nos horários previstos em 2018, enquanto nos EUA essa taxa alcançou o patamar de 82%, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e do Departamento de Transportes dos Estados Unidos. Outrossim, a taxa de falhas no manuseio de bagagens pelas aéreas nacionais, também em 2018, teria sido de 2,45 para cada mil volumes despachados, menos da metade da média mundial (5,68), segundo a Sociedade Internacional de Telecomunicações Aeronáuticas (SITA)[3]. Corroborando tais dados, o relatório “OAG Punctuality League 2019 – On time performance results for airlines and airports”, produzido pela consultoria britânica Official Airline Guide (OAG), especializada em inteligência de mercado de aviação, demonstra que a aviação brasileira ocupa posição de destaque mundial no quesito pontualidade4.
Em pesquisa no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, constata-se que a expressão “dano moral in re ipsa” é utilizada pela primeira vez5 em julgado do ano de 1997, em processo sob a relatoria do Min. Cesar Asfor Rocha6. Trata-se de caso em que autora era uma das passageiras do ônibus da empresa ré, causadora de um acidente de trânsito por imprudência e imperícia de seu motorista, que trafegava sem segurança, com lonas dos pneus soltas e descoladas, tendo a vítima sofrido lesões corporais que a incapacitaram temporariamente para o trabalho. O impacto do acidente causou ainda sequelas na coluna vertebral, reduzindo sua capacidade laborativa. Amparado na doutrina de Carlos Alberto Bittar, entendeu o relator pela desnecessidade da prova do prejuízo e fixou a compensação por dano moral no montante de 100 salários mínimos.
Em relação a casos de atraso de voo, o primeiro acórdão do STJ a aplicar a tese do dano moral presumido, e a mencionar expressamente o “dano moral in re ipsa”, data de novembro de 2009. Segundo se registrou na ementa, “o dano moral decorrente de atraso de voo, prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador se opera, in re ipsa, por força do simples fato da sua violação em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro”. Analisando-se o relatório e o voto do relator, constata-se que sequer se menciona a duração do atraso, entendendo-se pela existência de dano extrapatrimonial unicamente em razão do retardo da partida do voo.
Ante a dificuldade, portanto, da realização da prova das consequências ou prejuízos morais causados à vítima, tem-se declarado que o dano moral é in re ipsa, decorrendo inevitavelmente da ilicitude praticada.
Esta construção teórica, no entanto, parte de premissas equivocadas e parece não se sustentar ante as incongruências que apresenta. Com efeito, não se mostra correta a identificação do dano extrapatrimonial com seus efeitos, não constituindo o pressuposto anímico elemento ontológico da lesão existencial. A existência de sentimentos deletérios não serve à caracterização do dano moral, eis que impossível a sua aferição por meio de critérios objetivos. A dor e o sofrimento, embora muitas vezes se materializem nos casos de lesão não patrimonial, consistem em mera manifestação consequencial do dano, com este não se confundindo. Neste sentido, os nascituros, as crianças de tenra idade e os portadores de doenças mentais podem vir a sofrer danos extrapatrimoniais. Tal não se dá em razão da presunção (in re ipsa) da ocorrência de consequências morais negativas, que podem nem mesmo se fazer presentes no caso concreto, mas sim em razão da violação a direito da personalidade da vítima.
A tendência de utilização de presunções de dano, entretanto, nos casos envolvendo o transporte aéreo, tem sido revertida no STJ. De fato, já em 2018, no REsp 1484465/MG, decidiu-se que, embora comumente se considere presumido (in re ipsa) o dano moral decorrente de atraso de voo, o tema carecia de maior reflexão, exigindo aprimoramento das ponderações até então empreendidas7. Segundo a Corte, o reconhecimento da lesão extrapatrimonial in re ipsa, independentemente da duração do atraso e demais circunstâncias do caso, induz à conclusão de que “uma situação corriqueira na maioria - se não por dizer na totalidade – dos aeroportos brasileiros ensejaria, de plano, dano moral a ser compensado, independentemente da comprovação de qualquer abalo psicológico eventualmente suportado.”
Entendeu então o STJ que se faz premente a análise das circunstâncias que envolvem o caso concreto, para fins de comprovação da ocorrência de dano extrapatrimonial. A título exemplificativo, foram citadas certas particularidades que podem ser examinadas: i) a investigação da duração de tempo que foi gasto para solucionar o problema, ou seja, a real duração do atraso; ii) a verificação da oferta, pela companhia aérea de alternativas para melhor atender os interesses dos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da empresa aérea, com o escopo de mitigar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros.
A fixação de critérios objetivos, como os acima apontados, propicia maior segurança jurídica, oportunizando ainda que os fundamentos da decisão judicial sejam efetivamente conhecidos. A mera alusão à ocorrência do “dano moral in re ipsa” consiste em solução simplificada para os diversos e distintos problemas que emergem do fornecimento do serviço de transporte aéreo. Deste modo, se não se pode, de um lado, exigir que o consumidor comprove o prejuízo moral sofrido, como a dor e o sofrimento ocasionados pelo ato ilícito praticado, tampouco se deve exonerá-lo da atividade probatória ínsita à configuração do dano extrapatrimonial.
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1 Dispõe o art. 251-A do Código Brasileiro de Aviação, com redação dada pela Lei 14.034/2020: “A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.”
2 ALENCAR, Lais Facó; CATANANT, Ricardo; FENELON JUNIOR, Ricardo. O custo da judicialização no setor aéreo brasileiro. Jota. Disponível aqui. Acesso em 29 de ago. 2020.
3 ABEAR e associadas discutem judicialização no setor aéreo em evento em São Paulo. Disponível aqui. Acesso em 30 de ago. 2020.
4 No ranking de aeroportos de pequeno porte, Curitiba (4º lugar), Fortaleza (8º lugar) e Salvador (13º lugar) se destacam no cenário internacional. Considerando-se apenas os aeroportos de médio porte, o de Viracopos ocupa a 3ª posição no quesito pontualidade. Outros aeroportos, como o de Recife (4º lugar), o Santos Dumont (5º lugar), o de Belo Horizonte (6º lugar), o do Rio de Janeiro (8º lugar) e o de Porto Alegre (9º lugar), figuram entre os 20 aeroportos com maior média de pontualidade. Assim, dos 20 aeroportos de médio porte mais bem pontuados, 5 se situam no Brasil. Por fim, relativamente aos aeroportos de grande porte, destacam-se os de Brasília (3º lugar) e o de Congonhas (6º lugar). Os dados podem estão disponíveis aqui. Acesso em 30 de ago. 2020.
5 Foram encontrados 785 julgados em que a locução “dano moral in re ipsa” foi utilizada no STJ.
6 O mesmo entendimento foi adotado pelo STJ no REsp 23575/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 09/06/1997.
7 STJ, REsp 1.584.465/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018.