Milhões de cirurgias robóticas já foram realizadas ao redor do mundo com o chamado robô “Da Vinci”, desde 2000.1 Durante a cirurgia, o médico permanece num console, manuseando dois controladores gerais (joysticks) – e os movimentos das suas mãos são traduzidos pelo robô, em tempo real, em instrumentos dentro do paciente, eliminando-se, assim, o tremor natural das mãos do ser humano e possibilitando um procedimento executado com maior precisão. Devido à maior flexibilidade dos braços robóticos em comparação com as ferramentas laparoscópicas convencionais, além da ampliação da visão do cirurgião por meio de uma microcâmera, tornam-se completamente acessíveis locais anteriormente de difícil acesso ou até mesmo inacessíveis.2 A utilização do robô torna a cirurgia mais segura e precisa, eliminando o tremor natural das mãos do ser humano; a microcâmera amplia a visão do cirurgião e a tomada de decisões no decorrer do procedimento cirúrgico se torna mais rápida e exata.3
Em 2002, um cirurgião, localizado nos Estados Unidos, realizou a primeira telecirurgia em uma paciente que estava a milhares de quilômetros de distância, na França.4 As plataformas robóticas, nas últimas duas décadas, têm ampliado as fronteiras das inovações em tecnologias da saúde, para obtenção de melhores resultados clínicos. A cirurgia robótica surgiu em um momento que cirurgiões demandavam, cada vez mais, tecnologias cirúrgicas minimamente invasivas, mais precisas e seguras, para aperfeiçoarem sua atuação. No Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, é o pioneiro em cirurgia robótica desde 2008, quando um paciente idoso foi submetido à extirpação da próstata com a assistência do robô.5
No dia 23 de março de 2022, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução 2.311/22,6 que regulamenta a cirurgia robótica no Brasil, trazendo importantes temas ético-jurídicos – consentimento do paciente, política de treinamento de hospitais, capacitação da equipe, responsabilidade médico-hospitalar e solidariedade na responsabilidade da equipe médica. Nestas breves reflexões, propõe-se o debate acerca da responsabilidade médica e solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução. Ao propósito de se identificar a importância deste assunto, cumpre, inicialmente, trazer à baila o perfil de possíveis litígios na cirurgia robótica.
Em novembro de 2015, um senhor morreu após se submeter à cirurgia robótica no Freeman Hospital, em Newcastle, Inglaterra. O robô fez um movimento brusco e dilacerou parte do coração do paciente durante a cirurgia. Abriu-se inquérito policial para determinar a causa da morte e o cirurgião acabou revelando que “poderia ter realizado a cirurgia com mais treinamento prévio no robô, antes da intervenção cirúrgica”7 no paciente em questão e, ainda, relatou que o proctor (médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci), que deveria estar presente durante toda a cirurgia, saiu da sala na metade do ato cirúrgico. Além disso, constatou-se que o hospital, onde ocorreu a intervenção, não possuía nenhum serviço de apoio e suporte ou política de treinamento dos médicos em cirurgia robótica. O diretor médico do hospital emitiu um pedido de desculpas, reconhecendo que “falhou em garantir um padrão de cuidado razoavelmente esperado na cirurgia robótica”. Na situação narrada, fica evidente a hipótese de dano diretamente ocasionado por imperícia do profissional, além da falha na prestação adequada do serviço pelo hospital.
Nos Estados Unidos, tem-se notícia de diversos pacientes que pleitearam indenização por danos sofridos durante a performance dos robôs Da Vinci. Entre os anos de 2000 e 2013, há 10.624 relatos de eventos adversos.8 Em um período de dez anos, a Intuitive Surgical promoveu 175 recalls do robô Da Vinci9 – tanto para pequenos ajustes, como esclarecimentos de instrução e atualizações de software, bem como recalls mais graves, como o caso de uma faca cirúrgica que não podia se mover e realizar algum corte necessário, braços cirúrgicos que apresentaram falhas e outros componentes do robô que fizeram movimentos inesperados. Há registro também de um instrumento robótico que, depois de fixado a um tecido do paciente, não podia mais se abrir – o que gerou também outro recall.
