Com a obrigatoriedade da vacinação anti-Covid na Itália1, algumas discussões legais se intensificaram. E não somente entre os “no-vax”2 – certamente já prontos para desafiar as regras e agir na via judicial – mas para toda a população que suscita uma série de questões que nos motivaram a elaborar esta breve reflexão sobre os aspectos constitucionais da vacinação obrigatória e o necessário equilíbrio entre responsabilidade e liberdade individual, na perspectiva do direito italiano.
É consenso, tanto no Direito italiano quanto no Direito brasileiro que, dado que o tratamento obrigatório de saúde só pode ser imposto na expectativa de que não afete negativamente o estado de saúde da pessoa que está sujeita a ele, é necessário um equilíbrio entre a minimização de riscos e a maximização dos benefícios por meio da identificação de um limiar de perigo aceitável a ser realizado com base em uma literatura científica médica completa e credenciada.
Nesse sentido é que a questão da vacinação obrigatória apresenta perfis de particular complexidade, pois afeta valores fundamentais e direitos constitucionais, incluindo o direito à saúde previsto no artigo 323 e o dever de solidariedade social contido no artigo 2º4, ambos da Constituição Italiana.
O referido artigo 32 prevê que a saúde não é apenas um direito do indivíduo, mas também um interesse comunitário. A importância coletiva da saúde pode, por vezes, justificar tratamentos de saúde obrigatórios, como a natureza obrigatória de algumas vacinas nos casos estritamente previstos em lei.
Importante lembrar que as discussões sobre a vacinação obrigatória não são uma novidade para a Corte Constitucional Italiana, que décadas atrás, já se debruçou sobre o tema no acórdão 307 de 22/06/19905, especificando que:
1 - A lei que impõe um tratamento de saúde não é incompatível com o artigo 32 da Constituição se o tratamento visa melhorar ou preservar não somente o estado de saúde dos que estão sujeitos a ela, mas também, a preservação do estado de saúde dos demais, pois é precisamente esse propósito adicional, relativo à saúde como interesse da comunidade, que justifica a compressão dessa autodeterminação do homem inerente ao direito de cada um à saúde como direito fundamental. 2 - Existe uma disposição de que não afetará negativamente o estado de saúde da pessoa sujeita a ela, exceto apenas para essas consequências, que, por sua natureza temporária e tamanho pequeno, parecem normais a qualquer intervenção em saúde e, portanto, toleráveis. 3 - Em caso de maior dano à saúde daquele que é sujeito ao tratamento compulsório, ainda está previsto o pagamento de uma "compensação justa" em favor da parte lesada.
Algum tempo depois, a mesma Corte, na sentença 218 de 06/02/19946, estabeleceu que:
A proteção da saúde também implica o dever do indivíduo de não prejudicar ou colocar em risco com seu comportamento a saúde dos terceiros, em cumprimento ao princípio geral que vê o direito de cada um encontrar um limite no reconhecimento mútuo e na proteção igualitária do direito coexistindo dos outros.
A obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 foi inicialmente imposta na Itália pelo decreto-lei 44 de 1º de abril de 20217 para todos os operadores do setor da saúde. Na sequência, o decreto-lei 01 de 7 de janeiro de 20228 instituiu a obrigatoriedade também para os cidadãos acima de 50 anos e sem limite de idade para o pessoal escolar, do ensino técnico e universitário. Segundo tais decretos, os cidadãos supramencionados que não forem vacinados estarão sujeitos, a partir de 1º de fevereiro de 2022, à sanção pecuniária que pode variar de 100 euros a 3.000 euros, de acordo com o procedimento previsto na legislação.9
Além da vacinação obrigatória, também estão em vigor novas regras sobre a certificação verde, introduzidas pelo decreto-lei 172 de 26 de novembro de 2021 e pelo decreto-lei 221 de 24 de dezembro de 2021. Trata-se de um novo tipo de certificação que só é concedida a quem está vacinado ou curado da infecção por SARS-CoV-2. É chamado de “Green Pass Rafforzato” para quem recebeu até a segunda dose da vacina e “Green Pass Booster” para quem tomou a terceira dose. Portanto, há uma distinção substancial entre os vacinados e curados da Covid-19 e os não vacinados, que acabam tendo o acesso proibido a determinados locais, atividades e serviços, o que deixa claro, portanto, o modus operandi do governo italiano para incentivar a vacinação.
