Um indivíduo perdeu um dia de férias em razão de um atraso de voo e recebeu uma indenização por danos morais de 5 mil reais; outro sujeito teve seus dados pessoas utilizados para a realização de fraudes bancárias e abertura de financiamentos em seu nome, e também recebeu indenização por danos morais de 5 mil reais. Casos tão diferentes, com violações a bens jurídicos diferentes e repercussões pessoais e sociais diversas, mas com valores iguais de indenização. Como julgar se o valor recebido pelas partes é justo ou adequado?
Estes casos são reais e traduzem um fenômeno que se repete todos os dias na prática de juízes e advogados, inclusive em casos diferentes do ilustrados acima. Este breve texto busca fazer apontamentos gerais sobre o método bifásico de quantificação dos danos morais, como instrumento que permite fornecer parâmetros de adequação e justificação dos valores atribuídos às indenizações por danos morais, avaliando o método e, principalmente, sua prática jurisprudencial. Com isso, o texto introduz as bases para uma pesquisa empírica em curso acerca do uso do método na jurisprudência brasileira.
1. A problemática da quantificação
“Quanto vale uma indenização por dano extrapatrimonial?” é uma questão que ocupa há muito tempo a doutrina civilista e os juristas práticos, tendo recebido uma enorme quantidade de respostas. Elas costumam tomar como ponto de partida o reconhecimento da inviabilidade na aplicação do princípio da reparação integral aos danos morais, ou pelo menos na forma como tradicionalmente se caracteriza este princípio – isto é, que a indenização deve corresponder à exata extensão aferida do dano. O problema, portanto, é posto em como medir a extensão de um dano extrapatrimonial.
Para isto, a jurisprudência vem determinando critérios que auxiliem na mensuração da extensão do dano extrapatrimonial. De forma bastante difusa, são diversos os critérios que são aplicados na prática, os quais somente podemos listar exemplificativamente: 1) Extensão do dano; 2) Vedação ao enriquecimento sem causa; 3) Posição da vítima; 4) Posição do agressor; 5) Situação econômica da vítima; 6) Situação econômica do ofensor; 7) Razoabilidade; 8) Equidade; 9) Proporcionalidade; 10) Culpa concorrente da vítima; 11) Indústria do dano moral; 12) Função punitiva; 13) Função pedagógica; 14) Função preventiva; 15) Grau de culpa do ofensor; entre outros.
Para operar com estes critérios, é necessário adotar uma sistemática de aplicação que, em verdade, configura um método de quantificação. Todos os dias estes métodos são aplicados, mesmo que de forma rudimentar e pressuposta nos processos decisórios. Os esforços doutrinários mais recentes em matéria de quantificação de danos morais vêm sendo na formulação e sistematização destes métodos.
2. O método bifásico
Uma das propostas de método de quantificação mais influente na doutrina e jurisprudência recentes é o chamado método bifásico. O seu formato de maior fôlego pode ser visto na pesquisa de doutoramento do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, publicada em 2010 com o título “Princípio da Reparação Integral: indenização no Código Civil”1. Todavia, é no surgimento de diversas decisões que aplicam o método – inclusive do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do próprio Min. Sanseverino e de outros ministros – que a sua relevância é posta.
O método consiste em duas fases. Na primeira, o julgador arbitra um valor de indenização por danos morais tendo como base precedentes judiciais em casos de violações do mesmo bem jurídico objeto da demanda, traçando uma média dos valores geralmente deferidos pela jurisprudência e fixando um “valor-base”. A ideia, nesta fase, é garantir uniformidade e igualdade nas decisões de casos similares2.
Na segunda fase, o método propõe uma modulação do valor-base atribuído na primeira fase de acordo com as peculiaridades do caso. Para isso, são aplicados alguns critérios que permitem o aumento ou a diminuição do valor-base de acordo com a incidência e peso do critério. O min. Sanseverino elenca quatro critérios: a) a gravidade do fato em si; b) a culpabilidade do agente; c) a eventual culpa concorrente da vítima e; d) a condição econômica das partes3. A seleção destes critérios específicos não é justificada na elaboração doutrinária do método, sendo um ponto de necessária análise para verificar se esses são critérios importantes e se outros poderiam figurar no rol de critérios da segunda fase.
