I. Introdução
A responsabilidade civil do profissional médico está centrada em causas tão complexas que a tornam diferenciada em relação ao regime geral previsto no Código Civil. A medicina é ciência inexata. O ato médico, de fato, está sempre sujeito a infortúnios decorrentes da própria natureza humana e a atuação do profissional médico não basta para o sucesso do tratamento dispensado. Nessa senda, o médico é o agente protagonista do sistema de saúde. É o profissional tecnicamente capacitado e legalmente habilitado para o resguardo da saúde do ser humano, mediante o exercício de atos privativos ou não da medicina.
As propostas do presente trabalho resumem-se a apontar alguns fatores da atividade médica que qualificam o regime da responsabilidade civil do profissional como especial, analisar o regime da relação jurídica estabelecida e definir um sistema de distribuição do ônus da prova nas demandas ajuizadas.
II. Regime especial da responsabilidade civil médica
A medicina está sujeita a múltiplos fatores, endógenos e exógenos, que podem impedir o fim a que se destina. Em decorrência de seu notável componente aleatório, raramente pode ser garantido ao paciente um determinado resultado pela prática médica despendida. Toda a atividade desenvolvida pelo médico, das mais simples à mais complexas, por mais precisa e exata que seja, está a depender das reações do paciente. É impossível, na prática, a garantia de resultados precisos e determinados.
Aliada a esta peculiar característica da ciência médica e que também tem influência no regime jurídico da responsabilidade civil do profissional médico, qualificando-o como especial, urge constatar que a conduta geradora do dano, necessariamente, deve decorrer da deficiente atuação técnica do profissional, segundo as regras comuns da ciência médica, no seu atual estado de evolução. Trata-se da infração da denominada leges artis: regra de medição de conduta do médico, tendo como parâmetro de valoração a correção ou não do procedimento adotado em conformidade comparativa com a atuação médica adequada e exigida de um mesmo profissional em casos semelhantes.
A relação médico e paciente é de confiança. O paciente deposita no médico a esperança de aliviar ou fazer cessar seu sofrimento, refletindo toda a expectativa no seu atuar, mesmo que nada ou pouco saiba sobre seu passado e sua formação. O médico tem como objetivo central diagnosticar o mal e dispensar o tratamento adequado para o bem estar do paciente. Logo, ainda que não exista declaração de vontade como manifestação expressa de consentimento, a relação estabelecida entre o médico e o paciente é preponderantemente contratual.
A prestação principal do médico é a de realizar o tratamento adequado para a enfermidade do paciente e também cumprir com os demais deveres colaterais decorrentes de sua atividade profissional, entre os quais, aqueles previstos nas regras éticas dos órgãos de classe. Ao paciente, é incumbida a prestação principal de honrar os honorários e de cooperar nas informações adequadas e no cumprimento das determinações prescritas pelo profissional.
Por tudo, o campo da responsabilidade civil do médico exige a ponderação de fatores peculiares e próprios que o qualificam como especial, tornando a imputação mais complexa em comparação ao regime comum e geral da responsabilidade civil.
Isso reflete nos pressupostos do regime especial da responsabilidade civil do médico.
III. Responsabilidade civil do médico
No campo médico, a responsabilidade civil é aquela em que se imputa ao profissional médico a obrigação de reparar o dano (patrimonial ou extrapatrimonial) causado ilícita e culposamente em desfavor do paciente, por má atuação técnica (erro, falha de tratamento etc) ou desrespeito aos preceitos éticos vigentes no campo da medicina, tendo sempre em consideração o atual estágio de conhecimento das regras específicas da profissão.
E assim sendo, diante da necessidade de analisar efetivamente a conduta do profissional médico a responsabilidade civil médica é eminentemente subjetiva (art. 951 do CC) pois imprescindível o juízo de valor sobre o comportamento exigido do profissional médico no caso concreto, para aferição do elemento culpa.
Para a caracterização do dever de indenizar não basta a presença do ato médico. É imprescindível que esse ato seja ilícito. A ilicitude, objetivamente considerada, surge consubstanciada na prática de atos pelo profissional médico que se afastam das normas ou regras técnicas reconhecidas, regulamentadas e fiscalizadas pelos órgãos de classe, levando-se em consideração que a atividade médica está sempre condicionada pela informação científica disponível no momento da sua ocorrência, pelas recomendações dos órgãos disciplinares e pelo princípio ético geral da prudência.
A medida para a apuração da linha tênue entre a atuação lícita e ilícita do profissional da medicina está necessariamente na avaliação abstrata da conduta do médico em razão do conjunto geral de regras da ciência médica, levando-se em consideração todas as características e circunstâncias especiais do caso concreto analisado.
