Migalhas de Responsabilidade Civil

Todo mundo odeia o Chris: o pedido de desculpas como forma de reparação não pecuniária do dano

Todo mundo odeia o Chris: o pedido de desculpas como forma de reparação não pecuniária do dano

28/4/2022

Não foi a primeira vez que Will e Jada Smith foram alvo de piadas de gosto duvidoso do Chris Rock em cerimônias de premiação do Oscar. Na cerimônia de 2016, o casal de atores não compareceu à cerimônia do Oscar para protestar pela falta de atores negros na premiação. Na ocasião, Chris Rock afirmou: “Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha da Rihanna. Eu não fui convidado!”. Ainda na mesma cerimônia, o humorista fez uma brincadeira a respeito da ausência de indicação do nome Will Smith para a premiação pelo papel em “Um homem entre gigantes”. Na ocasião, Chris Rock: “Não é justo que Will seja tão bom e não tenha sido indicado. Você está certo. Também não é justo que Will tenha recebido US$ 20 milhões por ‘As Loucas Aventuras de James West'”, filme de 1999 considerado um dos maiores fracassos da carreira de Smith.

Além disso, em 2018, depois de Will Smith fazer um post parabenizando Sheree Zampino, mãe de seu primeiro filho, pelo seu aniversário. Chris Rock comentou: "Uau! Você tem uma esposa muito compreensiva", em referência à Jada.

Em 2022, a cerimônia de premiação do Oscar não foi marcada pela tradicional qualidade dos filmes, atores, diretores que compõem a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas pelo tapa na cara dado pelo ator Will Smith no colega Chris Rock logo após o comediante ter feito uma piada sobre a calvície da esposa de Will, Jada Smith, que sofre de alopecia.  No dia seguinte após o episódio, Will Smith pediu desculpas em longo texto publicado em sua conta pessoal do Instagram cujos trechos merecem destaque: “Estou envergonhado e minhas ações não foram indicativas do homem que quero ser. Não há lugar para violência em um mundo de amor e bondade”. Adiante continuou: “Eu gostaria também de pedir desculpas à Academia, aos produtores do show, aos convidados e a todos que assistiram ao redor do mundo. Eu gostaria de pedir desculpas à família Williams e à minha família King Richard. Eu me arrependo profundamente que meu comportamento tenha manchado o que está sendo uma incrível jornada para todos nós. Eu sou um trabalho em andamento.” Depois, Will Smith achou por bem aplicar a si uma sanção, ao renunciar à vaga de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de onde era parte desde 2001. Além disso, a instituição baniu Smith pelo prazo de 10 anos de todas as cerimônias eventos por ela promovidos.

Nesse contexto, o que fazer depois de causar um dano a alguém? Desde cedo recebemos a lição ética de reconhecer os erros e pedir desculpas como regra basilar da educação infantil. Mas qual a consequência de tal comportamento no direito?

Em algumas situações, o pedidos de desculpas pode ser utilizado como confissão do dano e, em razão disto, representar apenas a desnecessidade de instrução probatória apta a permitir o provimento antecipado de uma ação de cunho indenizatório. Sob este ponto de vista, não há qualquer repercussão positiva para o réu que se desculpou de sua conduta.

No julgamento da Apelação Cível 70054214358 do TJRS, duas pessoas compraram bilhetes de viagem de ônibus, contendo a mesma numeração da poltrona. O equívoco na averiguação do bilhete resultou na discussão entre a vítima e o motorista do coletivo que pediu a retirada dela do veículo para solucionar o problema no guichê da empresa, dando lugar à outra passageira. Ao final, reconheceu o equívoco e pediu desculpas à autora, pois a outra passageira havia comprado a passagem para o dia seguinte. A empresa condenada recorreu argumentando ter havido atritos verbais de ambas as partes, sem qualquer desmoralização. Disse terem sido superadas as palavras rudes do motorista pelo pedido público de desculpas por parte dele. No julgamento do apelo, o Tribunal não levou em consideração a retratação da empresa de ônibus que havia, inclusive, demitido motorista e ressaltou:

