Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos emancipados no ambiente virtual

Rapahel Carneiro Arnaud fala sobre a responsabilidade civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos emancipados no ambiente virtual.

5/5/2022

A popularização dos computadores pessoais inundou nossa rotina de novos hábitos que, em geral, encurtaram distâncias entre ausentes, e, como tudo tem um preço, criaram “ausências” entre presentes.

O avanço alterou conceitos que pareciam imutáveis. À guisa de exemplo, o termo “companhia”, transcrito no inciso I, do art. 932, do CC/2002, hoje ganha novo significado. Se aos pais sempre foi imputado os deveres de vigilância, guarda e educação dos filhos,1 impedindo que algo de mau os aconteça e, através desse complexo processo que chamamos educação, que sejam eles, os filhos, os promotores de más condutas, não há como negar que atualmente essa “guarda” precisa ser exercida fora do alcance dos seus olhos.

A rua da geração passada, na qual brincávamos sob olhares atentos, ganhou a dimensão do mundo inteiro, trazendo a reboque a majoração dos riscos aos quais nossos filhos estão expostos e podem expor os outros.

Diante de tudo isso, velhos atos nocivos que ficavam restritos aos presentes, como a prática de bullying, agora podem ser eternizados pela rede – através do cyberbullying - transformando um anônimo em celebridade mundial, no pior sentido que a essa posição de destaque possa carregar.

Como é sabido, em matéria de responsabilidade dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, migramos do modelo da responsabilidade civil subjetiva, para o da objetiva.

Dessa maneira, os pais respondem independentemente de culpa pelos danos causados por seus filhos, seja em ambiente físico ou virtual, mas o mesmo pode ser garantido quando estes filhos já estejam emancipados?

Estes breves escritos têm o intuito de enfrentar a matéria, cotejando os atuais limites da autoridade parental, o exercício das liberdades individuais pelas crianças e adolescentes e a responsabilidade civil objetiva imposta aos genitores.

Com o receio de que seus filhos se envolvam em ilícitos virtuais, genitores têm se utilizado de ferramentas para sua constante vigilância, e.g o aplicativo Life 360, que garante acesso em tempo real à localização dos usuários, ou, com acesso ainda mais amplo, o Teen Safe, que funciona como espião, garantindo aos pais acesso às conversas, postagens e até mesmo fotos e vídeos gerados pela câmera do celular do “protegido” ou recebidos de outros usuários, comprometendo, desta forma, não apenas a privacidade e a intimidade dos filhos mas, de igual modo, de terceiros que participaram dos diálogos.

Embora o controle parental na internet tenha permissão legal expressa no art. 29 do Marco Civil da Internet, como forma de garantir o dever de vigilância pelos pais, tal diploma disciplina que esse comando deve se dar em consonância com o ECA, que reafirma os direitos de personalidade de crianças e adolescentes destacando o exercício da autonomia, donde se extrai a autorrealização/autodeterminação informativa como princípio a ser respeitado.2

O desafio dos genitores reside, portanto, no alcance da fórmula de ouro que assegure uma “fiscalização” saudável do trânsito dos filhos pela internet sem comprometer as garantias fundamentais destes e de terceiros com os quais mantenham contato.

Não se quer aqui rechaçar, em absoluto, a utilização dos aplicativos mencionados (Teen Safe, Life 360 ou outros), mas, como dito, chamar a atenção para a importância da compreensão de que tal conduta deve se dar na exata proporção da necessidade, isto é, da imaturidade dos filhos para lidar com o ambiente cibernético, de tal modo que quanto mais evoluídos estes se mostrarem, menor deve ser a interferência dos genitores.3

Como referimos, o art. 932, I, disciplina: “são também responsáveis pela reparação civil os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia”.

Num país de “famílias mosaico”, é forçoso perguntar. I) a “autoridade” mencionada se confunde com a guarda? II) Se o menor houver causado o dano na companhia do genitor guardião, aquele que não detém a guarda será igualmente responsável, ou somente responderá subsidiariamente, ou mesmo, não responderá? III) Considerando o termo “e em sua companhia”, se o menor houver praticado o ato na ausência de ambos os genitores, não seriam estes responsabilizados? Afinal, é ou não é independente de perquirição de culpa a responsabilização civil dos pais pelos atos praticados por seus filhos menores, inclusive no âmbito virtual?

Antes de qualquer outra consideração referente ao “Direito dos Danos”, é mister aclararmos, em sede de Famílias, que os institutos da “guarda” e da “autoridade parental” não se confundem. É isso que se extrai da leitura conjunta dos artigos 1.632 e 1.634 do CC/2002. Portanto, mesmo o genitor que não detiver a guarda de seus filhos continua em pleno exercício de sua autoridade parental, não havendo que se falar em causa de exclusão de responsabilidade por essa razão.

É necessário ainda mais cuidado com a expressão “sob sua companhia” também constante do mencionado 932, I. Como mencionado, ela pode nos conduzir à falsa impressão de que o dispositivo exige a presença física dos pais no momento da conduta geradora do dano para que se fale em responsabilidade civil objetiva. Ora, se assim fosse, o que teríamos seria persecução da culpa in vigilando e não uma responsabilização independente de sua comprovação.4

O enunciado 450, da V Jornada de Direito Civil, sugere a solidariedade passiva de ambos os genitores na responsabilidade, mas, preserva a possibilidade de regresso caso haja culpa exclusiva de um dos genitores em não exercer o dever de cuidado a contento.

Ou seja, a culpa seria irrelevante para o ressarcimento do lesado, podendo este exigir a totalidade da indenização a qualquer dos genitores, mas, essa culpa continuaria a ter relevância na relação interna da solidariedade passiva, instituída por lei, permitindo ao não culpado se ressarcir daquilo que despendeu.

