Migalhas de Responsabilidade Civil

Seguros ambientais como instrumentos econômicos de proteção ambiental

Acentua-se o movimento constante de busca por solidarizar danos e perdas, tanto no sistema geral de responsabilidade civil, quanto em questões propriamente ambientais.

11/11/2021

Embora exista vasta gama de normas protetivas ao meio ambiente no sistema legal e constitucional brasileiro, ainda carecemos de uma sistematização coerente, o que compromete o desenvolvimento de políticas públicas ambientais concretas. Soluções tópicas e descoordenadas são, ainda, a realidade. A racionalidade jurídica, em matéria ambiental, deve ser construída essencialmente pela via mais democrática, que é a legislativa, e de forma participativa, para o desenvolvimento de políticas públicas coerentes, guiadas por uma racionalidade clara e predefinida.

A inserção dos seguros nesse cenário não é diferente. Embora tenha ocorrido a instituição do recurso aos seguros como mecanismo de proteção ambiental, a realidade é que tal se dá, até o momento, de forma imprecisa, sem prévio planejamento, definição de escopos, compreensão ou coordenação.

Neste texto são propostas algumas bases de reflexão para um caminho de sistematização e confluência de interesses.

Instrumentos econômicos de proteção ambiental decorrem de políticas públicas ambientais e objetivam a indução de comportamentos em favor das diretrizes e dos objetivos dessa política. Os mecanismos de indução de comportamento são promovidos por medidas governamentais de estímulo negativo ou positivo: pela indução a um não fazer, ou a uma mudança de comportamento, por um lado e, por outro, por um sistema de recompensas, como premiação ou remuneração para comportamentos tidos como em conformidade com as diretrizes da política governamental (incluindo a conformidade máxima e progressiva como princípio da prevenção).

O posicionamento do seguro ambiental como instrumento econômico pode ser realizado por dois critérios: o critério “incentivo” e o critério “mecanismo de mercado”. Por instrumentos de “incentivo”, entendem-se os vinculados à indução de comportamentos e a um sistema de recompensas. Já pelo critério “mecanismos de mercado”, pelo só fato de atividade seguradora, no Brasil, ser essencialmente desenvolvida pela iniciativa privada. Assim, os seguros ambientais – sejam obrigatórios ou facultativos – têm potencial de induzir a uma mudança de comportamento de quem opere atividades causadoras de impacto e riscos ao meio ambiente.

O acesso à melhor tecnologia disponível de proteção ambiental e gestão de riscos ambientais (instrumentos do princípio de prevenção) é fator fundamental para a precificação dos seguros e para a própria aceitação de um risco pelo segurador (POISON, p. 52).

Como podemos qualificar uma cláusula que determina o custo do seguro, o prêmio e suas revisões ou parâmetros de revisão com base em determinadas variáveis? O prêmio, como sabemos, é essencial nessa equação risco vs. prêmio e, como tal, é o reflexo do custo e valor da assunção de risco, mas isso não é estático nem imutável ao longo da vida do seguro, de modo que o prêmio altera-se, assim como a própria relação de seguro pode ser modificada, ou até mesmo extinta ou resolvida (VEIGA COPO, p. 310-311).

A necessidade de contratar um seguro impõe ao responsável pela atividade econômica uma mudança comportamental e operacional. Ainda que possa parecer que este incentivo não decorra dos seguros, na realidade o é, visto como a mudança comportamental e operacional deve ocorrer desde o iter contratual. Noções como agravamento de risco e não cobertura para atos dolosos motivam essa assertiva. Ademais, ajustes e melhorias comportamentais e operacionais influenciarão na renovação dos seguros, inclusive no preço (prêmio) de renovação.

Ademais, seguradores exigem que potenciais segurados assumam ações de redução de risco antes de estarem dispostos a fornecer coberturas.

É necessário levar em consideração que assegurar uma atividade econômica também permite, ou mesmo pressupõe, possibilitar o próprio exercício dessa atividade. Isso acontece ao reduzir os riscos do empreendedor e, por conseguinte, outorgar uma maior segurança jurídica e financeira àquele que empreende em determinada atividade de risco (BELENGUER, p. 272), especialmente se considerados empreendimentos de menor porte e capacidade financeira (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 12-13).