Ora, a retratação do motorista é um forte indício de que houve excesso de sua parte no trato com a autora. O equívoco na verificação das passagens é incontroverso. Não obstante a solução do impasse, pois a autora teria viajado na poltrona 15, conforme adquirido, e a escusa do motorista, é induvidosa a falha na prestação do serviço pela ré, a qual, como dito, responde pelos atos de seus prepostos/empregados (Apelação Cível 70054214358 do TJ/RS).

Percebe-se que as desculpas foram utilizadas para referendar a prática do dano pelo ofensor, ao invés de minorá-lo.

Situação discrepante foi o julgamento da Apelação Cível 996/99, da turma Recursal dos Juizados Especiais do TJ/DF. Na hipótese, a vítima sofreu escoriações em razão de uma queda sofrida quando descia do coletivo da empresa ofensora, por não ter motorista esperado a passageira descer do veículo. O pedido da vítima era a condenação da empresa de ônibus a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado do motorista, além do pagamento de verba indenizatória a título de danos materiais (“danos sofridos e despesas realizadas”, segundo declarou a vítima). Após a sua condenação, a empresa recorreu sob o argumento de não ser objeto do pedido da vítima a indenização por danos morais. A fundamentação da Turma Recursal foi na contramão do que prega a norma processual, realizando um julgamento totalmente fora do pedido:

A bem da verdade, há que se reconhecer que não houve um pedido expresso de condenação por danos morais. Entretanto, em face das peculiaridades que cercam os procedimentos nos Juizados Especiais, sobretudo a possibilidade de a parte ajuizar a ação sem estar assistida por advogado, hão que ser mitigados o rigorismo das formas e excesso de tecnicismo inerentes ao Código de Processo Civil. Em sua petição, a autora formulou pedido no sentido  de que fosse a ré condenada a realizar um pedido formal e público de desculpas pelo comportamento inadequado de seu funcionário, e ao pagamento da importância de R$ 2.600,00 (dois mil e seiscentos reais), referentes aos danos sofridos e despesas realizadas. Ora, se é certo que, neste tipo de procedimento, não pode o juiz compelir a ré a pedir as desculpas da forma proposta, não menos certo é que, com tal manifestação, inequivocamente, a autora demonstrou sentimentos de vergonha, desrespeito e descaso experimentados publicamente, pela atitude reprovável do motorista da ré que, como disse, “arrancou” bruscamente o veículo, sem esperar que a mesma descesse com segurança, num total desrespeito, o que caracteriza o dano moral.

Salta aos olhos a nulidade da decisão: a consumidora requereu expressamente a retratação formal da empresa e, apesar de não ter sido atendida neste pondo, obteve uma indenização pecuniária da qual não foi objeto do seu pedido. A informalidade do procedimento obedecido pelos juizados especiais não justifica a decisão, pois a norma procedimental não permite, sob nenhuma hipótese, a concessão de provimento jurisdicional diverso do objeto do pedido.

Por outro lado, essa forma de reparação não pecuniária pode ser utilizada como atenuante do dano causado no momento da valoração da indenização patrimonial.  No julgamento do processo n. 0013092-32.2011.8.17.0480, da 5º Vara Cível de Caruaru – PE, a Magistrada reconheceu a atenuação da ofensa diante da presença do pedido de desculpas por parte de uma empresa de cinemas. Na hipótese, a transmissão do término filme atrasou em 40 minutos e o os funcionários se recusaram a devolver o valor dos ingressos aos consumidores. A empresa de cinemas, reconhecendo a prática lesiva, realizou um pedido formal e público de desculpas aos consumidores lesados. Diante disto, a Magistrada utilizou o pedido de desculpas na valoração do dano e esclareceu:

