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Mudança climática e responsabilização estatal por omissão: breve apontamento sobre o desastre de Petrópolis

Mudança climática e responsabilização estatal por omissão: breve apontamento sobre o desastre de Petrópolis

15/3/2022

A alteração do clima é um evento mais antigo que a própria relação entre o homem e o meio ambiente. Eventos naturais, entretanto, ganharam uma nova qualidade e magnitude, quando passaram a sofrer a influência dos efeitos das ações antrópicas e de um modo de pensar, orientado pelas falsas ideias de infinitude dos recursos naturais e de um equilíbrio inabalável desses meios1.

Isso porque, apesar de a relação homem e o meio ambiente remontar aos primórdios da humanidade, foi estabelecida, durante muito tempo, sob bases utilitaristas, pois o ser humano enxergava a natureza como detentora de uma única função: servir aos fins pretendidos pela sociedade. Percepção distorcida da realidade ambiental que resultou em uma ação humana em que o manejo e gestão dos recursos ambientais nunca foram prioridades2.

Exatamente por isso que os desastres ambientais não são uma novidade do século XXI. Ao contrário, ocorrem há muito tempo. Muitos são os exemplos em âmbito mundial, como: (i) o caso da Fundição Trail Smelter, decorrente de impactos ambientais transfronteiriços entre o Canadá e Estados Unidos (1926-1941); (ii) Doença de Minamata resultante do envenenamento por mercúrio das águas da baía de Minamata, no Japão (1956); (iii) acidentes com os naivos tanques Torrey-Canion (1967); (iv)  nuvem de dioxina, fruto de uma explosão de uma fábrica de produtos químicos em Seveso, na Itália (1976); (v)    “pesadelo nuclear”, ocorrido em razão de uma falha mecânica em um reator de uma usina nuclear situada na Pensilvânia, nos Estados Unidos (1979); (vi) vazamento em Bhopal, ocorrido em razão de um vazamento em uma fábrica de agrotóxicos na Índia (1984); (vii) explosão de Chernobyl, resultado de uma explosão em um reator de uma usina nuclear na Ucrânia (1986);  (viii) acidente com o navio pretoleiro Amoco-Cadiz (1989), entre outros.

No Brasil podemos citar: (i) o acidente no Vale da Morte (1980), resultante da emissão de inúmeros gases tóxicos na cidade de Cubatão; (ii) o caso Césio 137 (1987), ocorrido em razão da exposição a material radioativo em Goiânia; (iii) rompimento da Barragem de Miraí (2007); (iv) rompimento da barragem de Mariana (2015); (v) rompimento da barragem em Brumadinho (2019), entre outros.

Desastres ambientais que são capazes de comprovar a postura imediatista e utilitarista adotada pelo homem em sua relação com o meio ambiente, como se ignorasse que “o mundo é todo comparável a uma imensa rede de relações. Não há nada que não seja afim e que não se relacione com todo o restante nesse universo”3.

Demonstram, ainda, que inexistia, por parte do ser humano, uma real preocupação com os resultados negativos de uma relação desregrada entre o homem e o ambiente que o circunda. Pensava-se que qualquer problema ambiental, além de atingir apenas um determinado recurso natural, ficaria restrito à uma área específica. Como num conto mágico, as pseudos barreiras geográficas seriam capazes de impedir ou minimizar todas as implicações advindas de um desastre ambiental4.

Os diversos desastres ambientais, ocorridos ao longo do século XX, trataram de demonstrar, na prática, que, além daquele pensamento estar equivocado; as atividades antrópicas já haviam ocasionado impactos tão grandes que, diante da superação dos limites depurativos do planeta, estávamos perante uma crise ambiental de proporções jamais vistas. E, pior, o problema, ao contrário do que se imaginava, é dotado de incerteza quanto aos seus impactos, exigindo, na busca por solução, a cooperação de todos os atores internacionais5.