Registre-se que até o momento em que este artigo é escrito, essas são as principais normas em vigência na Itália, referentes à obrigatoriedade da vacinação e da certificação verde Covid-19.
Uma vez situados nesse panorama dos aspectos constitucionais, dos precedentes da Corte Italiana e o quadro atual da legislação que se refere à obrigatoriedade da vacinação (e das medidas de incentivo), passemos à contextualização da reflexão aqui proposta.
Os princípios constitucionais subordinam a legitimidade da obrigação de vacinação à indispensabilidade de um equilíbrio correto entre a proteção da saúde do indivíduo e a proteção simultânea da saúde coletiva, ambas constitucionalmente garantidas.
O Estado pode impor sacrifícios ao gozo do direito de autodeterminação do indivíduo em relação às escolhas que afetam sua própria saúde, a fim de atender aos interesses supraindividuais que – sem tal compressão dos direitos individuais – estariam ameaçados. Portanto, a questão da legitimidade da obrigação de vacinação perpassa a relação entre a liberdade individual e o princípio da solidariedade: o direito de autodeterminação do indivíduo deve ser recessivo no que diz respeito ao interesse público na proteção da saúde no contexto da atual pandemia.
Para tratar da delicada questão das vacinas e os múltiplos aspectos do tema, procuramos examinar, mais particularmente, a relação entre a liberdade do indivíduo e a saúde coletiva: se por um lado, o tema destaca o direito à autodeterminação em relação à própria saúde, por outro, não devemos esquecer que a lei pode obrigar a população a se inocular com drogas para alcançar a imunidade do rebanho em relação a doenças particularmente contagiosas e virais.
Embora o debate continue acalorado em relação à vacinação obrigatória – não somente na Itália, mas em todo o mundo – a história nos mostra que graças a muitas vacinas o ser humano conseguiu sobreviver a inúmeras adversidades e hoje, em meio a uma emergência de saúde como é a pandemia de Covid-19, a questão torna-se altamente relevante se considerados os efeitos que se espera da vacina, não somente para a saúde do indivíduo, mas para a saúde mundial.
É evidente que os direitos envolvidos são muitos e o equilíbrio entre eles cabe à discrição do legislativo, nos limites constitucionais, tutelados pelas cortes supremas, que deve modular as intervenções necessárias para garantir a saúde coletiva, impondo tratamentos de saúde obrigatórios, somente quando não houver outra medida que se mostre capaz.
No entanto, ainda que tais tratamentos obrigatórios envolvam o risco de consequências negativas para a saúde daqueles que lhes foram submetidos, o dever de solidariedade previsto no art. 2º da Constituição Italiana exige que a sociedade, e para ela, o Estado, prepare a seu favor os meios de uma proteção específica constituída por uma indenização justa, da qual deriva o direito à indenização por dano10.
Em outras palavras, a premissa do Direito italiano é no sentido de que a proteção da saúde pública permite ao Estado oprimir o direito do indivíduo à autodeterminação, mas, caso tenha sofrido danos devido à medida de saúde adotada, há de ser aplicada uma medida de reparação11.
Em linhas finais deste breve aparato, embora tenhamos consciência de que ainda estamos no meio de uma guerra contra um inimigo invisível que expôs o severo limite da natureza humana, é graças às vacinas anti-Covid-19 que estamos conseguindo conter o número de óbitos e internações hospitalares decorrentes da contaminação, e é exatamente por isso que temos que assumir nossa responsabilidade juntamente com o Estado e arcar com os sacrifícios necessários em prol da saúde coletiva.
