Introdução
A mitigação de danos invoca uma ideia à primeira vista simples, que pode ser tripartida: Diante de um evento danoso, espera-se que da parte prejudicada que atue para mitigar os prejuízos dele decorrentes (1). Se o fizer, poderá cobrar ser indenizada por danos inevitáveis e despesas razoáveis do esforço de mitigação (2). Se não o fizer, não poderá cobrar os danos evitáveis, que deixam de ser indenizáveis (3).
A simplicidade, contudo, é meramente aparente. Seja por encontrar fundamentos e disciplina distintos em cada ordenamento, seja por sua aplicação prática suscitar inúmeros dilemas, a mitigação apresenta uma série de desafios ao intérprete e ao operador do direito.
Mitigação de danos pelo mundo e pelo Brasil
Ainda que sob roupagens distintas – a mitigação está presente em diversos ordenamentos mundo afora. É figura de destaque nos países da tradição do Common Law, mas também se fala de mitigação em países da tradição Romano-Germânica, embora com tratamentos diferentes.
No Common Law, a matéria é comumente referida como duty to mitigate, embora de dever não se trate. É tratada como um dos métodos de limitação da indenização, junto com Remoteness e Contributory Negligence.
Em França, a mitigação foi tratada sob o prisma da causalidade e do venire contra factum proprium. Contudo, em 2003, a Corte de Cassação reverteu dois julgados em que as instâncias inferiores aplicaram a mitigação de danos para reduzir a indenização devida ao credor. A Corte considerou que, não havendo regra expressa, não caberia penalizar o credor que não age para limitar seus próprios danos, causando um retrocesso, especialmente na esfera extracontratual.
Na Alemanha, a mitigação recebe o tratamento equivalente ao da corresponsabilidade do lesado (BGB, §254, 2), estabelecendo que "isso também se aplica se a culpa do lesado se limita a ter deixado de chamar a atenção do devedor para o risco de danos extraordinariamente elevado, que o devedor não conhecia nem deveria conhecer, ou deixar de evitar ou reduzir o dano." Na Itália, conforme art. 1.227, (2), do Codice Civile, "O ressarcimento não é devido pelos danos que o credor poderia ter evitado usando a diligência ordinária."1
A mitigação também foi incorporada ao Direito Internacional, como demonstra o exemplo mais conhecido, qual seja, o art. 77 da Convenção de Viena Sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Bens2. Além disso, há diversas iniciativas de soft law que consagram a mitigação de danos, tais como o art. 9:505 dos Princípios Europeus do Direito dos Contratos ("PECL")3.
No Brasil, o interesse para o estudo da mitigação de danos foi gerado pelo artigo seminal de Vera Jacob Fradera, de 2004, na qual indagava se “Pode o credor ser instado a mitigar o próprio prejuízo?”, intuindo que a resposta é positiva, com fundamento na boa-fé objetiva., mas suscitando a discussão do tema. Assim, na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a autora propôs aquilo que viria a ser o enunciado 1694.
Seguiu-se rápido desenvolvimento doutrinário, especialmente voltado a examinar se e como o direito brasileiro teria acolhido a mitigação de danos. O esforço é mesmo natural. O silêncio da legislação obriga intérpretes impõe cuidado redobrado na missão de identificar o fundamento da mitigação de danos e a sua função (ou natureza jurídica) sem prejuízo da integridade do sistema jurídico e de seus cânones constitucionais.
Grassaram, então, diversas propostas de fundamento. Desde a o abuso do direito, passando pela figura parcelar do venire contra pactum propium, até soluções ligadas à causalidade. Nestas, enxerga-se o dano evitável como dano indireto, fruto do rompimento (parcial ou total) do nexo causal, dado o descumprimento, pelo credor, da exigência (ônus, encargo ou incumbência) de atuar com ordinária diligência e minorar os danos decorrentes do descumprimento alheio.
A despeito da miríade de fundamentos propostos, doutrina e jurisprudência brasileiras lograram atingir relativo consenso quanto ao acolhimento da mitigação de danos pelo ordenamento jurídico. Esse atingimento pode ser identificado como o fim da primeira fase do instituto da mitigação de danos no direito brasileiro, a sua infância.
Para onde ir? A mitigação na prática
Atingido esse estágio evolutivo, pode-se propor que o estudo da mitigação de danos no Brasil entra em sua segunda fase, a adolescência do instituto, cujo propósito deve residir em estabelecer parâmetros mais seguros para os agentes econômicos e os operadores do direito a respeito da aplicação prática da mitigação de danos.
Imagine-se que uma parte é vitimada pelo inadimplemento imputável à contraparte, vindo a sofrer danos patrimoniais. O que dela se espera? Que atue com razoabilidade visando a mitigar os seus danos. Mas o que é ou não razoável varia à luz das circunstâncias específicas, das características e da situação concreta de cada parte etc, gerando uma série de questionamentos e dilemas, como sói ocorrer na aplicação de comandos dotados de indeterminação.
Parte da doutrina critica o uso da razoabilidade para aferir a legitimidade da conduta do credor, sugerindo que a conduta do lesado que falha em mitigar seu próprio dano rompe o nexo de causalidade e, por isso, o critério de imputação seria o da culpa. Essa posição não anula a dificuldade enfrentada, que decorre da aplicação prática dos conceitos teóricos da doutrina da mitigação. Seja o critério de imputação o da razoabilidade, seja o da causalidade, a dificuldade deve ser enfrentada.
Havendo algum grau de indeterminação no enunciado de um comando jurídico, haverá sempre três espaços perceptíveis de atuação para o operador do direito: uma zona de certeza negativa, que reúne os casos em que claramente o conceito não é atendido (1); uma zona de certeza positiva, em que claramente o conceito é atendido (2); uma zona de penumbra, que reúne os casos limítrofes, passíveis de gerar as maiores polêmicas (3).