Até o momento, quase todos os conflitos envolvendo eventos adversos em cirurgia robótica nos Estados Unidos foram resolvidos extrajudicialmente com a fabricante, com cláusula de confidencialidade sobre os seus termos ou, ainda, decididos sumariamente pelo juiz (summary judgment) na fase chamada pretrial, com exceção de dois casos que foram levados a julgamento pelos tribunais norte-americanos, os quais, posteriormente, também resultaram em acordo: Zarick v. Intuitive Surgical (2016) e Taylor v. Intuitive Surgical (2017). Mais recentemente, em abril de 2021, julgou-se o caso Rosenberg v. 21st Century Oncology, no qual se reconheceu a culpa do médico diante de danos sofridos pelo paciente submetido à cirurgia robótica de prostatectomia.10
Já no Brasil, em 2019, foi julgado pela 4ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis/SC,11 o primeiro caso que se tem notícia sobre responsabilidade civil médico-hospitalar em evento adverso sofrido por paciente submetido à cirurgia robótica, discutindo-se a responsabilidade pela incorreta esterilização do robô. Em primeiro grau, o hospital foi responsabilizado. Atualmente, aguarda-se julgamento do TJSC dos recursos interpostos pelo hospital e paciente.
Em contexto norte-americano, as demandas indenizatórias sobre eventos adversos ocorridos durante a intervenção médica assistida por plataformas robóticas são conhecidas como “finger-pointing cases”.12 Isso, porque há sempre a complexidade na aferição de quem é responsável pelo dano ao paciente submetido à cirurgia robótica: equipe médica, hospital ou o fabricante do equipamento. O médico e o hospital, diante de evento adverso na intervenção, alegam que há defeito no próprio robô e consequente responsabilidade do fabricante. Este, por sua vez, defende que o dano decorre de erro médico ou, ainda, da má conservação ou incorreta regulagem do robô pelos prepostos do hospital.
A partir do estudo acerca dos litígios ao redor do mundo envolvendo eventos adversos ocorridos na cirurgia robótica, pode-se observar que a grande complexidade na análise da responsabilidade civil dá-se, sobretudo, na determinação da causa eficiente do dano – e a quem se atribuir o dever de indenizar. Diante disso, ao investigar tal problemática no ordenamento jurídico brasileiro, alvitramos a metodologia a seguir descrita.
Para atribuição da responsabilidade por eventos adversos na cirurgia robótica, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu:
“a) do serviço essencialmente médico: quando o dano decorre de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da medicina, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. Reconhecida a culpa do médico (art. 14, § 4º, do CDC; art. 186 e 951, ambos do CC), responderá, em regra, solidariamente o hospital (art. 932, III, do CC). O médico responderá por culpa stricto sensu, nas modalidades negligência, imprudência ou imperícia. Destaque-se que, caso o médico não tenha vínculo de emprego/preposição com o hospital, apenas alugue o espaço da entidade hospitalar, a fim de realizar o procedimento cirúrgico com auxílio do robô, o hospital não terá responsabilidade solidária pela conduta culposa do profissional.