Soa-nos destoante da realidade, entretanto, imaginar a culpa exclusiva de um dos pais pela prática da maioria dos atos potencialmente lesivos praticados por seus filhos. Mal comparando, esse pensamento segue a mesma ratio daquele que acredita ser possível identificar numa relação matrimonial que perdurou por décadas um único cônjuge responsável pelo desenlace.

Não nos parece que a culpa dos pais pelo dano causado por seu filho possa ser extraída exclusivamente de sua desatenção no momento da conduta danosa (dever de cuidado), mas, que a má ética do menor tenha derivado de desatenção ao dever de educação que a ambos os pais é imposto e, dessa maneira, concorreriam em igualdade na responsabilidade, devendo o ressarcimento alcançar, no máximo, a sua quota como codevedor na relação interna da solidariedade passiva, nos moldes da primeira parte do artigo 283 do CC/02.

Impende reconhecermos, contudo, não haver uma equação garantidora de que uma boa educação formará jovens probos, mas, não é isso que está em causa, já que a responsabilidade pelas condutas será, como tantas vezes já dito, objetiva, e os pais suportarão as margens de álea resultante da criação do filho que trouxeram ao mundo.

Marcamos posição, portanto, pela responsabilização solidária de ambos os pais, independentemente de ser o guardião ou ter presenciado a conduta geradora do dano, de forma exclusiva. Entendemos que a norma possibilita, quando muito, o direito de regresso daquele que suportou todo o prejuízo para se ressarcir em 50% do que pagou, enquanto codevedor, havendo solvência do outro genitor.

No parágrafo único do artigo 5º, o CC/2002 traz as hipóteses pelas quais cessará a incapacidade civil dos menores.

Os referidos incisos prenunciam três formas de emancipação, a emancipação legal, incisos II a V; a emancipação voluntária, primeira parte do inciso I; e a emancipação judicial, segunda parte do inciso I.

Como o nome sugere, na emancipação legal a incapacidade cessará em virtude de lei, observadas as situações previstas nos incisos citados acima. Na emancipação judicial, o mesmo fenômeno ocorre, desde que o menor conte com ao menos 16 anos e, por sentença, o juiz, o emancipe, após a oitiva do tutor.

Na emancipação voluntária, contudo, é a própria ação volitiva dos pais5, autônoma de homologação judicial, a impulsionadora da cessação da incapacidade. Diante disso, não é difícil imaginar que esses mesmos pais pudessem enxergar como solução para as constantes condenações de reparação civil resultante dos danos causados por seu rebento, a sua emancipação.

Dessa maneira, poderiam pensar que blindariam seu patrimônio, ao tornar o filho infrator plenamente capaz para os atos da vida civil, e que, a partir dali ele, o filho, responderia com seus próprios bens pelos danos eventualmente praticados. O próximo passo seria óbvio: não conferir patrimônio a esse filho que ainda é economicamente dependente. Afinal, quem não tem patrimônio, via de regra não indeniza, dessa maneira os lesados não seriam ressarcidos. Hipótese que num olhar apressado parece ter sido contemplada pelo artigo 928 do Código Civil.

Seria o plano perfeito, mas o Direito não é dado a esse tipo de chicana.

Aclare-se que a responsabilização do menor através de patrimônio próprio prevista no artigo 928, é subsidiária, e somente terá lugar nas hipóteses nas quais os pais não disponham de bens suficientes para a integral reparação do dano suportado pelo lesado6 ou, quando estes genitores não estiverem obrigados a fazê-lo. Entretanto, já é entendimento pacífico de nossa Suprema Corte (RTJ 62/108, RT 494/92) que a emancipação somente desobrigará os pais pelos danos praticados pelos filhos quando ocorrida na forma de emancipação legal7, não servindo esse instituto como remédio para afastar precocemente a responsabilidade dos genitores que voluntariamente o buscaram.8

A parentalidade, ainda que exercida na sociedade de informação, continua a ser fascinante, mas, como toda grande recompensa, traz grande encargos. A objetivação da responsabilidade civil visando garantir a reparabilidade dos danos causados pelo menor pôs sobre as cabeças dos progenitores uma espécie de espada de Dâmocles, quem se atreve a desfrutar dos prazeres desse banquete dionisíaco deve estar ciente dos riscos derivados de sua posição.

__________

1 Vd., arts. 1.630 c/c 1.634 do Código Civil.

2 Vd. art. 17 do E.C.A

3 Para melhor compreensão do paradoxo apresentado, recomenda-se o episódio “Arkangel”, da série Black Mirror disponível na plataforma NETFLIX.

4 Enunciado 590 da VII Jornada de Direito Civil – “A responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhosmenores, prevista no art. 932, inc. I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria hábil para a sua responsabilização.” Essa “companhia”, portanto, não se traduz pela exigência da presença física dos pais no momento da prática do ato lesivo, senda mero encadeamento dedutivo de uma asserção precedente, a “autoridade parental” e os deveres que dela derivam.

5 Que devem levar em conta o melhor interesse da criança e do adolescente para decidirem sobre o ato.

6 Nesse sentido, REsp 1.436.401/MG. Rel: Min. Luis Felipe Salomão, Publicado no DJE em 16/03/2017.

7 Já havendo quem defenda, em privilégio da reparação integral, até mesmo a responsabilidade dos pais pelos atos lesivos praticados pelos filhos maiores. Vd. FARIAS. Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil.São Paulo: Saraiva, 2019, p. 136.

8 Nessa mesma linha o Enunciado 41 da I Jornada de Direito Civil, assim redigido: “A única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código Civil.”

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.