Migalhas de Responsabilidade Civil

Apontamentos sobre a responsabilidade civil na lei 14.181/2021

Apontamentos sobre a responsabilidade civil na lei 14.181/2021.

26/10/2021

Em julho deste ano entrou em vigor a lei 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Trata-se de lei que tem como alvo aperfeiçoar o mercado, reforçando a cultura do pagamento das dívidas, por meio da educação para um consumo consciente de todos os envolvidos no mercado de crédito.

 Entre as principais alterações trazidas pela nova lei, três merecem destaque.  Em primeiro lugar, houve a criação de novos princípios que devem nortear as políticas de proteção e defesa do consumidor, presentes no art. 4º do CDC, ligados ao fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores e à prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. São princípios que reforçam a função social da proteção do consumidor e a boa-fé objetiva, como padrão de comportamento ético nos contratos de crédito.

Em segundo lugar, destaca-se a criação de novos direitos básicos do consumidor, ligados à garantia de práticas de crédito responsável e preservação do mínimo existencial, por meio da revisão e repactuação de dívidas.  Estabeleceu-se, ainda, um conceito de superendividamento, caracterizado pela "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial" (art. 54-A).

Por fim, a lei estabeleceu  um complexo de regras procedimentais, regulando um conjunto de atos que se desenvolve em duas fases. A primeira é relativa a um processo de repactuação de dívidas, na qual é feita uma tentativa de conciliação global e em bloco, com a presença de todos os credores e a proposta pelo devedor de um plano de pagamento de, no máximo, 5 anos, preservados o mínimo existencial e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas (art. 104-A). Nesta fase é possível a renegociação administrativa, cuja competência é concorrente em relação a todos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Art. 104-C).

Já na segunda fase, prevista no art. 104-B, não obtida a conciliação, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes, por meio de um plano judicial compulsório, realizando a citação de todos os credores, cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado na fase conciliatória.

No que diz respeito à responsabilidade civil, é possível afirmar-se, com segurança, que Lei garantiu a possibilidade de responsabilização do fornecedor de crédito pelos prejuízos ocasionados em razão de descumprimento das determinações nela contidas, principalmente como mecanismo de prevenção da situação de superendividamento.  

O dever de informação nos contratos de crédito, já regulamentado no ar. 52 do CDC, ganhou contornos mais específicos, visando a facilitar o acesso e a compreensão do consumidor aos detalhes envolvidos na contratação. A par das informações técnicas do contrato, a Lei cuidou de limitar a publicidade do crédito, expressamente proibido "indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor” ou publicidade que venha a “ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo".  

A Lei vedou, de igual modo, “condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais” (Art. 54-C)

Ainda sobre a informação como arma de prevenção contra as armadilhas previstas nos contratos de crédito, a Lei condicionou o dever de informar e esclarecer as características e consequências do crédito contratado, à observância das características pessoais do tomador, notadamente sua idade. A diminuição de determinadas aptidões físicas ou intelectuais com o avanço da idade impõe uma redobrada fiscalização dos deveres de lealdade e colaboração impostos ao fornecedor de crédito, sob pena de ser responsabilizado pelas perdas e danos, patrimoniais e morais causados ao consumidor (Art. 54-D, parágrafo único).

Não por outro motivo, a lei estabeleceu um "ilícito de assédio" nas relações creditícias. Ficou expressamente vedada a prática (conduta) de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, inclusive à distância, por meio eletrônico ou por telefone, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio".  

Segundo Claudia Lima Marques, o assédio é uma prática abusiva que atinge principalmente os consumidores hipervulneraveis, caracterizando-se pela coerção ou influência indevida de profissional, que explorando emoções, medos, confiança do consumidor em situação de vulnerabilidade agravada, impede sua decisão racional na contratação de consumo1. A prática do assédio caracteriza-se tanto na esfera contratual, quanto à margem dela, havendo abuso da boa-fé do consumidor ou de sua situação de inferioridade econômica, expondo ainda mais a sua fragilidade.

A caracterização do assédio encontra fundamento na imprescindibilidade imposta por nosso texto constitucional de tutela à pessoa humana e a sua dignidade. É de Pietro Perlingieri a afirmação de que "uma vez considerada a personalidade humana como um interesse juridicamente protegido e relevante para o ordenamento, a responsabilidade civil se estende também a todas as violações dos comportamentos subjetivos nos quais se pode realizar a pessoa."2

Dessa forma, todas as condutas ilíticas que venham a atingir a personalidade humana, considerando seus atributos mais caros, como a vida, a liberdade ou mesmo a sua integridade psicofísica, serão passiveis de causar dano a ser reparado, como no caso do assédio de consumo. E mais, a apreciação das condições pessoais da vítima do assédio e a avaliação de fatores individuais concretos devem ser considerados no momento da quantificação do dano.

Com relação aos contratos de crédito, tipicamente massificados e de adesão, devem ser consideradas as condições peculiares dos contratantes, preservando a personalização do contrato. Busca-se, assim, proteger a posição do sujeito contratante, em especial o idoso, contra condutas de assédio que degradem sua posição contratual relativa, em termos de agravamento de vulnerabilidade, como, aliás, é próprio da teleologia do microssistema de proteção e defesa do consumidor.

Apoiando-nos nas considerações de de Arthur Basan,3 é possível afirmar que a proteção contra os danos advindos do assédio tem fundamento na frustração do direito do consumidor exercer a liberdade e a autodeterminação no âmbito do mercado de consumo. Entendemos, assim, que o dano resultante dessa conduta é de natureza extrapatrimonial, em relação ao consumidor e possui, ainda, uma dimensão transindividual, pois, em escala agregada, protege a hidizez do próprio mercado de consumo. É, potanto, de interesse social a proteção do consumidor contra essa prática.

A lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismos de aperfeiçoamento do mercado de crédito, com o objetivo de prevenir o superendividamento e responsabilizar os fornecedores pelo descumprimento de suas normas, apresenta-se como um importante passo na direção da proteção do sujeito vulnerável contra as armadilhas do mercado. A efetiva implementação da Lei depende, agora, da sua aplicação pelos tribunais, colocando-a em movimento e dando sua concretude fática, aperfeiçoando a defesa do consumidor, tendo em vista o norte constitucional de construção de uma sociedade justa, livre e solidária.

*Marília de Ávila e Silva Sampaio é doutora pela Uniceub. Professora do programa de mestrado profissional do IDP e juíza de Direito do TJDFT.

**Roberto Freitas Filho é doutor pela USP e professor dos programas de mestrado e doutorado do IDP/Brasília. Desembargador no TJDFT.

__________

1 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor:  o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. E-book.

2 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro. Renovar. 2008.

3 BASAN, Arthur Pinheiro. Do idoso sossegado ao aposentado telefonista. A responsabilidade civil pelo assédio do telemarketing de crédito. Revista IBERC. V. 4, n. 3 (2021), pp53-66.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.