b) do serviço paramédico: quando o dano advém da falha na intervenção dos enfermeiros com a correta regulagem do robô ou inadequada esterilização dos instrumentos robóticos. Em geral, são praticados pela enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores. Nessa situação, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC;
c) do serviço extramédico: quando o dano resulta da inadequada ou inexistente política hospitalar de treinamento de médicos e outros profissionais, defeito de qualquer instalação ou má conservação/manutenção do robô pelo não atendimento aos cuidados recomendados pelo fabricante. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC”.13
Portanto, no eventual exame da responsabilidade civil, a equação é conhecida: em primeiro plano, analisa-se a atuação pessoal do médico, com o intuito de se reconhecer a ocorrência de culpa stricto sensu (imperícia, imprudência ou negligência), por parte do médico; reconhecida a culpa do seu preposto, responderá solidariamente o hospital. Já por defeito do robô cirurgião (do software ou de um instrumento robótico), responderá o fabricante, independentemente da existência de culpa (art. 14, do CDC), pela reparação dos danos causados ao paciente. O robô será considerado defeituoso quando não oferecer a segurança que legitimamente se espera (art. 12, § 1º, do CDC), levando-se em consideração sua apresentação, uso e riscos que dele se esperam e à época em que foi colocado em circulação. O fornecedor também será responsabilizado pelas informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos acerca do seu produto.14
Importante mencionar que, até pouco tempo atrás, notava-se uma realidade de médicos com pouca prática, que faziam um breve treinamento com o fabricante do robô e já realizavam cirurgias robóticas sozinhos depois de pouquíssimos procedimentos cirúrgicos com auxílio do proctor.15 Por isso, a questão da culpa médica em cirurgia robótica, especialmente da imperícia, devido ao insuficiente treinamento dos médicos já foi bastante criticada pela comunidade jurídica norte-americana e europeia. Destaque-se que cirurgiões com extensa experiência na tecnologia declaram que se sentiram proficientes com o sistema Da Vinci apenas depois de realizarem ao menos 200 procedimentos assistidos pelo robô.16
O Brasil é o maior mercado de cirurgia robótica da América Latina. Contudo, apesar das plataformas robóticas serem realizadas no país desde 2008, apenas em 2020, o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), vinculado à Associação Médica Brasileira (AMB), publicou a primeira declaração com diretrizes sobre o processo para emissão do certificado de habilitação em cirurgia robótica no Brasil, a serem seguidas por todos os novos cirurgiões robóticos e entidades hospitalares.17
Atualmente, já se observa uma tendência de mudança do modelo de treinamento, especialmente pela criação de diretrizes para o desenvolvimento de proficiência na realização de procedimentos cirúrgicos robóticos, bem como devido à implementação de simuladores do robô, com treinamento em realidade virtual, para que os médicos possam praticar no próprio hospital onde atuam. Importante a ponderação de que, somente em março de 2022 – após 14 anos de cirurgias robóticas realizadas no Brasil – o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 2.311/22, que regulamenta a cirurgia robótica no país e traz as diretrizes para capacitação e política de treinamento por médicos e hospitais.
Diante do cenário apresentado, observa-se a importância das disposições trazidas na Resolução CFM 2.311/22 sobre o treinamento específico dos médicos em cirurgia robótica (arts. 2º e 3º), as etapas básicas de capacitação (Anexo 2) e a responsabilidade do cirurgião-instrutor (proctor) na orientação no manejo do robô e avaliação da competência do cirurgião principal (art. 4º).
A cirurgia robótica é um procedimento de alta complexidade (art. 1º, § 1º) e só poderá ser realizada por médico que cumpra dois requisitos: 1º) tenha registro de qualificação de especialista pelo CRM na área cirúrgica relacionada ao procedimento; 2º) possua treinamento específico em cirurgia robótica durante a residência médica ou capacitação específica para a realização de cirurgia robótica de acordo com o Anexo 2 (etapas 1 + 2). Além disso, o cirurgião principal, após completada a etapa básica de capacitação (etapa 1 do Anexo 2), só poderá realizar cirurgia robótica sob supervisão e orientação de um cirurgião-instrutor (proctor) em um número mínimo de 10 cirurgias robóticas na especialidade de atuação.
Após cumprir as duas etapas de treinamento (básico e avançado) e o número mínimo de cirurgias, o cirurgião principal se submeterá a uma avaliação do cirurgião-instrutor para atestar a sua competência na modalidade de cirurgia robótica. Comprovada a conclusão e aprovação no treinamento com o proctor, o cirurgião principal terá autonomia para realizar cirurgia robótica sem a participação do proctor (§ 3º do art. 3º). Para atuar como cirurgião-instrutor em cirurgia robótica, o médico deve comprovar ter realizado um número mínimo de 50 cirurgias robóticas na condição de cirurgião principal (§ 2º do art. 4º).
Ressalte-se que, independentemente se a cirurgia robótica é realizada pelo médico a poucos metros distância e na mesma sala de cirurgia em que se encontra o paciente ou, ainda, na situação do profissional que opera o robô de forma remota a milhares de quilômetros de distância (telecirurgia), há a necessidade de um cirurgião auxiliar junto ao paciente, para intervir em caso de mau funcionamento do robô ou quaisquer interrupções tecnológicas.
Evidentemente, deve-se garantir que toda a equipe de profissionais da saúde envolvidos (enfermeiros e médicos – principal, auxiliar, anestesiologista e instrumentador) seja apropriadamente capacitada e receba constantemente treinamento e atualização na nova tecnologia. Isso porque, além de eventuais dificuldades tecnológicas, a incorreta esterilização ou calibragem de um instrumento robótico, por exemplo, pode aumentar a probabilidade de um movimento impreciso do robô cirurgião ou, ainda, ocasionar uma falha na transmissão da imagem do sítio cirúrgico.18
Além disso, no art. 2º (e Anexo 1) da Resolução CFM 2.311, indica-se que as plataformas de cirurgia robótica, aprovadas pela Anvisa, só poderão ser utilizadas nos denominados “hospitais de Alta Complexidade”, isto é, unidades hospitalares com condições técnicas, instalações físicas, equipamentos, serviços de apoio e suporte a todas as intercorrências possíveis e recursos humanos adequados à prestação de assistência especializada aos pacientes submetidos às cirurgias assistidas por robôs.
Em relação às cirurgias robóticas realizadas remotamente, o art. 6º salienta que a telecirurgia somente poderá ser realizada com infraestrutura adequada e segura de funcionamento de equipamento (§ 1º). Somando-se à obrigatoriedade do termo de consentimento livre e esclarecido na telecirurgia, é imprescindível uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a cirurgia será realizada (§ 5º).
Oportuno mencionar que, segundo dados da H. Strattner – única empresa que comercializa o robô Da Vinci no Brasil – já foram realizadas mais de 30 mil cirurgias robóticas desde 2008. Além disso, entre 2008 e 2020, o número de equipamentos de robótica cirúrgica instalados em hospitais brasileiros saltou de 40 para 76, correspondendo a um crescimento de mais de 90%.19 Todavia, ainda reside a nível mundial um dos maiores desafios a serem superados no implemento das cirurgias robóticas à distância (telecirurgias): as limitações tecnológicas – especialmente o time delay –, apesar de já se observar a tendência de aprimoramento dos sistemas de telecirurgia, sobretudo a partir das redes 5G, as quais propiciam menor tempo de latência entre o cirurgião remoto e a sala de cirurgia onde fica o paciente.20
Frise-se que, esse cenário de maiores riscos na cirurgia realizada à distância, bem como a necessidade de aprimoramento tecnológico para implemento da plataforma robótica, justifica a exigência trazida pela Resolução CFM 2.311 de uma especial autorização por escrito do diretor técnico do hospital onde a telecirurgia será realizada.
A equipe de cirurgia robótica é composta por cirurgião principal, cirurgião auxiliar, médico anestesiologista, instrumentador, enfermeiro de sala (responsável pela movimentação externa do robô), técnico de enfermagem circulante de sala (estruturação trazida no glossário ao final da Resolução CFM 2.311/2022).
O cirurgião principal é o médico que responderá diretamente pelo ato cirúrgico, conforme disposto no art. 3º, § 4º, da Resolução CFM 2.311/2022, in verbis: “a responsabilidade da assistência direta ao paciente é do cirurgião principal em relação ao diagnóstico, indicação cirúrgica, escolha da técnica e via de acesso, além das complicações intraoperatórias e pós-operatórias”. Já o cirurgião auxiliar em campo é o médico especialista responsável pelo auxílio ao robô e instrumentais robóticos, devendo estar pronto para intervir rapidamente em caso de eventos adversos relacionados ao paciente ou ao robô.
Por fim, o cirurgião-instrutor em cirurgia robótica (proctor) orientará o cirurgião principal no manejo do robô, incluindo o console e instrumentais robóticos, mas não será de sua responsabilidade participar da indicação cirúrgica, da escolha da técnica cirúrgica ou mesmo da assistência direta ao paciente no intraoperatório ou no pós-operatório (art. 4º).
No caso das cirurgias robóticas à distância, o § 2º do art. 6º da Resolução CFM 2.311/2022 indica que a equipe médica cirúrgica principal para a telecirurgia deve ser composta, no mínimo, por um médico operador do equipamento robótico (cirurgião remoto que responde diretamente pelo ato cirúrgico), além do cirurgião presencial e cirurgião auxiliar, os quais serão responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas, como falha no equipamento robótico, falta de energia elétrica, flutuação ou interrupção de banda de comunicação.
Ademais, seja na cirurgia robótica presencial ou à distância, o art. 5º prevê a responsabilidade do diretor técnico do hospital na conferência da documentação sobre a capacitação e competência do cirurgião principal (responsável direto pelo ato cirúrgico), cirurgião instrutor (proctor) e demais membros da equipe, devendo, ainda, exigir que a equipe cirúrgica descreva o procedimento robótico-assistido em prontuário, com assinatura do cirurgião principal, do cirurgião-instrutor e de outros médicos que eventualmente integrem a equipe. Destaque-se que referida documentação será de extrema importância em eventual litígio para aferir a responsabilidade civil decorrente de dano sofrido pelo paciente na cirurgia robótica. Nesse sentido, o 4º Considerando da Resolução CFM 2.311/2022 indica a Resolução CFM 1.490/1998, a qual dispõe sobre a composição da equipe cirúrgica e responsabilidade entre os membros da equipe.
Imagine-se que um cirurgião remoto, localizado num hospital em Londres, estivesse realizando uma telecirurgia em um paciente em São Paulo, no exato momento em que o sistema do hospital inglês sofre interrupção por invasão de um hacker. Diante disso, o monitor – que passava imagens do sítio cirúrgico do paciente brasileiro – de repente, fica preto, não sendo mais possível saber quais movimentos serão reproduzidos pelo robô no Brasil. Em tese, o robô possui um mecanismo de segurança e para de se movimentar diante de falhas/interrupções tecnológicas ou quando o médico afasta o rosto do console onde estava manuseando os joysticks do robô.
De todo modo, tal como no caso ora apresentado, a equipe do hospital brasileiro precisa ficar de prontidão, ao lado do paciente e, verificando qualquer falha no sistema ou movimento imprevisível do robô cirurgião, afastar este do paciente e, imediatamente, adotar as condutas emergenciais cabíveis, incluindo a transformação do procedimento cirúrgico em uma cirurgia convencional (aberta) sem a assistência do robô.
Esse é um exemplo, dentre tantos outros, de que podem ocorrer situações em que a cirurgia robótica precisará ser interrompida e substituída por uma cirurgia convencional, realizada pelas próprias mãos de um médico (auxiliar), sem interferência do aparato tecnológico. E, muitas vezes, surgirão cicatrizes maiores no corpo do paciente, pois aquela cirurgia robótica minimamente invasiva precisará ser transformada em uma cirurgia aberta, com cortes mais extensos. Segundo a própria empresa fabricante do robô Da Vinci, essa conversão do procedimento pode significar “um tempo cirúrgico mais longo, mais tempo sob anestesia e/ou a necessidade de incisões adicionais ou maiores e/ou aumento de complicações”,21 informações estas que deverão ser repassadas previamente ao paciente.