Nesse momento, a sociedade mundial percebeu que se encontrava diante de uma crise ambiental, caracterizada pela socialização dos danos, ainda que a utilização dos recursos naturais e as riquezas produzidas não tenham sido equitativa e socialmente distribuídas. Os problemas ambientais ganharam, de tal forma, proporções condizentes à uma sociedade globalizada, não se encontravam, portanto, restritos à determinada área, país ou continente. E, evidentemente, não podiam continuar a ser enfrentados isoladamente6.

As mudanças climáticas aparecem, desta feita, como um dos principais e prioritários problemas a serem enfrentados, neste século, face às alterações em seus padrões de ocorrência, em níveis bastante preocupantes. É, por isto, um dos temas mais relevante, quando se discute a crise ambiental global. E, diante das características dessas mudanças e das suas incertezas, os impactos das mudanças climáticas não ficam apenas na seara físicoambiental; trazem inúmeras outras implicações: sociais, econômicas, políticas, culturais e jurídicas. A realidade do fenômeno joga por terra qualquer ideia, cuja noção é de que todo problema ambiental, além de poder ser enfrentado isoladamente e de forma compartimentada, é o mesmo que poluição7.

Prova disso é o fato de as alterações climáticas serem capazes de agravar a desertificação, a crise de recursos hídricos, a crise de biodiversidade, o degelo das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos, a queda da produção agrícola, os riscos para a saúde humana, e, intensificar a movimentação populacional no mundo, gerada pela deterioração ambiental. Tais alterações, como podem ser verificadas, afetam a todos do planeta8.

A necessidade de rever essa relação desregrada entre o homem e o meio ambiente é anunciada, em âmbito internacional, desde o surgimento da Declaração de Estocolmo (1972). Lado outro, em nível nacional, essa necessidade ganha força com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, inaugurando, uma nova ordem ambiental estabelece um norte para a efetivação da proteção ambiental, assim como fixa um sistema de repartição de competências entre os Entes Federados. Tudo objetivando assegurar uma melhor adequação das normas às peculiaridades locais.

Cabendo, de tal forma, aos Municípios desenvolver a Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito local, assim como a Política Nacional sobre Parcelamento do Solo Urbano e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano9.

Neste sentido, devem, os Municípios, implementar, em âmbito local, medidas assecuratórias dos princípios que regem o direito urbanístico e ambiental, dentre os quais: (i) desenvolvimento sustentável; (ii) garantia do direito a cidades sustentáveis; (iii) gestão democrática das cidades; (iv) cooperação entre governos; (v) planejamento e distribuição das atividades econômicas; e, (vi) integração da atividade uirbana e rural, entre outros.

Assim sendo, resta demonstrado que todos os Entes Federados, inclusive o Município, possuem a obrigação de adotarem medidas aptas a assegurar a precaução e a prevenção de desastres ambientais e dos seus riscos.

Importante observar que catástrofes decorrentes de efeitos das mudanças climáticas não são novidade em território nacional, sendo possível citar: (i) a catástrofe ocorrida, aos 24 de Janeiro de 1967, na Serra das Araras, Rio de Janeiro; (ii)  a catástrofe ocorrida, aos 20 de Março de 1967, em Caraguatatuba, São Paulo; (iii) a catástrofe ocorrida, aos 08 de Fevereiro de 1988, em Petrópolis, Rio de Janeiro; (iv) a catástrofe ocorrida, aos 12 de Janeiro de 2011, em Petrópolis, Rio de Janeiro; entre outras. Possivel perceber, de tal forma, que os impactos decorrents das alterações climáticas ocorrem em território nacional há tempo e de forma razoavelmente recorrente10.

Desta feita, o desastre ocorrido, aos 20 de fevereiro de 2022, em Petrópolis/RJ, decorrente de deslizamentos e inundações ocasionadas pelas chuvas que atingiram a cidade, vitimando mais de 130 (cento e trinta) pessoas, não pode ser considerado uma surpresa, mas sim uma consequência do descaso Estatal que insiste em negligenciar o seu dever cautela e de inobservar as normativas internacionais, nacionais, estaduais e municipais relacionada ao tema.

Isso porque, sobre o Estado recai um dever de cuidado que impõe uma atuação preventiva capaz de, dentro dos limites impostos pela técnica, evitar a ocorrência de desastres climáticos.

Prova da negligência Estatal em Petrópolis é o fato de ‘a ocupação em áreas de risco em Petrópolis ter crescido mais que a média da ocupação total da cidade nos úlmimos 35 (trinta e cinco) anos. Enquanto as áreas totais de habitação na cidade saltaram de 30 quilômetros quadrados, em 1985, para 50 em 2020, as ocupações em aglomerados subnormais (locais de habitação irregular e em área de risco), saltaram de 1,9 para 4,1 quilômetros quadrados no mesmo período”11.

A tragédia era anunciada e há muito conhecida, pois, além de desastres ambientais semelhantes terem ocorrido em 1988 e 2011, desde 2017 o Município possuia um Plano Municipal de Redução de Riscos que, através de seu trabalho de campo, “comprovou o contínuo crescimento da ocupação das enconstas para áreas de Perigo Alto e Muito Alto, áreas estas que se confundem com as áreas de preservação permanente (APP’s)”12.

Desta feita, ciente dos riscos inerentes ao aumento das ocupações subnormais, deveria o Estado ter exercido o seu dever de cautela, controle e fiscalização para, assim, concretamente agir objetivando mitigar os riscos, o que, ao que parece, não foi feito. E, assim sendo, existem bases suficientes para a sua responsabilização por omissão, pois a sua inércia foi determinante para a concretização e/ou agravamento dos danos causados em razão das chuvas que atingiram a cidade.

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1 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016.

2 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática… Op. Cit.

3 Frase atrubuída a Lama Anagarika Govinda (Monge Budista – 1898-1985).

PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit.

5 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit.

6 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit.

7 PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática...Op. Cit.

8 Neste sentido ver: GIDDENS, Anthony. A Política da Mudança Climática. Tradução para o português de Vera Ribeiro. Revisão Técnica de André Piani. Apresentação à Edição Brasileira de Sérgio Besserman Vianna. Editora Zahar. Rio de Janeiro.2010. p.07 ss; YAMIN, Farhana; DEPLEDGE, Joanna. The International Climate Change Regime: A guide to rules, institutions and procedure. Cambridge University Press. Cambridge. 2004. p.21-22; PIMENTA, Daniel Veiga Ayres. Mudança Climática e Movimento Populacional: Propostas para o enfrentamento do problema dos deslocados ambientais. São Paulo: Max Limonad, 2016.

9 FARIAS, Talden et al. Direito Ambiental. Coord. Leonardo de Medeiros Garcia. Coleção Sinopses para Concurso. 3ª Edição. Editora JusPodivm. 2015. p.84 ss.

10 Essas informações foram obtidas em: http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,catastrofe-em-petropolis-e-uma-das-maiores-da-historia,70003984015,0.htm#:~:text=Centenas%20de%20vidas%20perdidas%2C%20milhares,hoje%20%C3%A9%20de%20917%20mortos.

11 Trecho retirado de reportagem de autoria de Iuri Corsini, entitulada Petrópolis: ocupação de áreas irregulares acelerou desde 1985, diz especialista. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/petropolis-ocupacao-de-areas-irregulares-acelerou-desde-1985-diz-especialista/#:~:text=Enquanto%20as%20%C3%A1reas%20totais%20de,quil%C3%B4metros%20quadrados%2C%20no%20mesmo%20per%C3%ADodo.

12 DE OLIVEIRA, Luis Carlos Dias et al. Plano Municipal de Redução de Riscos PMRR – 1º (revisão), 2º, 3º, 4º e 5º Distritos – Petrópolis/RJ. p.151. Disponível em: https://sig.petropolis.rj.gov.br/cpge/Reflexoes.pdf.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.