Migalhas de Responsabilidade Civil

Informação adequada e consentimento esclarecido: algumas notas sobre a responsabilidade médica

Informação adequada e consentimento esclarecido: algumas notas sobre a responsabilidade médica

7/10/2021

As interfaces entre Direito e Medicina são muitas e bastante conhecidas. Particularmente no que toca ao Direito Privado e ao enfrentamento da responsabilidade do médico por danos suportados pelo paciente, é comum que os olhares se voltem para o erro médico, para o regime de responsabilidade e o ônus da prova a ele referente e para o alcance do dever de reparar ou compensar prejuízos. Mais recentemente, pelo avanço da telemedicina e pela tragédia global suscitada pela Pandemia do Novo Corona-vírus, também se tem discutido a respeito da responsabilidade do profissional médico pela guarda de dados pessoais dos pacientes e pela prescrição de tratamentos ineficazes à COVID-19.

A problemática do consentimento do paciente é transversal a todos os assuntos listados, mas nem sempre recebe semelhante atenção. Isso se deve, ao menos em alguma medida, à tradição sacerdotal da medicina – partilhada pela advocacia –, e à reputação de quase panaceia conquistada pelo conhecido termo de consentimento livre e esclarecido, especialmente para casos de procedimentos invasivos, desconfortáveis ou demasiadamente complexos. O perfil da relação médico-paciente mudou, contudo. E a singela solução do termo padronizado de consentimento, como todas as soluções simples para problemas complexos, padece do mal de Mencken1. Vale dizer: é conhecida, elegante e plausível, mas errada. Ou, quando menos, insuficiente.

Desde o prisma da ética médica, a fragilidade da conversão da coleta do consentimento do paciente em um simples documento médico (não raro um formulário em que os dados do paciente são preenchidos de modo manual) é extraível da Recomendação CFM 01/2016. Do parecer que a acompanha consta que “as informações e os esclarecimentos dados pelo médico têm de ser substancialmente adequados, ou seja, em quantidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar sua decisão, ciente do que ocorre e das consequências que dela possam decorrer”. Só assim é que o paciente poderia decidir e comunicar sua decisão de modo coerente e justificado, segundo seus valores, projetos, crenças e experiências.

A soma de informações verbais dadas ao paciente e anotadas em seu prontuário a um termo padrão de consentimento livre e esclarecido, então e à primeira vista, não é prova robusta de cumprimento do dever de informar. Isso mesmo que, substancialmente, informação satisfatória tenha sido prestada. Afinal, como explicitado pela Recomendação do CFM, "o consentimento é um processo, e não um ato isolado". Como tal, "incorpora a participação ativa do paciente nas tomadas de decisão".

Dita insuficiência é reforçada, ainda, pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao tema, exarado quando do julgamento do Recurso Especial 1.540.580. Na ocasião, o STJ anotou que "o dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico. (...) Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado"2. A propósito do ônus da prova acerca da entrega das informações ao paciente e da coleta de seu consentimento, a decisão da Corte foi bastante assertiva: "o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar e obter o consentimento informado do paciente é do médico ou do hospital".

Diante deste pano de fundo, é saudável à classe médica dedicar atenção especial ao conteúdo e à forma da manifestação escrita de consentimento livre e esclarecido do paciente, bem assim à disposição no prontuário das informações trocadas em consulta. A um, para reforçar as linhas de defesa em face de eventual pedido de reparação ou compensação por danos decorrentes da prática médica. A dois, para mitigar o risco de responsabilidade a partir de alegação de não cumprimento (ou cumprimento imperfeito) do dever de informação, independentemente do sucesso ou insucesso do tratamento.

O tema, que é muito discutido no âmbito das relações contratuais em geral sob o título responsabilidade pelo inadimplemento da boa-fé3, começa a ganhar corpo na jurisprudência também em relação à prática médica. Além da indicada decisão do STJ, há casos crescentes de condenação mantida por Tribunais de Justiça com fundamento tão-só no incumprimento ou no cumprimento imperfeito do dever de informação adequada, a despeito do afastamento de alegações do paciente acerca da culpa do profissional.

Por tudo isso, seja em relação aos mais recorrentes temas da responsabilidade civil médica, seja em face de questões ainda emergentes, é fundamental o planejamento e a estruturação de meios robustos de prova acerca do suficientemente cumprimento do dever de informar e da correspondente manifestação de consentimento do paciente. Assim, apesar da variabilidade inerente ao Direito, pode-se, com estribo nas balizas deitadas pela Recomendação 01/2016 do CFM e pelas decisões pertinentes dos Tribunais brasileiros, incrementar a segurança da prática médica pela prevenção de possíveis reveses evitáveis.

*André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Estudos em Direito Contratual. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado.

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1 MENCKEN, Henry Louis. Prejudices. Second series. Londres: Jonathan Cape, 1921, p. 158.

2 STJ, REsp 1.540.580/DF, 4ª T., Rel.: Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), Rel. para o acórdão: Min. Luis Feliz Salomão, J. 02/08/2018, DJe 04/09/2018.

3 V. EHRHARDT JUNIOR, M. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.