O momento que vivemos não permite espaço para conjugações na primeira pessoa do singular: mais do que nunca, somos o outro, somos o todo, e é nesse todo que nos fortaleceremos para superar essa trágica fase na história da humanidade.
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1 Os decretos editados pelo governo italiano serão mencionados ao longo do texto.
2 Per la prima volta la quota dei “no vax” (tra la popolazione con più di 12 anni) scende sotto quota 6 milioni (...) Il risultato è poco sotto i sei milioni: 5.997.000. Tradução livre: Pela primeira vez a proporção de "no vax" (entre a população com mais de 12 anos) cai abaixo de 6 milhões (...) O resultado é pouco menos de seis milhões: 5.997.000. Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
3 Articolo 32 - La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto dell'individuo e interesse della collettività, e garantisce cure gratuite agli indigenti. Nessuno può essere obbligato a un determinato trattamento sanitario se non per disposizione di legge. La legge non può in nessun caso violare i limiti imposti dal rispetto della persona umana. Tradução livre: Art. 32 - A República protege a saúde como direito fundamental do indivíduo e de interesse da coletividade, e garante assistência médica gratuita ao indigente. Ninguém pode ser obrigado a um tratamento de saúde específico senão por lei. A lei não pode, em hipótese alguma, violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana.
4 Articolo 2 - La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell'uomo, sia come singolo, sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l'adempimento dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale. Tradução livre: Art. 2º - A República reconhece e garante os direitos invioláveis ??do homem, tanto como indivíduo como nas formações sociais onde se desenvolve sua personalidade, e exige o cumprimento dos deveres obrigatórios de solidariedade política, econômica e social.
5 Trata-se de ação em que a parte pleiteia uma indenização pelos danos causados ??pela poliomielite contraída através do contato com o filho que tinha sido obrigatoriamente vacinado contra a poliomielite, queixando-se de que as respectivas autoridades de saúde não a tinham colocado ciente dos perigos nem instruída sobre os cuidados especiais a serem observados no contato com as fezes e muco da criança vacinada). Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
6 A parte ajuizou a demanda a fim de obter uma medida emergencial, com base no art. 700 do Código de Processo Civil Italiano, para retomada do trabalho após ter sido suspensa do mesmo por se recusar a fazer exames de saúde visando averiguar a existência ou não de infecção pelo vírus do HIV. Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
7 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
8 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
9 Disponível aqui. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
10 A Lei nº. 210/1992 reconhece a indenização do Estado àqueles que resultarem deficiência psicofísica permanente em decorrência de vacinação compulsória. Também a Lei n. 299/2005 introduz uma indenização adicional para amparar a pessoa lesada pelas complicações das vacinações obrigatórias, atribuída metade ao lesado e a outra metade aos familiares que prestem ou tenham prestado assistência de forma prevalente e contínua. Disponível em: https://web.camera.it/leggi. Acesso em 28 de janeiro de 2022.
11 M. A. RIVETTI, Patologie da vaccinazioni, tutela giurisdizionale e disciplina delle rinunzie, in Il diritto del mercato del lavoro, 1, 2016, pp. 202-207; C. VIDETTA, Corte Costituzionale e indennizzo per lesioni alla salute conseguenti a trattamenti vaccinali. Nuove prospettive, in Responsabilità civile e previdenza, 3, 2013, pp. 1030-1044; A. FEDERICI, L'indennizzo delle conseguenze irreversibili da vaccinazioni non obbligatorie, in Rivista giuridica del lavoro e della previdenza sociale, 3, 2012, pp. 605-612; L. RATTI, La rivalutazione dell'indennizzo per i danni causati da vaccinazioni ed emotrasfusioni, in Rivista italiana di diritto del lavoro, 4, 2012, pp. 840-843; F. SCIA, Danni da vaccinazioni non obbligatorie, in Giur. Mer., 11, 2008, pp. 2823-2827; A. ALGOSTINO, Salute dell'individuo e salute della collettività: il diritto all'indennizzo anche nel caso di vaccinazioni antipoliomelitiche non obbligatorie, in Giur. It., 7, 1998, pp. 1479-1481.