O método, como proposto, é simples e não constitui uma grande novidade, como é bem evidente. Em certo sentido, é uma forma de adaptação da metodologia de dosimetria da pena, prevista no Código Penal, à Responsabilidade Civil. Porém, é uma das formas mais elaboradas disponíveis para discussão de um processo de quantificação de danos morais minimamente justificado, que supere o excesso de arbitrariedade presente na prática jurídica. Por isso, vale a pena discuti-lo. Ele pode ser um ponto de partida para uma formulação mais robusta em busca de um processo de quantificação de indenizações mais racional e justificado.
3. A absorção do método bifásico pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Ao se falar na influência que o método bifásico possui, especialmente quanto à sua construção jurisprudencial, é forçoso reconhecer a notória contribuição do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, a quem se atribuem os méritos na tarefa de introduzir sua utilização nos julgados do STJ, além de toda a sistematização doutrinária realizada por ele já comentada.
Na condição de integrante da Corte, o ministro invocou o método na ocasião do julgamento do Recurso Especial 959.780/ES pela 3ª turma, ocorrido em 26 de abril de 2011, e que envolvia o reconhecimento de indenização por dano moral em decorrência de evento morte. Trata-se do julgado paradigma na adoção do método bifásico pelo Tribunal.
A partir de então, verifica-se que sua absorção pela jurisprudência do STJ ocorreu de forma consideravelmente paulatina, com a primeira ocorrência de sua utilização pela 4ª turma apenas em 04 de outubro de 2016, no julgado do REsp 1.473.393/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão4.
Em que pese a relevância em se estabelecer parâmetros para a aferição do quantum indenizatório, é importante destacar que a utilização do método pode estar associada, em determinados casos, a uma aplicação abstrata e imprecisa das circunstâncias moduladoras da segunda fase, o que compromete a sua operabilidade e a segurança na sua aplicação.
É o caso, por exemplo, do entendimento firmado no AgRg no REsp 1.493.022/PE, relatado pelo min. Paulo de Tarso Sanseverino e julgado pela 3ª turma em 05 de fevereiro de 2015.
A hipótese em comento remete a acidente de trânsito ocorrido no Estado de Pernambuco, o qual resultou na morte de filho da autora. Diante do trágico evento, a requerente pleiteou judicialmente, em desfavor de empresa cujo condutor de ônibus esteve envolvido na colisão, pensão por morte e indenização por danos morais.
Ao julgar recurso de apelação, o TJ/PE arbitrou a indenização por danos morais em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), gerando inconformidade à parte autora, que interpôs Recurso Especial ao STJ, por considerar o valor ínfimo frente à extensão da lesão suportada.
De fato, trata-se de montante expressivamente inferior à média arbitrada pelo STJ para casos que envolvem o dano à vida (evento morte), a qual costuma oscilar entre 300 (trezentos) e 500 (quinhentos) salários-mínimos, conforme reconhecido pelo próprio Ministro Sanseverino na relatoria do caso em questão.
Com relação ao valor da primeira fase, o ministro afirma que, “em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos), [...] deveria ser fixado em montante equivalente a 400 salários-mínimos na data de hoje”, que representa a média do arbitramento feito pela 3ª e pela 4ª turma, que integram a Segunda Seção do STJ.
Já ao analisar sinteticamente as circunstâncias da segunda fase do método, o Ministro assegura que “deve-se considerar, em primeiro lugar, a gravidade do fato em si, morte do filho, e a própria discussão, nos autos, da ocorrência ou não de caso fortuito e da culpa do motorista da empresa ré”.
Em seguida, transcreve trechos do acórdão recorrido e conclui, ao final, no sentido de arbitrar a indenização no montante equivalente a 300 salários-mínimos, sendo acompanhado de forma unânime por seus pares.
A partir da leitura do inteiro teor do Acórdão, é possível extrair duas principais conclusões. A primeira é a de que não há clareza no peso atribuído a cada critério para majorar ou minorar o valor da primeira fase, o que faz com que não seja possível identificar a influência preponderante de quaisquer dos critérios aplicados para redução do quantum, a fim de justificar que o valor da segunda fase seja menor que o da primeira fase (redução significativa de 400 para 300 salários-mínimos).
A segunda, que está diretamente associada à anterior, reside na referência meramente descritiva dos parâmetros, como se dá, por exemplo, com a gravidade do fato em si; a leitura do acórdão, neste particular, não nos permite concluir de forma peremptória se o resultado morte foi considerado como fato ensejador da elevação do quantum, ou se estamos diante de mera indicação nominal de uma das circunstâncias da segunda fase do método (gravidade do fato em si).