Ao que tange o pedido formal e público de desculpas, esse merece ponderações. Vislumbrando o direito a reparação do dano, em um ponto de vista constitucional, me parece possível o cumulo de pedidos, prestação pecuniária, mais a retratação formal e em pública da conduta reconhecida como ilícita judicialmente. As lesões que atingem uma pessoa são de naturezas distintas: uma de natureza física, que é aquela que viola a incolumidade corpórea e a saúde mental do indivíduo, tipificada nos Capítulos I a VI, do Título I da Parte Especial do Código Penal; e outra de natureza moral, que atinge (ou pode atingir) os sentimentos mais íntimos do ser humano, como honra, bem-estar, podendo ocasionar sensações ruins, como sofrimento, dor, angústia, humilhação etc. Essa ultima se diferencia da primeira, na forma de se perceber esses danos, enquanto os físico são visíveis a qualquer pessoa, os morais, são visíveis apenas a vitima, já que lhe atingiu o que há de mais intimo. A retratação em público por parte da empresa requerida se mostra de forma eficaz para a amortização dos danos do requerente, além do que por outro lado, evita que grandes grupos empresariais resolvam incluir possíveis condenações a título de dano moral como custo operacional, pagando o preço para lesionar direitos.

Na hipótese, o pedido de desculpas foi utilizado de forma a atender tanto os consumidores ofendidos como também à empresa de cinemas que espontaneamente retratou-se pelos danos por ela gerados. Tudo isso referenda a falta de uniformidade das decisões do Judiciário sobre o tema.

Sob um outro ponto de vista, a ausência desta retratação pública pode ser tomada como causa para ajuizamento de ação indenizatória. Esta foi a conhecida demanda judicial travada entre o comediante Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo. A cantora buscou a reparação patrimonial do dano sofrido por não ter conseguido obter do comediante a sua retratação que, além de resistir à retratação, seguiu debochando das vítimas por entender que a liberdade de humor pode se sobrepor aos eventuais danos à personalidade dos satirizadosi.

Não parece adequado restringir as possibilidades dos sujeitos que sofrem violações de cunho extrapatrimonial às mesmas alternativas postas à disposição daqueles que experimentam danos emergentes e lucros cessantes. Se a natureza dos direitos que não possuem significação patrimonial exata não permite aferir precisamente qual a extensão do prejuízo, nem admite a recomposição ao estado anterior à conduta lesiva, há de se buscar alternativas à recomposição pecuniária do prejuízo, utilizando para tanto todos os meios admitidos em direito. Se para essas situações o dano é in re ipsa, isto é,  presume-se a responsabilidade pela violação ao direito da personalidade, sem perquirir se - de fato - houve lesão ao patrimônio imaterial da pessoa, o mesmo deve valer para a retratação. Deve-se posicionar o pedido de desculpas no lugar correto: ele interfere na extensão do prejuízo, podendo-se compará-lo a o arrependimento posterior como forma de redução do montante da indenização.

O episódio do Oscar dividiu opiniões tanto acerca da punição sofrida por Smith por parte da Academia como pelas provocações sequenciadas de Chris Rock, havendo quem defendesse ter este último merecido o tapa e muito mais. Afinal, as piadas ácidas por ele contadas provocam não só ódio de alguns, mas referendam o clássico jargão “Todo mundo odeia o Chris”, título do seriado narrado pelo humorista. De fato, Chris precisava de um limite, porém a reação da vítima foi desproporcional ao dano provocado por ele. Afinal, não se justifica uma agressão. Apesar disso, caso o episódio tivesse sido levado ao Judiciário brasileiro, as desculpas pedidas no dia seguinte ao ocorrido por parte de Smith deveriam ser levadas em consideração na valoração do dano.

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i Sobre esse tema vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego e MOUTINHO, Maria Carla. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade do humor. In EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.) Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 219-235.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.