Enchentes, deslizamentos, secas, incêndios, mudanças climáticas. Há contornos próprios e angustiantes nos quadros de captação e previsibilidade em relação aos riscos e desastres nas sociedades contemporâneas do século XXI. Para apreender em teor direto a configuração desses quadros, parte-se de contextos de assimilação ou descrição que revestem limiares de ruptura da normalidade, a acompanhar conjunturas de desastres e danos ambientais. Esses contextos determinam uma reflexão sobre os indicadores de variação, resistência e segurança, projetados no passado e que ainda têm seus objetos de avaliação em operação, mas sujeitos a novos parâmetros de aferição de risco.
Em outras palavras, em que medida construções, estradas, sistemas de captação fluvial e pluvial, sistemas de irrigação, materiais de resistência, todos projetados no passado em conjunturas ali apuradas, são hoje sujeitos a novos parâmetros de avaliação que tornam inseguras ou sujeitas à revisão as variáveis de segurança então existentes? Este ponto é central quando se pensa em matrizes de risco e prevenção em termos jurídico-ambientais. Em que medida o parâmetro do passado ainda se aplica para fins de avaliação de patamares de previsibilidade? As novas conjunturas de risco tornaram o previsível imprevisível, fator que se acentua com as mudanças climáticas.
Tomem-se as avaliações de estimativa de níveis de chuva. É habitual, quando se depara com enchentes ou alagamentos, que a notícia descritiva seja acompanhada da referência de que nos dias ou semanas do ocorrido os níveis de chuva superaram demasiadamente a média do mês. A questão provocativa é justamente até que medida as médias do mês para fins de previsibilidade são ainda sólidas para se fazer planejamentos de ação? Em que medida os níveis históricos precisam ser reconfigurados em análise para que agentes privados, sociedade e o próprio Estado se planejem em face das situações de risco?
A prevenção e a precaução ambientais confrontam-se com um solo movediço em relação às variáveis de planejamento em face dos eventos naturais, que em verdade passam a ser cada vez mais influenciados por interferências antrópicas. O Instituto Nacional de Meteorologia – INMET – possui dados de análise das condições climatológicas apurados ao longo dos anos, inclusive com balanços climatológicos.
Em relação às chuvas ocorridas no Estado de Minas Gerais em janeiro de 2022, o INMET indica uma média histórica para o mês, apurada de 1981 a 2010. Os dados indicam que a média histórica para o mês, em Belo Horizonte, é de 329,1 mm ao passo que em janeiro de 2022 o total acumulado foi de 528,2 mm. O volume de chuvas acarretou o galgamento da barragem da Mina de Pau Branco, a partir do que a barragem foi incapaz de conter os rejeitos, que se projetaram sobre área ecológica e ocuparam a BR-040, interditando a via. As estimativas de cálculo de contenção mostraram-se falhas. Situação que também demonstra os níveis dissonantes entre expectativa e concretização se passou em Petrópolis, que sofreu profundo desastre ambiental e humanitário com as chuvas de fevereiro de 2022, a exemplo de desastres anteriores, como o de 2011, também sofrido pela região serrana do Rio de Janeiro.
Os desastres e crises ambientais provocam reflexão direta em termos de prevenção e de gestão de riscos para efeitos da responsabilidade civil. Os dados históricos, as médias de ocorrência, os limites-padrões de resistência ou durabilidade não podem ser tomados como réguas ou referenciais inalteráveis na gestão de medidas preventivas ou de precaução. A crise ambiental remete à crise dos referenciais de previsibilidade ou de referência de valorações de segurança.
Mecanismos de prevenção ou estimativas de contenção de risco precisam estar apoiados em lastros de segurança que tenham uma crescente margem de resistência para variações que superem níveis de regularidade. Não se pode mais simplesmente programar ou gerir situações de risco com base em estimativas históricas lastreadas em outras conjunturas, justamente porque o perfil climático e ambiental como um todo está a sofrer alterações drásticas, sinérgicas e cumulativas cuja manifestação instável sujeita à confluência de variáveis diversas.
A responsabilidade civil em matéria ambiental caminha para a tomada da prevenção e da precaução não somente a partir de roteiros de avaliação de conformidade para com indicadores usuais de segurança e resistência, mas também para com indicadores de imprevisibilidade, para com margens de segurança em face de instabilidades que projetem efeitos drásticos e de ocorrência probabilística não usual. O papel preventivo da responsabilidade civil passa, portanto, pelo desenvolvimento de fatores de margem de segurança extremados, lastreados cada vez mais não na probabilidade da anormalidade das variáveis de composição de risco, mas sim nas instabilidades reativas e nas extensões de dano projetável, ou seja, na magnitude de dano estimada em caso de concretização do risco.
O Decreto 10.593/20, a regulamentar as leis 12.340/10 e 12.608/12, dispõe sobre a organização e funcionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e sobre o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, dentre outros temas de relevância. As ações de prevenção são descritas como medidas prioritárias destinadas a evitar a conversão de risco em desastre ou a instalação de vulnerabilidades. As avaliações e análises de vulnerabilidades, a acarretarem inclusive imputações de responsabilidade civil se ocorrido o dano, demandam a gestão de margens de instabilidade em uma verdadeira estimativa de imprevisibilidade relativa aos indicadores de previsibilidade históricos, que são cada dia mais suscetíveis de excepcionalidades.
A questão que advém em uma sociedade de risco e na era dos desastres ecológicos é a imposição judicial e administrativa de situações de margem de risco aptas a fazerem face às excepcionalidades da linha média de prevenção exigida para atividades e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de danos ambientais de alta magnitude.