Mencionou-se anteriormente uma metodologia para aferir a responsabilidade civil por eventos adversos na cirurgia robótica a partir da identificação da gênese do dano, isto é, se o dano decorre de serviço essencialmente médico, paramédico ou extramédico. A questão é que a Resolução CFM 2.311/2022 traz à tona o debate sobre os inúmeros profissionais envolvidos na cirurgia robótica e a responsabilidade e solidariedade dos membros da equipe médica,22 demonstrando a necessidade de, somada à metodologia antes apresentada, fazer uma análise pormenorizada da teoria da causalidade adequada.23 Desse modo, investiga-se a possibilidade de responsabilidade solidária do médico-cirurgião chefe, por danos causados ao paciente em decorrência de erro médico cometido por outro membro da equipe.
Pensando-se no exemplo anteriormente mencionado de evento adverso na telecirurgia: o cirurgião remoto (médico 1) está realizando uma telecirurgia e o robô para de funcionar devido à invasão de um hacker e queda do sistema, ou qualquer outro problema tecnológico ou falha do equipamento – sendo que o cirurgião presencial (médico 2) e a equipe localizada junto ao paciente demoram para adotar as condutas emergenciais devidas no afastamento do robô e conversão cirúrgica – vindo o paciente sofrer eventuais danos ou até óbito.
Para definir os limites do nexo causal, vale novamente mencionar que, na telecirurgia, o médico remoto responde diretamente e somente pelo ato cirúrgico em si, ao passo que os responsáveis pela assistência direta ao paciente e capacitados para assumir a intervenção cirúrgica diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas são o cirurgião presencial e o cirurgião auxiliar. Assim, no caso supracitado, aplicando-se a teoria da causalidade adequada e tese de interrupção do nexo causal, considera-se que o dano sofrido pelo paciente decorre de ato diretamente praticado pelo médico 2 e/ou equipe médica local.
A interrupção tecnológica ou falha do equipamento robótico constituiu-se como circunstância superveniente que abriu uma nova cadeia causal, isto é, o dano sofrido pelo paciente não foi o efeito necessário da interrupção da telecirurgia pelo médico 1, mas sim culpa do médico 2 e/ou da equipe médica local. Inclusive, mesmo que verificado o nexo causal entre o dano do paciente e um erro na conduta específica do cirurgião auxiliar, caberá responsabilização solidária do cirurgião presencial, chefe da equipe médica; isto porque, o causador do dano é integrante da equipe que participa da cirurgia e atua na condição de subordinado, ou seja, sob comando do cirurgião-chefe.24
Diferente situação seria se o cirurgião remoto, ao manipular os joysticks, realiza movimento brusco que gera alguma oscilação/imprevisibilidade e o robô acaba atingindo algum órgão ou tecido fora do sítio cirúrgico – sendo que, em seguida, verificando a impossibilidade de continuação da cirurgia com robô, o cirurgião remoto aciona a equipe local para conversão cirúrgica, mas as condutas emergenciais devidamente adotadas não são suficientes para evitar danos ao paciente.
Nesse caso, a conduta do médico quando operava remotamente o robô foi a causa eficiente para a produção do dano. Imputa-se juridicamente as consequências dos danos ao paciente exclusivamente ao médico 1, cuja culpa acarretou o movimento imprevisível do robô. Além disso, não há solidariedade na responsabilidade do dever de reparar pelo médico 2. Isso porque, na hora da cirurgia, o médico 1 não é comandado por ninguém, tendo atribuição técnica totalmente distinta, possuindo autonomia, e mesmo integrando a equipe, opera remotamente o robô, não havendo por parte do cirurgião presencial nenhuma providência que possa ser tomada em relação ao próprio ato cirúrgico remoto com assistência do robô. O médico 1 e o médico 2 possuem trabalhos autônomos, cada um com sua regra de atuação, e um não participa ou influi no âmbito do resultado da atividade do outro. Contudo, ressalte-se que o médico 2 possui a responsabilidade pela assistência direta ao paciente e deve assumir a intervenção cirúrgica convencional (sem o robô) diante de eventos adversos ou ocorrências não previstas.
Por outro lado, partindo-se do mesmo exemplo supracitado, no qual foi configurada a culpa do médico 1 na telecirurgia, mas na hipótese de que as condutas emergenciais do médico 2 e equipe médica local também não foram devidamente adotadas ou ocorreu demora nesta conversão para a cirurgia tradicional, poder-se-ia considerar o fenômeno da concorrência ou concurso de causas (art. 945 do CC).25 Pode restar provado que uma condição do evento danoso – conduta do médico 2 e/ou equipe – foi elemento que contribuiu, de alguma forma, para a geração do dano ao paciente.
Em eventual demanda indenizatória, caberá ao magistrado analisar duas questões: 1ª) se ambas as condutas – dos médicos 1 e 2 – concorreram para a produção do dano ao paciente; 2ª) se positiva a primeira resposta – verificada maior participação do médico 1 no evento lesivo –, em qual percentual se deu a participação de cada agente para a consecução do resultado lesivo. Assim, o julgador será capaz de repartir proporcionalmente os danos e, como no caso exposto, eventualmente reduzir o quantum indenizatório a ser pago pelo médico 2. Ressalta-se, por fim, que a causalidade múltipla não é excludente do nexo causal, mas uma forma de repartição de danos, a qual será delimitada conforme a apuração da contribuição causal de cada envolvido no episódio para o desfecho lesivo.
Diante do exposto nestas breves reflexões, discutiu-se, sem a preensão de esgotar o tema, sobre a responsabilidade civil médica na cirurgia robótica e a solidariedade no dever de reparar à luz da recém-publicada Resolução do Conselho Federal de Medicina, evidenciando, assim, a complexidade na forma de atribuição da responsabilidade civil entre os membros da equipe médica.
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1 About da Vinci Systems. Disponível em: https://www.davincisurgery.com/da-vinci-systems/about-da-vinci-systems##. Acesso em: 02 abr. 2022.
2 SCHANS, Emma M. et. al. From Da Vinci Si to Da Vinci Xi: realistic times in draping and docking the robot. Journal of Robotic Surgery, v. 4, p. 835-839, dez. 2020.
3 FIORINI, Paolo. History of robots and robotic surgery. In: FONG, Yuman et. al (Ed.). The sages Atlas of robotic surgery. Cham: Springer, 2018, p. 1-14.
4 Operation Lindbergh – A world first in telesurgery: the surgical act crosses the atlantic!. Disponível em: https://www.ircad.fr/wp-content/uploads/2014/06/lindbergh_presse_en.pdf. Acesso em: 02 abr. 2022.
5 Brasil comemora 10 anos de cirurgia robótica. Disponível em: https://www.einstein.br/sobre-einstein/imprensa/press-release/brasil-comemora-10-anos-de-cirurgia-robotica. Acesso em: 02 abr. 2022.
6 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2311/. Acesso em: 28 mar. 2022.
7 Disponível em: https://www.kingsleynapley.co.uk/insights/blogs/blog-medical-negligence-law/heart-breaking-robotic-surgery-patient-dies-as-a-result-of-robotic-assisted-heart-surgery#page=1. Acesso em: 21 dez. 2021.
8 Neste período entre 2000 e 2013, foram realizadas 1,7 milhões de cirurgias robóticas. Adverse Events in Robotic Surgery: A Retrospective Study of 14 Years of FDA Data. Disponível em: https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1507/1507.03518.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
9 Disponível em: https://www.nbcnews.com/health/health-news/da-vinci-surgical-robot-medical-breakthrough-risks-patients-n949341. Acesso em: 4 dez. 2021.
10 Disponível em: https://cvn.com/proceedings/rosenberg-v-21st-century-oncology-et-al-trial-2021-04-15. Acesso em: 12 dez. 2021.
11 Autos 0307386-08.2014.8.24.0023. Dessa sentença, foram interpostos recursos por ambas as partes, que, no dia 05.04.2022, ainda aguardavam julgamento pelo TJSC. Ao propósito do estudo sobre a referida decisão judicial brasileira, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.
12 MCLEAN, Thomas R. The Complexity of Litigation Associated with Robotic Surgery and Cybersurgery. The International Journal of Medical Robotics and Computer Assisted Surgery, v. 3, p. 23-29, fev. 2007.
13 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Estudo comparatístico da responsabilidade civil do médico, hospital e fabricante na cirurgia assistida por robô. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 33-67.
14 NOGAROLI, Rafaella; KFOURI NETO, Miguel. Procedimentos cirúrgicos assistidos pelo robô Da Vinci: benefícios, riscos e responsabilidade civil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 9, n. 3, jul./set. 2020.
15 Proctor é o médico altamente especializado em cirurgia robótica, que possui elevado grau de conhecimento do robô Da Vinci.
16 PAGALLO, Ugo. The Laws of Robots: crimes, contracts, and torts. Londres: Springer, 2013, p. 88-94.
17 Disponível em: https://cbc.org.br/diretrizes-de-certificac%CC%A7a%CC%83o-em-cirurgia-robotica-2020/. Acesso em: 22 dez. 2021.
18 BHATIA, Neera. Telesurgery and the Law. In: KUMAR, Sajeesh; MARESCAUX, Jacques (coord.). Telesurgery. Londres: Springer, 2008, p. 175-181.
19 Disponível em: https://www.drleonardoortigara.com.br/artigos/o-panorama-da-cirurgia-robotica-no-brasil-em-2021. Acesso em: 5 abr. 2022.
20 CHOI, Paul J. Telesurgery: past, present, and future. Cureus Journal of Medical Science, v. 10, n. 5, maio 2018. Ao propósito do estudo mais aprofundado sobre os benefícios e riscos das cirurgias robóticas à distância, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e consentimento do paciente nas cirurgias robóticas realizadas à distância (telecirurgias). In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. (coord.). Telemedicina: Desafios Éticos e Regulatórios. Indaiatuba: Foco, 2022. [No prelo]
21 Disponível em: https://www.intuitive.com/en-us/about-us/company/legal/safety-information. Acesso em: 5 abr. 2022.
22 TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.1, n. 2, p. 4-75, abr./jun., 2000.
23 A respeito das teorias sobre o nexo de causalidade, remeta-se a TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. Revista trimestral de direito civil (RTDC), v.6, n. 2, p. 3-19, abr./jun., 2001. Ademais, sobre a complexidade na aferição do nexo de causalidade em novas tecnologias na saúde, remeta-se a NALIN, Paulo; NOGAROLI, Rafaella. Perspectivas sobre ética e responsabilidade civil no contexto dos robôs inteligentes de assistência à saúde. In: CAMPOS, Aline França; BERLINI Luciana Ferananda. (coord.). Temas contemporâneos de responsabilidade civil: teoria e prática. Belo Horizonte: D’Plácido; 2020. p. 61-94.
24 Discussão que paira na doutrina e frequentemente se observa na jurisprudência é sobre a possibilidade de solidariedade do médico-cirurgião pelos atos de demais membros da equipe médica, tal como um erro de médico auxiliar ou do anestesista. Sobre o tema: STJ, REsp 1790014/SP, j. 11/05/2021; STJ, EREsp 605.435/RJ, j. 2012
25 Ao propósito do estudo sobre teorias do nexo causal e a concorrência de causas, remeta-se às nobres lições de ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil – responsabilidade civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 462-513.