Na proporção em que a conduta concreta do profissional esteja em conformidade com as regras gerais da ciência médica, nos moldes apresentados mediante um juízo abstrato de valor, afasta-se o reconhecimento de qualquer ilegalidade do ato praticado. Do contrário, distanciando-se a conduta do médico daquilo que seria exigido pelas regras da ciência nas mesmas situações de tempo, modo e condição, configurada estará a ilegalidade do ato realizado. Também comete ato de ilegalidade com a violação de qualquer norma legal, regulamentar ou estatutária que regule a relação profissional mantida com o paciente (infrações a deveres acessórios).
A culpa, em termos genéricos, é o juízo de censura do ordenamento jurídico que recai sobre a conduta ilícita do agente. Com a presença da culpa, o ato ilícito praticado, produtor de um resultado danoso, é imputado ao agente. Em termos específicos, a culpa é a violação ou inobservância do dever objetivo de cuidado exigido pela natureza do ato médico praticado, apto a produzir um resultado danoso não querido e nem previsto, entretanto, previsível, sendo que poderia, com sua atenção, ter sido evitado.
O comportamento praticado pelo médico será considerado culposo quando este agir, no caso concreto, com dolo ou culpa (em sentido estrito). Para a aferição do ato culposo o ordenamento jurídico exige a realização, em abstrato, de uma avaliação do comportamento realizado, tendo como critério comparativo de padrão o comportamento do bom profissional da medicina, nas mesmas circunstâncias pessoais e nas mesmas condições de tempo e de lugar do caso concreto avaliado.
Não é tarefa fácil definir e provar o comportamento culposo do profissional médico em relação às regras da profissão, sendo quase obrigatório que a instrução processual, para a formação da convicção do magistrado, valha-se do auxílio de uma perícia.
O último pressuposto necessário para a configuração da responsabilidade civil é o nexo de causalidade (art. 403 do CC) que deve existir entre o prévio comportamento ilícito e culposo e o consequente resultado danoso. Entre as várias condições que contribuíram de qualquer forma para a produção do resultado dano, é importante destacar aquela que deve ser considerada como causa, pois imprescindível para tal desiderato.
Parte da doutrina adota a teoria da causalidade adequada1. Só existirá responsabilidade se o fato, por sua própria natureza, for próprio ou apto a produzir aquele determinado dano, tendo como crivo o curso natural das coisas, de forma genérica e mediante uma equação de probabilidade, examinada em abstrato (tal fato teria acarretado tal consequência em quaisquer condições de normalidade). De outro lado, pela teoria do dano direto e imediato, na subteoria da necessariedade da causa2 é considerada causa para a produção do resultado o antecedente fático que, no plano concreto e diante das circunstâncias apresentadas, mantém relação direta e imediata com o dano produzido, num vínculo de necessariedade, por não existir outra condição que explique melhor o dano.
Por ser a responsabilidade por culpa médica um regime especial de reparação dos danos, pela complexidade do direito material litigioso, existe também, como consequência inevitável, um reflexo desta dificuldade no campo processual, designadamente durante a fase da instrução probatória e especialmente na distribuição do ônus da prova.
IV. A questão do ônus da prova na responsabilidade civil do médico.
As regras sobre o ônus da prova estão dirigidas tanto para as partes (ônus da prova subjetivo) quanto para o juiz (ônus da prova objetivo).
Enquanto regra de conduta para as partes, o ônus probatório impõe a faculdade de que as partes dispõem de provar os pressupostos fáticos que invocam como fundamento de suas respectivas pretensões e defesas. É dizer, de outra forma, quem deve fazer a prova do fato controvertido alegado em juízo para não sofrer o risco de um resultado desfavorável em caso de não formação da convicção do julgador como consequência da prova frustrada ou não realizada. É o aspecto subjetivo do ônus da prova. Direito processual ligado à atividade probatória das partes.
O ônus probatório como regra de julgamento para o juiz revela-se como solução para o deslinde da lide nas hipótese exclusiva em que o julgador, transcorrida toda a instrução probatória realizada, não se convencer sobre a veracidade dos fatos alegados pelas partes, ante a ausência de produção de provas sobre determinado fato relevante e controvertido ou por sua obscuridade ou insuficiência, impondo-se ao juiz o dever de solucionar a lide segundo uma regra de julgamento pré-determinada (será sucumbente quem tinha o ônus subjetivo e não cumpriu adequadamente o encargo).
A regra da distribuição do ônus da prova é, em geral, estática (art. 373, caput do CPC). Impõe-se às partes obediência ao comando legal, sob pena de sofrer as consequências desfavoráveis que surgem pela falta ou insuficiência de prova para o julgamento da demanda, em especial, o não acolhimento pelo juízo da pretensão deduzida. Ocorre que, por força de disposição legal, essa regra geral da distribuição do ônus probatório pode ser modificada. É a chamada e conhecida inversão do ônus da prova (flexibilização do ônus subjetivo), que ocorre quando não recai sobre a parte tradicionalmente onerada com a prova do fato o ônus de demonstrar a verdade, mas, sim, sobre a contraparte, que então terá a incumbência de provar o fato contrário.
A inversão do ônus da prova, enquanto regra de conduta para as partes (ônus subjetivo), necessariamente impõe uma presunção legal. Invertido o ônus da prova, presume-se provado o fato que sustenta o pressuposto fático favorável à parte beneficiada pela inversão. Logo, a parte que, em tese (pela regra geral), tinha o ônus da prova, fica desonerada, dispensada deste encargo. De outro lado, a parte que, pela regra geral, não tinha qualquer ônus probatório em relação a esse pressuposto, agora tem o encargo exclusivo de provar o fato contrário.
A legitimidade para inversão do ônus da prova demanda base legal. Não é uma medida aleatória do juízo. O Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, VIII) dispõe, como medida de proteção, a tutela geral da inversão como direito básico do consumidor, presentes os requisitos legais da verossilhança da alegação ou hipossuficiência técnico-econômica. Da mesma forma é a dicção do Código de Processo Civil (art. 373, § 1º) que diante das peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade do autor em cumprir o encargo probatório e, contrariamente, a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário pelo réu, impõe que o juiz poderá inverter (flexibilizar) o ônus subjetivo da prova.Em ambos os casos, trata-se de regra de procedimento para as partes e deve ser definida antes da instrução processual.
Nesse quadro, o paciente lesado, autor da ação indenizatória, com a inversão do ônus fica excluído do encargo de provar a culpa do médico no caso concreto, ou seja, presume-se que o médico agiu com culpa para a produção do dano objeto de indenização, nada contribuindo, nesse sentido, para a formação da convicção do julgador. De outro lado, o encargo probatório da contraprova é exclusivo do profissional médico. Cabe a ele demonstrar, durante a instrução, que não agiu com culpa para a produção do resultado danoso ou que o evento lesivo teve como causa um fator estranho à sua conduta profissional.
Havendo, ou não, a inversão do ônus da prova no caso concreto, nos termos acima expostos, uma das partes (a desincumbida do encargo) assumirá provavelmente uma atividade passiva e inerte em termos probatórios, já que o encargo de provar os requisitos legais necessários para o dever de indenizar será de incumbência exclusiva do autor paciente (quando não inverte) ou do réu médico (quando inverte).
Propõe-se, no entanto, que nas demandas de responsabilidade civil médica haja, necessariamente, um esforço probatório recíproco entre as partes litigantes para o esclarecimento da verdade real e formação da convicção do julgador, fundamentado no princípio da solidariedade e cooperação processual. Para tanto, a inspiração é a teoria da carga probatória dinâmica de Jorge Walter Peyrano4.
Por essa teoria, a flexibilização ou dinamização do ônus da prova ocorre como regra de julgamento, indicativa de como deve decidir o julgador quando não encontre os substratos probatórios sobre os quais deve basear sua decisão, permitindo o julgamento do mérito e evitando o non liquet. Nas situações excepcionais em que o magistrado atua sem a formação efetiva da convicção constitui-se em uma pauta de valoração do julgador, atribuindo, em desfavor da parte que tinha as melhores condições fáticas, profissionais, técnicos e econômicas, o encargo de suportar a eventual falta ou insuficiência probatória, desacolhendo sua pretensão.
Apoiado sobre todo o conjunto probatório realizado pelas partes durante o curso da instrução processual, e apenas se permanecer presente o estado de dúvida sobre a veracidade dos fatos controvertidos apresentados, o magistrado prolata sua decisão em desfavor da parte que estava em melhores condições para a realização da prova e, mesmo assim, não foi capaz de demonstrar satisfatoriamente a veracidade dos fatos afirmados em juízo.