Deste modo, os seguros ambientais aparecem como instrumentos econômicos alternativos aos tradicionais mecanismos vinculados ao sistema de comando e controle (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 13).

Parece-nos que os seguros podem ter alguma utilidade para a proteção ambiental, sob a perspectiva de prevenção e precaução de danos, por imporem deveres de cuidado ao segurado, bem como pela utilidade para contenção de sinistro. Seguros não são um incentivo ao descuido, pois como adverte Machado, “a instituição de um ‘seguro-poluição não pode deixar de lado a concomitante preocupação com medidas de prevenção da poluição” (MACHADO, p. 345). 

A acessibilidade a um sistema de seguros e às suas vantagens dependem de mudanças de comportamento e padrões. O grau de vulnerabilidade e de resiliência são critérios importantes para a projeção de riscos pelos seguros, com afetação na aceitação de um risco, pelo segurador, e na precificação. Desse modo, a lógica operacional dos seguros induz à construção de soluções com menor vulnerabilidade e maior capacidade de resiliência, na medida em que reduz a magnitude e as consequências dos riscos.

Em outro sentido, seguros ligam-se aos princípios da prevenção e da precaução na medida em que constituam garantias de indenizações e sirvam à prevenção de riscos, pois a companhia de seguros pode se tornar um verdadeiro auditor em questões ambientais e a compra de seguros é uma ferramenta útil para a gestão ambiental. Isto é assim, quando apenas as instalações que optaram pela prevenção são seguradas. Não apenas dentro dos limites exigidos pelos regulamentos atuais, mas também no pressuposto das medidas máximas possíveis a serem instaladas e aplicadas na atividade em questão (POISON, p. 52-53).

A decisão de contratar seguros ambientais decorre da análise de custo-benefício (YIN; PFAFF; KUNREUTHER, p. 15). Optar por incluir seguros nos custos de produção não é algo que necessariamente impacte financeiramente uma operação empresarial, pois os custos associados aos prêmios de seguros serão externalizados com a transferência à coletividade (BERGKAMP, p. 275). Ademais, sob uma perspectiva macro, de uma política comum e geral pela contratação de seguros ambientais, sequer haverá impacto concorrencial em relação aos preços, pois será um custo assimilado por todo um setor, e que, ao mesmo tempo, tende a trazer vantagens para toda a cadeia produtiva e de consumo – empresarial, consumidor e socioambiental. Conforme afirma Machado, "todo um coeficiente de uma estratégia politicamente oportuna como instrumento de aquisição de consenso e eficácia administrativa, considerando-se que uma rápida e larga indenização da generalidade dos prejuízos enfraquece a solicitação coletiva de inovação e controle sobre as instalações mesmas, com objetivo de reduzir-se a potencialidade de dano da empresa" (MACHADO, p. 346).

Outra questão atrelada à decisão de contratar seguros ambientais, embora seja essa aplicável aos seguros de responsabilidade civil em geral, é a do risco de responsabilização, isto é, o maior ou menor risco de ser demandado pelas vítimas. O incremento da consciência e a efetiva busca por direitos e por reparação de danos influenciará na compreensão, pelos geradores de risco, da necessidade de contratação de seguros de responsabilidade civil, pois "haverá, consequentemente, maior procura pelos seguros, justamente visando a garantia patrimonial frente às possíveis reclamações de indenizações" (POLIDO, p. 60).

Acrescentamos a essa tomada de consciência de busca de direitos a necessidade de uma guinada de comportamento do próprio Judiciário, a ser, quando provocado, mais contundente nas medidas e condenações que aplicar. A propósito do tema, afirma Machado que “a existência de um organismo que vá garantir o pagamento da reparação do dano poderá influir beneficamente no espírito dos juízes, livrando-os da preocupação sobre a possibilidade de o poluidor fazer frente às despesas imediatas de indenização” (MACHADO, p. 345).

