Migalhas de Responsabilidade Civil

Poluição transfronteiriça e a competência municipal para buscar a responsabilização do emissor poluente

Poluição transfronteiriça e a competência municipal para buscar a responsabilização do emissor poluente.

19/4/2022

Introdução*

O ar da madrugada do dia 12 de Fevereiro de 2020 foi tomado por forte odor em  praticamente toda a Região Metropolita do Vale do Aço, Estado de Minas Gerais. O que ocorreu em razão de vazamento de gases não condensáveis (GNC – mercaptanas) resultante de uma falha no sistema de segurança de queima de gases da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra)1.

Os efeitos desse acidente ambiental foram sentidos de forma mais intensa nos municípios de Coronel Fabriciano, Ipatinga, Timóteo e Santana do Paraíso. Contudo, eventos como esse, ocorrem há décadas nas cidades que compõe a Região Metropolitana do Vale do Aço.

Os órgãos de fiscalização Estaduais e Municipais, exercendo o seu poder de polícia, autuaram a Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de ter “emitido matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com osníveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público"2.

Considerando que a empresa possui sede no município de Belo Oriente e que as autuações decorrentes da poluição atmosférica por gases não condensáveis (GNC – mercaptanas) foram emitidas por Órgãos Ambientais do Estado de Minas Gerais e de municípios diversos, um questionamento surgiu, qual seja: teriam os municipios competência para proceder à autuação da empresa Celulose Nipo-Brasileira S/A (Cenibra) em razão de uma acidente ambiental decorrente de emissão de poluição atnosférica ocorrido, em tese, fora de seus limites geográficos?

A resposta para esse questionamento exige que (i) seja estabelecido um conceito de poluição transfronteiriça e (ii) analisada as regras de competência ambiental estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Só assim será possível perceber quais órgãos ambientais podem buscar a responsabilização da empresa infratora pelos danos ambientais decorrentes de sua ação ou omissão.

Poluição Transfronteiriça: Estabelecendo um conceito para compreender o problema

A doutrina aponta a Resolução do Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, de 14 de Novembro de 1974, como um dos primeiros atos normativos a definir um conceito de poluição3.

Documento que define poluição como sendo "a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou energia no meio ambiente que causem consequências prejudiciais, de modo a colocar em perigo a saúde humana, prejudicar recursos biológicos ou sistemas ecológicos, atentar contra atrativos (agréments) ou prejudicar outras utilizações do meio ambiente"4

Definição que, no âmbito Direito Ambiental Brasileiro, é adotada pela lei Federal 6.938/1981, de onde extrai que poluição é "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: (a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; (c) afetem desfavoravelmente a biota; (d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; (e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos" (Art. 3º, III).

Possível perceber, portanto, que, com pequenas alterações, o conceito de poluição é aceito pelo Direito Internacional e, também, pelo ordenamento jurídico brasileiro. Definição que, através do acréscimo de novos elementos constitutivos, permitiu a compreensão do que se entende por poluição transfronteiriça.

Termo cuja origem se confunde com a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente. Afinal, a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente e, de certa forma, do Direito Ambiental interno foi impulsionada, dentre outros motivos, em razão de questões afetas ao trato da poluição transfronteiriça. Isso porque, a ciência jurídica-ambiental, que remonta o seu nascimento ao famoso caso da Fundição Trail (1941), surge em razão do combate a uma poluição que não respeita às fronteiras jurídico-políticas entre os Estados5.

Embate jurídico que, passados trinta e um anos, influenciou na redação do enunciado do Princípio 21 da Declaração de Estocolmo. Norma proibitiva que impõe, aos Estados Nacionais, "a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob o seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda a jurisdição nacional" (Princípio 21). Vedação que, ressalvadas alterações redacionais, é reafirmada no Princípio 2 da Declaração do Rio 92.

O termo poluição transfronteiriça, como sedimentado na melhor doutrina e em diversos atos internacionais, se relaciona, portanto, à poluição cujas fontes emissoras se encontram localizadas em um determinado território, mas cujos seus efeitos ultrapassam os limites geográficos de origem6-7.