Fazendo uma aproximação para o caso da mitigação e danos, há situações em que uma dada medida certamente não é razoável e, por isso, não se poderia esperar do credor que assim agisse, ainda que para mitigar os próprios danos. Portanto, nesse cenário, o credor que não adota essa medida faz jus à integralidade do dano que tiver sofrido. Essa é a zona de certeza negativa. Por outro lado, há situações em que a medida certamente é razoável. Estamos, aí, na zona de certeza positiva. Sendo a medida plenamente razoável, o credor que não a adota deixa de fazer jus à indenização do dano evitável. Não se pode esperar do proprietário de uma casa em chamas que arrisque a vida para tentar conter o incêndio, mas sim que ligue para os bombeiros imediatamente.
Mas, ao lado dessas duas zonas de certeza, existe uma zona de intermediária, na qual definir se uma dada medida é ou não razoável constitui um verdadeiro desafio para o operador do direito. Evidentemente, trata-se de metáfora para que se possa compreender que nem todo caso é simples e binário. Ainda assim, são casos difíceis de serem decididos, pelos elementos concretos que apresentam e, não raro, pela existência de interesses conflitantes a serem ponderados, de modo a se verificar qual é aquele que deve prevalecer e ser tutelado.
Evidentemente, existe um campo fértil para polêmicas em tema de mitigação de danos. Por isso, superada a infância da matéria, isto é, estabelecido que o direito brasileiro recepcionou e incorporou o preceito da mitigação de danos pelo credor, inaugurou-se a fase da adolescência. Nela, doutrina e jurisprudência devem atentar ao estabelecimento de limites claros sobre o alcance da mitigação, preocupando-se em estabelecer com rigor o que é e o que não é esperado de cada parte, separando a expectativa legítima, que deve ser tutelada, do mero abuso da posição da pessoa devedora que apenas deseja limitar a extensão do dano a que pode ser condenada.
É fundamental que a doutrina e a jurisprudência evitem o uso da mitigação de danos como uma panaceia contra todos os males que assolam a parte devedora. Esse fenômeno já acometeu outros institutos de vocação igualmente salutar, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Para tanto, o primeiro passo é ter em mente quais são os interesses que devem ser sopesados ao avaliar a conduta da parte lesado para determinar a extensão da indenização devida pela parte lesante. De fato, em geral, a mitigação alinha os interesses das partes envolvidas. A exigência de mitigação cria um incentivo econômico para que a parte lesada atue de modo eficiente na contenção dos danos decorrentes do inadimplemento. Mas e quando esses interesses conflitam?
Situação interessante é o da mitigação proposta pela própria parte em mora. Imagine-se que uma parte se obriga a entregar pás eólicas no prazo de 1 ano. Após a celebração do contrato, essa parte notifica a credora informando que, em razão da variação do preço dos insumos, exige o aumento o preço contratado, do quê a compradora discorda. Para resolver o impasse, a vendedora oferece um preço 30% maior do que o contratado, ainda assim, menor do que o segundo melhor preço de mercado, mas exige da contraparte quitação total.
Sob a ótica do interesse jurídico da vendedora, a aceitação da oferta é medida legítima, pois é a que menos aumenta o preço da operação. Sob a ótica do interesse jurídico da compradora, a oferta é legitimamente recusável. Afinal, exige a renúncia a direitos, transferindo à compradora o risco do aumento do preço e dos danos decorrentes da demora na definição da questão (1). Além disso, dá à vendedora o poder de impor a renegociação do contrato, desde que o seu preço seja menor que o da concorrência (2).
Conclusão
À guisa de conclusão deste despretensioso escrito, impende ter presente que os estudos brasileiros em torno da doutrina da mitigação de danos superaram a fase inicial, de infância da matéria, na qual se destacou a importância de estabelecer, com segurança, que o ordenamento brasileiro acolheu a noção de mitigação de danos pelo credor. Fê-lo com sucesso, dado grassar relativo consenso a esse respeito.
Inaugura-se, então, uma segunda fase dos estudos da matéria, a sua adolescência. Nela, espera-se da doutrina e da jurisprudência a construção diretrizes claras a respeito do alcance prático da mitigação de danos e suas consequências. Em especial, que sejam traçados parâmetros identificáveis pelos agentes econômicos a fim de lhes outorgar maior segurança para balizar decisões que, não raro, são tomadas em situação de pressão e urgência, como é típico em situações de mitigação de dano. Em especial, afigura-se fundamental combater com rigor as tentativas de desvirtuar o instituto e transformá-lo em mais uma ferramenta para permitir que devedores deixem de responder por aquilo que lhes seja imputável.
*Rafael V. Gagliardi é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Associado ao IBERC e Fellow do CIArb. Advogado e árbitro. Sócio de Demarest Advogados.
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1 "2. Il risarcimento non è dovuto per i danni che il creditore avrebbe potuto evitare usando l'ordinaria diligenza."
2 "A parte que invocar o inadimplemento do contrato deverá tomar as medidas que forem razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento, incluídos os lucros cessantes. Caso não adote estas medidas, a outra parte poderá pedir redução na indenização das perdas e danos, no montante da perda que deveria ter sido mitigada."
3 "Article 9:505 - Reduction of loss:
(1) The non-performing party is not liable for loss suffered by the aggrieved party to the extent that the aggrieved party could have reduced the loss by taking reasonable steps.
(2) The aggrieved party is entitled to recover any expenses reasonably incurred in at tempting to reduce the loss."
4 "Art. 422: o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo."