O digital é um país das “maravilhas” para quem quer se maravilhar, se encantar, mas também para aqueles que querem atingir violentamente o outro.
A Internet é um mundo aberto a todas e quaisquer tipos de pessoas. Não temos qualquer controle sobre “o que e como é veiculado” quando optamos por nos expor abertamente nele. Haverá olhos para a beleza e para a feiura, para o bom e para o mau, para o afetado e para o indiferente. Não sabemos “se e” quais olhos recairão sobre nossa imagem (ou de nossos filhos). Nem mesmo qual a veemência, tom e repercussão desse olhar.
Nesse sentido, o sociólogo Manuel Castells adverte que a sociedade em redes é permeada por aspectos específicos e intercambiantes. Destaco aqui alguns deles. O primeiro é a concepção da informação como a grande nova matéria-prima da sociedade. Há “tecnologias para agir sobre a informação, não apenas informação para agir sobre a tecnologia, como foi o caso das revoluções tecnológicas anteriores”1.
A segundo aspecto para o qual chamo a atenção é que, assim como a informação é uma parte integral de toda atividade humana, todos os processos da existência individual e coletiva acabam sendo moldados pelo novo meio tecnológico. É o que Castells denomina de penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. Por isso, grande parte da população brasileira conheceu a pequena Alice e seu atual drama. Raros os que não estão conectados nas redes sociais.
Saliento, por fim, a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado. Castells afirma que atualmente as telecomunicações são tão somente uma forma de processamento da informação, pois as tecnologias de transmissão e conexão estão, simultaneamente, cada vez mais diversificadas e integradas à mesma rede operada por computadores. Em outras palavras, trata-se de um sistema aberto como rede de múltiplos acesso.2
Os benefícios dessa conectividade, integratividade e ubiquidade, todos nós nos favorecemos diuturnamente em alguma medida. Mas, o caso da doce e meiga Alice, remete-nos ao lado sombrio e perverso da sociedade em redes ou sociedade da informação.
A garotinha acabou “se tornando uma informação” nas redes! E, como tal, o mundo digital se apropriou de seus atributos da personalidade, especialmente da imagem e da voz. De vídeos que encantaram milhares de pessoas no Brasil e no mundo, inicialmente divulgados reiteradamente pelos pais ou com o consentimento destes, sucedeu-se a uma “objetivação” da garotinha, tão linda e tão comunicativa.
Sim, tratam-na hoje como um objeto/informação que pertence ao mundo digital. Nem mesmo res derelictae ou res nulliuns. Não! Concebem-na, os desavisados das redes, como se fosse propriedade inata das redes. Seguem-se reiteradamente memes, violação aos direitos da personalidade da menor, ganhos ilícitos sobre sua imagem, afronta direta e inadmissível à sua integridade moral. Isso é indiscutivelmente inadmissível. Qualquer ser humano jamais pode coisificado.
Ainda que diversos vídeos da pequena Alice circulem pelas redes – e mesmo que alguns tenham a autorização e fomento dos pais – como pessoa humana, seus atributos da personalidade jamais podem ser concebidos como uma informação ou objeto pertencente ilimitadamente ao mundo digital.
Independentemente de haver a participação dos pais ou não na divulgação das imagens, de ser a criança reiteradamente exposta em rede social pelos familiares, de haver um ou milhares de vídeos divulgados com autorização dos pais, a dignidade humana da pequena Alice mante-se juridicamente íntegra e merecedora de proteção. Sua dignidade enquanto pessoa humana não perde medida, não tem redução na proteção. É tão grande e valorosa de quando nasceu e de antes de ganhar notoriedade nas redes sociais.
Por isso os pais são responsáveis por proteger a imagem e todos os atributos da personalidade dos filhos no mundo digital. Trata-se de uma responsabilidade que transcende o campo moral e impõe implicações jurídicas para a autoridade parental determinada legalmente.
É preciso, acima de tudo, compreender que a imagem dos filhos não pertence aos pais. Independentemente de a exposição ter ou não finalidade econômica, é dever dos pais tomar todos os cuidados e providências para proteger, não só a imagem, mas todos os atributos da personalidade do filho. Deve salvaguardá-los de contextos que possam comprometer a sua dignidade humana. Nessa toada, é dever refletir sobre os prováveis impactos, positivos e negativos na esfera deles, e reconhecer a impotência e a fragilidade humana na Internet, sem descurar da peculiar vulnerabilidade de crianças e adolescentes dentro e fora as redes. Aliás, na Internet é possível afirmar a hipervulnerabilidade delas e, consequentemente, há exigência de maior atuação da autoridade parental, como retomarei linhas abaixo.