Perceber-se, de tal forma, que a poluição transfronteiriça é uma forma de poluição atmosférica. Entendida, esta, como sendo "a introdução na atmosfera pelo homem, direta ou indiretamente, de substância ou de energia que têm uma ação nociva, de forma a por em perigo a saúde do homem, a prejudicar os recursos biológicos e os ecossistemas, a deteriorar os bens materiais e a pôr em risco ou prejudicar os valores estéticos e as outras legítimas utilizações do ambiente" (Art. 1º, a, Convenção de Genebra de 1979).

Tratando do tema, a Resolução Conama 491, de 19 de Novembro de 2018, entende como poluente atmosférico como "qualquer forma de matéria em quantidade, concentração, tempo ou outras características, que tornem ou possam tornar o ar impróprio ou nocivo à saúde, inconveniente ao bem-estar público, danoso aos materiais, à fauna e flora ou prejudicial à segurança, ao uso e gozo da propriedade ou às atividades normais da comunidade" ( Art. 2º, I).

Assim sendo, considerando que os gases não condensáveis emitidos pela empresa ultrapassaram os limites geográficos dos municípios de Belo Oriente atingindo os municípios de Ipaba, Santana do Paraíso, Ipatinga, Coronel Fabriciano, Timóteo e diversos outros municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, não restam dúvidas quanto a estar caracterizado o ato de emitir matéria com intensidade e em quantidade, concentração, tempo e/ou características em desacordo com os níveis estabelecidos e que tornaram o ar inconveniente ao bem-estar público de todo o Colar Metropolitano do Vale do Aço.

Desta feita, demonstrado que o ato de emitir gases não condensáveis (GNC – marcaptanas), em desacordo com as normas ambientais, acarretando inconvenientes ao bem-estar público de toda a Região Metropolitana do Vale do Aço, se amolda perfeitamente ao conceito: (i) de poluição; (ii) de poluição atmosférica; e, consequentemente, (iii) de poluição transfronteiriça, resta avaliar se os municípios da Região Metropolitana do Vale do Aço, atingidos pela poluição atmosférica emitida, possuem competência para lavrar o auto de infração e buscar a responsabilização da empresa infratora.

Breve Análise da Competência Municipal para Lavrar o Auto de Infração em Razão de Poluição Atmosférica Transfronteiriça 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugura uma nova ordem ambiental e, com ela, estabelece os limites para o exercício do poder de proteção do meio ambiente.

Balizas que podem ser encontradas nos artigos 23, VI e VII, e 24, VI e VIII, da Carta Cidadã, de onde se extrai as regras de competência material e legislativa em matéria ambiental8.

"Pela competência material, define-se qual ente político poderá exercer o poder de polícia em relação à matéria ambiental. Pela competência legislativa, define-se qual ente político tem poder para legislar sobre o meio ambiente".9

A proteção ambiental é, portanto, fixada de forma descentralizada, o que implica em uma repartição de competência entre os Entes Federados. Desta feita, a promoção e proteção do meio ambiente é realizada através de um sistema normativo e administrativo que envolve a atuação dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União. 

A repartição de competência objetiva proporcionar uma melhor adequação das normas nacionais às peculiaridades locais, pois a competência em matéria ambiental possui como critério delimitador o princípio da predominância do interesse público. Competência que é tanto material como legislativa, conforme dito alhures.

No que tange à competência material, o artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil afirma que:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; (...).

Percebe-se, portanto, que o exercício do poder de polícia em matéria ambiental caracteriza competência comum de todos os Entes Federados. Ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem o exercer.

Quanto à competência legislativa, o artigo 24 de nossa Magna Carta dispõe que:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...)VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; (...);VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...). 

Significa dizer que todos os Entes Federados podem legislar em matéria ambiental, devendo: (i) a União fixar normas gerais e (ii) os Estados e os Municípios estabelecerem normas de caráter supletivo, respeitadas as suas especificidades e o interesse local.

Cabe, portanto, ao Município desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, o que deve ser feito através de um exercício concreto da competência legislativa e material atribuída ao referido ente federativo.

Ou seja, ao Município foi "outorgada não apenas uma competência legislativa residual para aspectos de interesse local (art.30, I e II da CRFB), mas também uma competência material para atuar em paralelo e em conjunto com os demais entes (art. 23, VI e VII)10.

Desta feita, "a técnica de repartição de competências empregada pelo constituinte levou em consideração a maior eficácia da proteção, o menor custo e a participação (comprometimento) da sociedade na salvaguarda dos bens e valores contemplados pelas citadas normas"11.

No que se refere especificamente à chamada competência material (administrativa), simples debruçar sobre o texto do artigo 23 da Constituição da República Federativa do Brasil é capaz de comprovar se tratar de competência comum.

Significa dizer que, "neste caso, existe a possibilidade de mais de um ente político (União, Estado, Município) atuar para tratar do mesmo assunto em pé de igualdade com os outros. Vale a regra ainda que, a priori, o ente federativo não tenha competência para legislar sobre o tema ali tratado"12.

A atuação de um dos entes federativos, de tal forma, não exclui a competência dos demais, que podem exercer cumulativamente a competência material (administrativa), sempre objetivando uma melhor concretização da proteção e promoção do meio ambiente13. Resta claro que "a ideia do legislador constituinte, ao estatuir a competência comum, foi evitar que a tutela jurídica do meio ambiente fosse prestada de modo deficiente"14-15.

Assim sendo, se tratando de poluição atmosférica transfronteiriça que acarretou inconvenientes ao bem-estar público da população do município de Coronel Fabriciano, resta claro a ocorrência de dano ambiental local, o que autoriza o exercício do poder de polícia por parte dos Órgão Ambientais de todos os municípios afetados.

Conclusão

Ante ao exposto resta claro a competência dos Órgãos Ambientais de todos os municípios afetados pela poluição atmosférica transfronteiriça decorrente da emissão de gases não condensáveis para autuar e buscar a responsabilização da empresa emissora dos poluentes.

Responsabilização que, por ser objetiva e decorrente da Teoria do Risco Integral, apesar de exigir a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, impossibilita que a empresa responsável pelo dano ambiental busque guarida nas excludentes de responsabilidade civil, conforme sedimentado na jurisprudência pátria uníssona16.

O que significa dizer que a responsabilidade da empresa emissora dos poluentes subsiste independente da presença de situações de culpa exclusiva da vítima, culpa de terceiro, caso fortuito e/ou força maior. Isso porque, sua obrigação de reparar os danos ambientais decorre do mero exercício de sua atividade, resguardado o seu direito à ação de regresso.

__________

* O presente artigo tem por base parecer emitido pelo autor no exercício de suas atribuições como Gerente Consultivo de Prevenção da Secretaria de Governança Jurídica do Município de Coronel Fabriciano. Sendo importante observar, ainda, que o caso empírico abordado foi amplamente noticiado pelos veículos de informação.

1 Notícias sobre o ocorrido podem ser acessadas aqui (Nota de Esclarecimento à Comunidade da Cenibra); (ii) (Notícia publicada no site G1); (Notícia publicada no site Diário do Aço); entre outros.

2 Artigo 2º, I, da Resolução Conama nº 491, de 19 de Novembro de 2018.

3 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades. Editora Atlas. São Paulo. 2001. p. 212.

4 KISS, Alexandre. Droit International de L’environnemente. p. 68. Tradução livre.

5 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del Medio Ambiente. McGraw-Hill. Madrid. 1999. p.263 ss.

6 Neste sentido ver: SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do...Op. Cit. p. 211 ss; RUIZ, José Juste. Derecho Internacional Del...Op. Cit. p.263 ss.

7 O conceito do termo "poluição transfronteiriça" pode ser encontrado, com pequenas alterações, em diversas Convenções e Protocolos  internacionais.

8 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 164 ss.

9 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 165.

10 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. Coord. Pedro Lenza. 3ª Edição. Editora Saraiva. 2016. p. 188.

11 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 189.

12 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 195.

13 Neste sentido, ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 194 ss.

14 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental...Op. Cit. p. 197.

15 Sobre o tema ver: STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 711.405/PR, rel. Min. Humberto Martins, DJ 15-5-2009

16 Neste sentido ver, entre outros: STJ. AgRg no AREsp 232494/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 26/10/2015.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.