Migalhas de Responsabilidade Civil

Direito constitucional à situação existencial dos filhos: responsabilidade civil e abandono afetivo

Direito constitucional à situação existencial dos filhos: responsabilidade civil e abandono afetivo

29/3/2022

Introdução

O reconhecimento dos filhos e suas implicações estão muito além das previsões do Código Civil, em relação, por exemplo, à guarda (em termos de proteção, art. 1.583, CC/02), ou à proteção àqueles, havidos ou não, da relação de casamento (art. 1.596, CC/02), ou ainda na condição de herdeiros necessários (art. 1.845, CC/22). O respeito e sua dignidade, dos pais com aqueles, o cuidado, sua valoração, estão previstos pelo Direito Constitucional e também infraconstitucional.

Sobre o ser humano e a importância da família, a doutrina ensina no sentido de que: “é certo que o ser humano nasce inserto no seio familiar – estrutura básica social – de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal”.1  Já em relação ao objeto do Direito de Família, aquele recai justamente sobre a família.2

É justamente por ver o filho, no seio familiar e inserido por seus pais, que entendemos pela necessária formação e existência de um ambiente mínimo de respeito e de sua valorização, promovendo seu desenvolvimento na condição existencial de filho. Por outro lado, situações ocasionadas pelos genitores que venham a apagar aquela condição ou situação, através do fato abandono afetivo, fazem nascer a discussão relativa às reparações civis, estas que, em termos de causa de pedir e pedido, devem buscar e contextualizar um olhar constitucional sobre o tema, em termos de preservação da dignidade daquela situação existencial, como forma de promoção interna e externa da família e dos filhos, como passaremos a sustentar neste breve texto. Como ensina Paulo Bonavides sobre o conceito de direito constitucional, este se revela “[...] mais pelo conteúdo das regras jurídicas – a saber – pelo aspecto material – do que por efeito de aspectos ou considerações formais, dominantes historicamente [...]”.3

1. Família, pessoa constitucional, os Códigos e os filhos

Desenvolver-se como integrante de uma família, ver o respeito, a valorização da condição de filho (a), pelos pais, estes que, por sua vez, estão sob a mira da Constituição para com seus filhos é, em uma primeira análise, valorizar a dignidade da pessoa de cada um deles, justamente por uma série deveres impostos constitucionalmente. De sorte que desta breve reflexão, entendemos que existe, em um primeiro momento, uma conversa interna entre a própria Carta em relação à família e a dignidade de cada integrante.4

Cumprir com a norma constitucional, em especial no que toca à família, enquanto deveres constitucionais naquele texto inserido é, com certeza, como antes afirmamos, valorizar os filhos (as) enquanto seres humanos que são.5

Do primeiro diálogo partimos então para o segundo: dos Códigos para a Constituição, pois aqueles devem estar em sintonia com aquela; da Carta não podem desviar-se. No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente faz previsão de direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes (arts. 3º,6 15,7 178 e 189) bem como sobre deveres da família para com aqueles (art. 4º, caput). Portanto, a lei exige as condutas lá descritas, assim como o Código Civil, por sua vez, também trata sobre deveres dos pais, como o sustento, a guarda e a educação dos filhos.10

Das normas antes citadas, percebe-se, claramente, explicitamente ou implicitamente, um dever dos pais (e não apenas destes), de respeito, de tratamento digno às crianças e aos adolescentes. O fato é que tais deveres estão positivados e capitaneados pela Carta.

2. Abandono afetivo: dignidade e ordenamento

Recentemente, tivemos a oportunidade de nos posicionarmos acerca de uma visão mais ampla da responsabilidade civil no Direito de Família, buscando ver a pessoa humana como norte, justamente pelo princípio da dignidade, para além e para com os Códigos.11

Os Códigos não preveem tudo; não são um manual quando se fala dos novos rumos da responsabilidade civil, esta, que vem sendo tratada como verdadeiro direito de danos. Se existe uma luta pelo respeito ao ser humano em termos de sua existencialidade, também há casos de desrespeito, de negação e, quando isso ocorre na forma do abandono afetivo, a Carta deve responder adequadamente ao fato, em conjunto com as normas infraconstitucionais trazidas nestas linhas.

3. Conclusão

O amparo, o cuidado, o respeito e a valorização dos filhos por seus pais é, em nossa ótica, instrumento que os auxiliam no seu desenvolvimento pessoal, o que, como consequência, contribui para a felicidade no núcleo familiar, enquanto seres individualizados, mas, não por isso desconectados dos seus pais e mães: muito pelo contrário.

O Direito Constitucional prevê a família e, formada por cada integrante, caso negada a condição de filho pelo pai ou pela mãe, violado o princípio da dignidade da pessoa humana pois, negada sua condição existencial de filho, o que fundamenta a ação de reparação de danos imateriais neste sentido, eis que, para fins de direito privado, há, assim entendemos, violação a direito da personalidade, justamente pela impossibilidade de projeção da condição de filho para dentro da família e também externamente, no meio social inserido.

O entendimento trazido nestas linhas procura estabelecer a relação jurídica entre pais e filhos, enquanto o necessário respeito daqueles a estes, por força de uma interpretação constitucional do direito civil, à luz das normas constitucionais e infraconstitucionais mencionadas. De sorte que as lições de Anderson Schreiber, por analogia ao o que defendemos, vão no sentido de que “[...] as normas constitucionais podem e devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares”.12

Apenas como exemplo, a título de complementação da norma do art. 18 (antes transcrito), do ECA, abandonar um filho, em nosso atendimento, é também repugnante, aos olhos de sua situação existencial de ser humano e também de ser filho. Será que, inexistir um filho para o pai ou mãe é se entender como um fato normal da vida? Em nosso entendimento, daí resulta a objetividade de reconhecimento de sua situação existencial que é violada justamente pelo abandono, configurando o ato ilícito,13 passível de reparação por danos imateriais,14 nos termos da Constituição15 e do Código Civil.

As repercussões serão negativas, a ser analisadas a cada caso concreto, servindo, inclusive, de critérios para a quantificação do dano extrapatrimonial.

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ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui.

________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente. lei 8.069, de 13 de julho de 1990. DF, 17 jul. 1990. Disponível aqui.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.

SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

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1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 33.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 6. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 34.

3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 34.

4 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[...].

6 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

9 Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

10 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

[...]

IV - sustento, guarda e educação dos filhos;

[...].

11 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Reparação de danos imateriais e família: A pessoa humana para além (e com) a normatividade dos textos. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2021.

12 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 53.

 

13 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

14 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

15  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...].

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.