É importante dizer que não se está a defender que o evento morte seja considerado uma circunstância capaz de majorar o quantum – uma vez que o valor da primeira fase já compreende a natureza do bem jurídico violado e, consequentemente, a extensão genérica do dano –; na realidade, sustentamos apenas que é necessário que se possa compreender o impacto que cada fator teve na delimitação do valor final da indenização.
A realidade apresentada no julgamento do AgRg no REsp 1.493.022/PE não representa fato isolado na jurisprudência do STJ. Há diversidade de casos em que podemos encontrar inconsistências parecidas na aplicação do método, o que se atribui, em suma, a fatores que não podem ser explicitados com a devida profundidade neste texto, mas que podem ser parcialmente conhecidos em pesquisa anteriormente publicada a respeito do tema5.
Para além do que foi destacado quanto ao julgado mencionado anteriormente, existem, ainda, outras questões a serem objeto de atenção dos estudiosos do assunto, tal como a referência a circunstâncias que não estão previstas no âmbito da segunda fase do método, o que ocorreu no julgamento do REsp 1.897.338/DF, em que se considerou “a responsabilidade do agente” para a fixação definitiva da indenização.
Em suma, são pontos de análise que justificam a continuidade dos estudos acerca do método bifásico e sua utilização, sem excluir, porém, que sejam considerados parâmetros diversos para a fixação do quantum em indenizações por danos morais.
4. Notas conclusivas
A caminhada em busca de maior previsibilidade no processo de quantificação das indenizações por danos morais nos remete, a um só tempo, à inevitável conclusão de que não se pode utilizar os mesmos critérios aplicados aos danos de natureza patrimonial, e a uma miríade de parâmetros usualmente encontrados na doutrina e na jurisprudência para justificar a fixação de valores.
O método bifásico de quantificação é, indubitavelmente, marco relevante nesse processo, não apenas pela sua qualidade teórica – e seu projeto de reduzir o grau de subjetividade na aferição do quantum indenizatório –, mas também pela sua influência prática – com sua absorção na jurisprudência do STJ e, por consequência, em outros tribunais.
Porém, a despeito dos méritos que o método traz consigo, há questões controversas que persistem no que diz respeito a sua utilização e à escolha dos critérios da segunda fase que foram definidos na formulação do min. Paulo de Tarso Sanseverino. Justifica-se, com isso, maiores pesquisas sobre o tema que possam esclarecer como o método opera na prática.
Ao buscar sistematizar o que acreditamos se tratar de pontos nebulosos no tocante ao método e à sua prática, nosso intuito foi o de lançar algumas provocações acerca da temática, sem qualquer viés de esgotar a análise ou de minimamente delimitar o estado da arte da matéria – ao menos neste momento.
Ao contrário, o presente estudo lança indagações e introduz uma pesquisa em curso desenvolvida pelos autores deste texto, dentro dos trabalhos do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico (UFPR), que visa avaliar, através de pesquisa empírica jurisprudencial, se a aplicação do método bifásico de quantificação das indenizações por dano extrapatrimonial possui coerência com seus próprios fundamentos e operabilidade nas decisões que a aplicam, especialmente no STJ.
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1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.
2 Em outro artigo nesta coluna, Lucas Faccio apresenta novas iniciativas na formulação de tabelas como parâmetros para as indenizações por dano moral, que podem ser lidas como formas de avançar primeira fase do método bifásico. Cf.: FACCIO, Lucas Girardello. Uma nova fase do tabelamento do dano moral no Brasil. Disponível aqui.
3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 288-289.
4 A afirmação de que se trata do caso pioneiro de aplicação do método no âmbito da 4ª Turma do STJ deriva de pesquisa jurisprudencial realizada no sítio eletrônico do Tribunal, em 22 de fevereiro de 2022, com os indexadores , tendo sido localizados 90 julgados ao todo, 23 dos quais são pertencentes à 4ª Turma.
5 FAMPA, Daniel Silva; SILVA, João Vitor Penna e. A quantificação das indenizações por danos morais e o método bifásico na jurisprudência do STJ. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira; SANTANA, Ágatha Gonçalves. (Org.). Responsabilidade Civil no Século XXI e a construção do Direito de Danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 133-154. Disponível aqui.