Essa afirmativa e essa conclusão, no entanto, não são absolutas: a existência de mecanismos de garantia são reconfortantes, afinal, seguros prestam garantia e segurança, contudo, via de regra, essa garantia é prestada ao segurado e à manutenção do seu próprio patrimônio. Os seguros são sempre secundários em relação à responsabilidade e ao dever de reparar/indenizar. Alguém será responsável, pois outrem pode ter contra ele uma pretensão decorrente de um direito violado, e o estabelecimento de responsabilidades se dá neste cenário. A responsabilidade não se impõe pelo fato de alguém ter ou não o seguro (BERGKAMP, p. 276). Reitere-se que a relação securitária se dá apenas entre segurador e segurado.

Não se pode dissociar o interesse por seguros ambientais do forte movimento de conscientização que vem ocorrendo no mundo empresarial sobre as questões ambientais. É possível associar esse movimento à atenção cada vez maior ao princípio da sustentabilidade, atualmente no centro das reflexões empresarias, incentivadas pelos valores ESG.

Na medida em que seja definida uma posição para os seguros como instrumento econômico, e que se entenda a necessidade de estruturação de uma política orquestrada de garantias de reparação de danos, é apropriado tratar da potencialidade de alinhamento a uma preocupação e uma tendência de maior solidariedade em matéria de reparação de danos.

Facchini Neto, discorrendo sobre as tendências desse âmbito, aponta um movimento de superação das vias estritas e individualistas da responsabilidade civil [relação vítima(s) – autor(es) do dano], para um modelo socializante dos custos de reparação (socialização da responsabilidade e dos riscos individuais). A superação da responsabilidade objetiva, ainda centrada em parâmetros individuais, ruma a um modelo que transcenda o indivíduo e socialize as perdas. Segundo afirma o referido jurista, “não se trata, portanto, de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo” (FACCHINI NETO, p. 182).

A propósito sustenta Schreiber que "a ideia de solidariedade vem, assim, se imiscuindo nas bases teóricas da responsabilidade civil e na própria filosofia que a sustenta. Há, cada vez mais, solidariedade na culpa (todos somos culpados pelos danos) e solidariedade na causa (todos causamos danos), e o passo necessariamente seguinte é o de que haja solidariedade na reparação (todos devemos reparar os danos)" (SCHREIBER, p. 225).

Acentua-se, portanto, o movimento constante de busca por solidarizar danos e perdas, tanto no sistema geral de responsabilidade civil, quanto em questões propriamente ambientais, entendimento este que encontra eco na lição de Machado, quando afirma que “na progressão de toda a economia industrial pela forma de concentração monopolística de capital, o papel decisivo compete, de fato, a fatores que privilegiam a teoria da responsabilidade objetiva associada a esquemas de seguros” (MACHADO, p. 346).

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BELENGUER, David Aviñó. Prevención y reparación de los daños civiles por contaminación industrial. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015.

BERGKAMP, Lucas. Environmental risk spreading and insurance. Review of European Community and International Environmental Law (RECIEL). Oxford: Blackwell, v. 12, n. 3, 2003.

FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004.

POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015.

POISON, Margarida Trejo. El contrato de seguro medioambiental: estudio de la responsabilidad medioambiental y su asegurabilidad. Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2015.

SARAIVA NETO, Pery; DINNEBIER, Flávia França. Sustentabilidade como princípio constitucional: sua estrutura e as implicações na Ordem Econômica. Revista de Direito Ambiental – RDA. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 85, 2017, p. 63-86.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2015.

VEIGA COPO, Abel B. El riesgo en el contrato de seguro: ensayo dogmático sobre el riesgo. Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2015.

YIN, Haitao; PFAFF, Alex; KUNREUTHER, Howard. Can environmental insurance succeed wher other strategies fail? The case of underground storage tanks. Risk Analysis: Society for Risk Analysis, v. 31, n. 1, 2011.

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*Pery Saraiva Neto é doutor em Direito (PUCRS), com estágio doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito (UFSC). Especialista em Direito Ambiental pela FUNJAB/UFSC. Advogado, consultor e parecerista, com experiência em Direito Ambiental e Direito dos Seguros, envolvendo atuação contenciosa e consultiva. Sócio do escritório Trajano Neto & Paciornik Advogados. 

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.