Portanto, a solução apresentada independe da posição processual das partes e da natureza dos fatos alegados. Também não guarda nenhuma relação com a inversão ou alteração do ônus subjetivo da prova, impondo a colaboração efetiva do autor e do réu na instrução processual e na busca da verdade material possível. E esse ponto é fulcral para sua compreensão. A adoção da teoria não significa que a parte autora da demanda indenizatória esteja isenta do encargo de produzir prova sobre a culpa do médico ou nexo de causalidade, ou seja, não lhe confere a vantagem de alegar os fatos que consubstanciam sua pretensão e esperar comodamente que a parte devedora (o profissional médico ou hospital) comprove o fato contrário, por força de eventual inversão do ônus subjetivo.
A teoria da carga probatória dinâmica impõe a efetiva contribuição das partes para a busca da verdade real, exigindo um comportamento probatório ativo de ambas, sob pena de sofrer os efeitos da falta ou insuficiência da prova, com a sucumbência da pretensão.
Para sua operacionalização prática é imprescindível que o órgão julgador, necessariamente antes do início da fase probatória, advirta as partes sobre a possibilidade de aplicação da teoria da dinamização da carga probatória. no caso concreto, para evitar qualquer surpresa na sentença. Implicitamente, ainda, tem o condão de convocar as partes para adotarem uma conduta processual cooperativa, leal, baseada na boa-fé processual e na busca da verdade real processualmente atingível para o caso concreto, tornando a esfera ambiental do processo a mais propícia possível para um julgamento justo ou equânime.
A manifestação judicial de advertência da possibilidade de aplicação da teoria não tem o poder de antever, de forma definitiva, qual das partes está em melhores condições de realizar a prova. É fato que essa conclusão somente será possível após a instrução processual e somente será necessária diante do não convencimento do magistrado sobre a verdade dos fatos controvertidos. Por isso, durante a advertência, nenhum juízo de valor pelo órgão julgador deve ser realizado sobre a capacidade probatória das partes. É realizada de forma simples e genérica.
De outro lado, após a realização de toda a instrução processual e colhida toda a prova produzida em juízo pelas partes litigantes, persistindo a dúvida sobre a veracidade dos fatos relevantes controvertidos e não formada a convicção do julgador para a prolação da sentença, a efetiva aplicabilidade da teoria da carga probatória dinâmica tem a natureza jurídica de regra de julgamento.
E assim sendo, é na sentença que o julgador deverá efetivar sua aplicabilidade no caso concreto, valendo-se de seus termos para adjudicar os efeitos negativos da falta ou deficiência da prova em desfavor da parte que estava em melhores condições para a sua realização, não acolhendo sua pretensão deduzida em juízo. O juízo sobre qual das partes dispunha das melhores condições é justificado na fundamentação da sentença e amparado nas regras das máximas de experiência do caso concreto (art. 375 do CPC).
Logo, a teoria da carga probatória dinâmica, nos termos adotado, é uma regra de valoração dos efeitos da falta ou deficiência da prova que tem o condão de forçar, durante o curso da instrução processual, comportamento probatório ativo, solidário e cooperativo entre as partes, de modo que se potencializa a oportunidade de formação do convencimento do juízo sobre as matérias fáticas controvertidos, já que a instrução é centrada em duas bases probatórias distintas. A realizada pelo autor paciente (quanto ao fato constitutivo) e a realizada pelo réu profissional médico (quanto ao fato desconstitutivo).
Formada a convicção, a teoria não será operacionalizada justamente porque as provas produzidas foram suficientes. Não formada, aplica-se como regra de julgamento, sucumbindo aquela parte que tinha as melhores condições e não realizou a instrução adequadamente.
A efetiva formação ou não do convencimento do magistrado sobre os pressupostos fáticos controvertidos vai depender da qualidade das provas produzidas e do nível de suficiência probatória (standard) exigidos para o caso concreto. Isso, no entanto, é matéria para análise em outra oportunidade.
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1. No sentido da adoção da teoria da causalidade adequada no sistema brasileiro: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora Atlas, 2010, pp. 50-53; NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 600.
2. No sentido da adoção da teoria do dano direto e imediato, subteoria da causalidade necessária: RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil - Responsabilidade médica. Capítulo XXVII. 1ª ed. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, pp. 75-78; e CRUZ, Gisela Sampaio da Cruz. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005, p. 110.
3. A doutrina da carga probatória dinâmica foi lançada pelo autor através do artigo: Lineamentos de las cargas probatorias “dinâmicas”, que foi republicado na obra coletiva Cargas probatorias dinâmicas, Diretor JORGE WATER PEYRANO e Coordenadora INÉS LÉPORI WHITE, 1ª edição, Santa Fé, Editora Rubinzal-Culzoni, 2008, pp. 13-18.