Como já dito, o mundo digital é imprevisível. Entretanto, muitas vezes, há circunstâncias que já são conhecidamente propícias à violação aos direitos da personalidade. O caso da garotinha Alice é um deles. Os vídeos meigos, engraçadinhos e surpreendentes ganharam as redes sociais de forma escancarada, fomentada diariamente pelos próprios pais.
Em minha tese de doutoramento, defendi, com respaldo em outros estudiosos do tema, que na sociedade da informação, a autoridade parental ganha novos contornos. A mediação dos filhos com a tecnologia passa a integrar esse poder-dever de forma ainda mais ativa.3
Afirmo, ainda, que o acesso à Internet é um direito fundamental de crianças e adolescentes. Os benefícios do mundo digital são inúmeros, contribuem para a efetivação do direito à educação (v.g. a viabilização da continuação do ensino durante a atual pandemia), do direito ao lazer, do direito ao convívio social (mais uma vez, temos o exemplo dos tempos de isolamento mais recrudescido ao longo da pandemia). Isso para citar apenas algumas das vantagens que já são conhecidas.
A questão fulcral na atualidade e urgente é debater “o como”, “em que medida”, “os limites” e “as diretrizes” para o acesso de crianças e adolescentes no mundo digital. E, aqui, ganha o centro fundamental do debate o conteúdo e o exercício da autoridade parental, o novo papel das instituições de ensino e as políticas públicas que devem ser rápida e eficientemente desenvolvidas. É o que procurei debater na minha tese, cuja versão em livro está no prelo4.
Quanto ao conteúdo e ao exercício da autoridade parental, o caso da garotinha Alice serve para ilustrar a gravidade, urgência e relevância de uma questão humana na sociedade da informação. Ao que tudo indica, no encantamento dos pais e familiares pela habilidade ímpar da linda garotinha, especialmente, em pronunciar palavras e expressões de maneira a superar o ordinário e esperado para a sua idade, começaram a divulgar os vídeos com sua performance. Quem já assistiu a qualquer vídeo da Alice, também se encantou e se fascinou. E com isso, mais e mais vídeos com as suas imagens foram sendo reiteradamente divulgados pela própria família.
Alice se tornou famosa e até muito querida por todos nós. Ganhou mais fama ainda com o comercial estrelado junto à atriz Fernanda Montenegro. Acredito que neste caso, os aspectos econômicos da imagem tenham sido remunerados.
Mas daquele contexto de maravilhamento, o que nós estudiosos já esperávamos, chegou. O desencantamento dos pais, a violação à própria dignidade humana da pequena Alice pela apropriação ilícita e criminosa de seus atributos da personalidade nas redes.
Esta ainda é muito pequena para compreender as diversas e graves violações aos seus direitos da personalidade. Mas, isso, obviamente, não afasta ou minimiza qualquer das violações à sua dignidade. Portanto, não retira qualquer responsabilidade civil e criminal dos autores dos ilícitos e crimes envolvendo os seus atributos da personalidade. Basta lembrar que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. (art. 2º do Código Civil de 2002).
Em resumo, para se ter a esfera existencial violada, não é necessário o discernimento ou a capacidade civil. Isso porque “o dano moral é a lesão a direitos da personalidade e a direitos de família puros, ainda que destes possam não advir dor, sofrimento e angústia”5. Esse entendimento permite uma proteção integral e plural da dignidade da pessoa humana.
Não nego que os pais da pequena Alice estejam sofrendo com o contexto de memes e violação dos direitos da personalidade da filha. Acredito firmemente nisso e me solidarizo com eles! Repudio o que vem se passando nas redes sociais à revelia da família! E neste ponto, é importante lembrar que o sistema jurídico também os pais, circunstancialmente, proteção. Os danos à prole podem reflexamente violar os direitos extrapatrimoniais dos pais. É o que a doutrina nomeia de dano extrapatrimonial por ricochete, que consubstancia os efeitos indiretos do dano à integridade de terceiros.
A reparação ou a imposição de medidas extrapatrimoniais nesses casos, constitui direito personalíssimo e autônomo dos terceiros – no presente caso, dos pais- em relação à vítima. Os abalos emocionais podem desequilibrar as relações familiares e provocar comoções psíquicos, emocionais e comprometimento da saúde física e mental. Já não são mais isolados casos extremos, em que perseguições, cyberbullying e outras violências digitais, demandam a mudança de endereço e alteração do nome da vítima e de seus familiares.
Cabe ainda uma importante advertência. A indenização não pode ser compreendida como uma panaceia para todos os males à dignidade humana. Os aspectos pecuniários são apenas uma compensação por uma violação a um direito extrapatrimonial. As medidas inibitórias, as medidas preventivas e o direito de resposta, são algumas das alternativas que podem atacar o dano de forma mais eficiente. Ilustrativamente, medidas que retirem as imagens não autorizada pelos pais da pequena Alice de sites ou aplicativos, podem contribuir. A proibição de veiculação de imagens da menina nas redes em determinados contextos pode ainda contribuir para minimizar os impactos e propagação das lesões. Neste ponto, a atuação do Ministério Público ganha relevo tanto para efetivar o Estatuto da Criança e do Adolescente, como para apurar e processar os crimes praticados.
De toda forma, no mundo digital, mesmo que as medidas inibitórias e não pecuniárias tenham relevantíssimo papel, dada a indelebilidade das informações nas redes e ao direito lesado (de ordem existencial), são impotentes como solução definitiva e cabal para os danos à dignidade humana.
Por isso, a educação digital e a prevenção são a grande pedra de toque da era da informação.
Retornando ao centro do debate que ora proponho, há de se pensar ainda sobre o futuro da pequena Alice. No mundo digital, as imagens são indeléveis, portanto, podem surgir a qualquer momento, por uma ação de uma pessoa situada em qualquer ponto do planeta. A velocidade de proliferação pode ser comparada à velocidade da luz. O público espectador tem um potencial infinito, pois pode contar com as presentes e futuras gerações de todo o planeta (uma verdadeira “solidariedade intergeracional”).
Bom, se a situação permanecer ou se ressurgir no futuro, quando Alice se enxergar e se compreender como integrante de uma sociedade, passar a entender e ter discernimento sobre as violações que recaíram e recaem sobre a sua dignidade, os danos se repetirão. Será uma revitimização.
Por isso, em outra oportunidade, ao discutir a responsabilização civil dos pais em tempos digitais, afirmei que a omissão de cuidado decorrente da negligência com a interação da criança e do adolescente no mundo digital também tem aptidão para acarretar danos que acompanharão a pessoa ao longo da vida. E, por isso, poderá haver a responsabilização civil dos pais em relação aos filhos6.
Assim, ainda é possível que no futuro haja esse debate em relação aos pais da pequena Alice, com fundamento no fato de terem proporcionado um contexto que desencadeou o desenfreado golpe à sua imagem e aos demais direitos que repousam sobre a sua dignidade humana.
Sei que minha afirmação parece cruel com os pais que já sofrem no atual contexto. Entretanto, no mundo digital temos que compreender com mais clareza que a imagem dos filhos não pertence aos pais. Caberá aos filhos, quando tiverem discernimento para tanto, decidir por se exporem ou não, em que medida e em que espaços digitais o farão. Até que isso aconteça, o papel dos pais é mediar o acesso ao mundo digital e proteger os direitos da personalidade dos filhos nas redes.
Quando um pai escancara os atributos da imagem do filho (rosto, voz e tudo que o identifique de maneira inequívoca) na Internet, intensifica a sua fragilidade e vulnerabilidade nesse meio. Desejando ou não, coloca o filho na marca do pênalti, sem saber quem chutará a bola, quem será o goleiro, se haverá goleiro, desconsiderando completamente que não existe juiz para anular o gol...
Infelizmente, Alice está muito mais suscetível de ser alvo no futuro de “cyberbullying”, “Stalking””, reiteradas violações da imagem, da intimidade, da privacidade... e por aí vai.
Repito: tenho convicção de estes sofrem e não imaginavam a proporção e as violações que poderiam se seguir. Casos como esse, demonstram como é tão urgente e imprescindível que o tema seja debatido, que políticas públicas voltadas à proteção e prevenção de danos a crianças e adolescentes na Internet, incluindo-se o esclarecimento dos pais, sejam providenciadas.
Novos tempos e velhas visões dos pais (muitos, mas nem todos). Novos desafios e uma velha educação. Novas demandas sociais e a comum ausência de políticas adequadas e eficientes voltadas à proteção de crianças e adolescentes no mundo digital.
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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura.
NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017.
SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. O compliance como medida preventiva ao cyberbullying: em busca da efetivação da proteção de crianças e adolescentes na sociedade da informação. 2021. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2021.
SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. Disponível aqui. Acesso em 12/12/2020.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MOUTINHO NERY, Maria Carla. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola (org.). Vulnerabilidade e sua compreensão no Direito brasileiro. Indaiatuba, SP: Foco, 2021. p. 139.
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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 124.
2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venâncio Majer. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019. v. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura, p. 124.
3 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MOUTINHO NERY, Maria Carla. Vulnerabilidade digital de crianças e adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola (org.). Vulnerabilidade e sua compreensão no Direito brasileiro. Indaiatuba, SP: Foco, 2021. p. 139.
4 SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. O compliance como medida preventiva ao cyberbullying: em busca da efetivação da proteção de crianças e adolescentes na sociedade da informação. 2021. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte, 2021.
5 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 51.
6 SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. Disponível aqui. Acesso em 12/12/2020.