A restituição de ganhos ilícitos tem ocupado importante debate no âmbito do IBERC. Entre aqueles que se debruçam sobre este desafiador objetivo, e aceitam a possibilidade de se pleitear a remoção dos ganhos ilícitos realizados pelo ofensor, destacam-se duas correntes, que correspondem, respectivamente, ao refinamento imposto à responsabilidade civil no sistema da common law e ao enriquecimento sem causa no ordenamento jurídico alemão.
Uma compreende que há uma limitação funcional da responsabilidade civil, dedicada exclusivamente à função reparatória. Diante da redação do art. 944 do Código Civil que limitaria a indenização à extensão do dano, a remoção ou a restituição de ganhos ilícitos se daria através do enriquecimento sem causa, pelo enriquecimento por intromissão, enriquecimento por intervenção ou lucro da intervenção e que encontraria fundamento no art. 884 do CC1. Nesse sentido, destacam-se, entre outros, os trabalhos de Sérgio Savi, Rodrigo da Guia Silva, Renato Franco e Maria Cândida do Amaral Kroetz.
A segunda corrente, capitaneada por Nelson Rosenvald2 e à qual nos filiamos3, aloca a remoção e a restituição de ganhos ilícitos no bojo da responsabilidade civil. Para tanto duas premissas devem ser assumidas: a responsabilidade civil é multifuncional e atuará com diferentes remédios de acordo com os efeitos derivados do ilícito4, assumindo, assim, funções diversas da reparatória; o enquadramento dogmático que justifica a atuação da responsabilidade civil se vale da natureza do evento causal subjacente à obrigação para definir a classificação da própria obrigação, pelo que a responsabilidade civil será o instrumento adequado a conferir a tutela a todas as obrigações provenientes de um ilícito, seja uma obrigação de indenizar ou uma obrigação de restituir.
Essa classificação das obrigações observa a clássica divisio das derivada do direito romano, base estrutural do direito dos sistemas de civil law, utilizada por Peter Birks5 para justificar a autonomia do enriquecimento sem causa no sistema de common law inglês. O trabalho de Peter Birks permite observar que quando o acréscimo patrimonial realizado pelo obrigado à restituição decorrer de um ilícito é a responsabilidade civil que atuará para remover esse ganho ilícito, dando concreção ao princípio assim enunciado: commodum ex iniuria sua nemo habere debet ou no person shall profit from his or her wrong, ou seja, nenhuma pessoa deve lucrar a partir do ilícito.
O ordenamento jurídico brasileiro traz argumentos de natureza normativa que nos levam a concluir pela aplicação dos remédios restitutórios em face de ilícitos pela responsabilidade civil. Um exemplo é o art. 210 da LPI, que prevê a possibilidade de aplicação dos remédios restitutórios na remoção de ganhos ilícitos. Mesmo caminho foi adotado no direito italiano no art. 125 ao Codice di Proprietà Industriale, que em seu item 3 prevê a possibilidade do disgorgement of profits.6 Assim, a tutela restitutória do ilícito através da responsabilidade civil ganhou acolhida naquele ordenamento jurídico.
A priori, ainda que o embate no campo teórico possa parecer pouco produtivo para a prática, a diferenciação traz consequências consideráveis. A primeira quanto ao fator de imputação e a segunda quanto ao prazo prescricional aplicável à pretensão, posto que, enquanto na responsabilidade civil contratual o prazo é decenal a pretensão de restituição do enriquecimento sem causa tem prazo trienal.
Tomamos, assim, o disposto no art. 1.017 do CC7 que regula a responsabilidade civil do administrador das sociedades empresariais.
A sociedade comercial, tal qual disciplinada no Código Civil, é figura de natureza eminentemente contratual, posto derivar de um acordo de vontades ou, ao menos, da manifestação de vontade de uma pessoa, que visa organizar recursos e realizar uma atividade direcionada ao implemento de um objetivo econômico8. A relação intrassocial, portanto, é contratual.
A administração da sociedade é um órgão societário cujas atribuições são exercidas por um ou mais sócios, ou por terceiro por eles nomeados, que, segundo o CC, tem a atribuição de presentar (conforme a clássica lição de Pontes de Miranda) a sociedade, ou seja, agir de modo presente em seu nome. Trata-se, na acepção do dilema da agência, de uma pessoa (agente) apta a tomar decisões e promover iniciativas em nome e com impactos para a empresa (principal). Isto é, quando o administrador, enquanto órgão da sociedade empresarial, pratica um ato, este ato ingressa no sistema jurídico como ato da própria pessoa jurídica e não como ato da pessoa do administrador.
Em sua atuação, dado a natureza contratual do vínculo que une a sociedade, o administrador deve observar a boa-fé objetiva e seus deveres laterais, dentre os quais destacam-se os de lealdade e probidade que orientam o administrador a sempre empregar os bens e recursos da sociedade em benefício desta e não de si mesmo. O desvio nessa conduta, consistente na realização dos atos de desvio patrimonial previstos no art. 1.017 do CC, configuram o ilícito aí tipificado. Não pela busca de imputação na culpa, mas pela própria violação da boa-fé objetiva e de seus deveres anexos, isto é, espécie de inadimplemento independentemente de culpa9. Inclusive, os princípios da probidade e confiança, plenamente aplicáveis à atuação do administrador, têm natureza de ordem pública, pelo que basta a violação destes para que se caracterize a responsabilidade10. Por essas razões, compreendemos que a responsabilidade civil no caso ostenta natureza contratual e é objetiva.
Não necessariamente existirá um dano à sociedade. Caso, por exemplo, o administrador utilize um imóvel da sociedade para seu benefício até que aquele seja locado. Não houve diminuição do patrimônio da sociedade, tampouco foi frustrado algum lucro, contudo, houve uma transferência de valor para o administrador, que indevidamente rompeu com a lealdade ao utilizar o bem em benefício próprio.
Nesse caso não atuaria o remédio reparatório pela ausência de dano indenizável. A sociedade lesada não seria titular de nenhuma pretensão reparatória, senão apenas intitulada no direito de destituir o administrador e eventualmente excluí-lo da sociedade, se sócio.
É aí que atua a função restitutória da responsabilidade civil, ofertando ao lesado o remédio restituório na modalidade da reversão dessa transferência de valor, o que Nelson Rosenvald denominou indenização restitutória. Nessa hipótese, pela abertura semântica conferida pelo art. 1.017 do CC, em exceção à limitação da indenização à extensão do dano, caberia condenar o ofensor ao pagamento de um valor correspondente à transferência indevida, que não se trata de compensação. É o que o common law define como give back, remédio que se convencionou denominar restitutionary damages.
Agora, imagine-se que o administrador tome para si uma quantia do caixa da empresa e com esse valor adquira valores mobiliários em seu próprio nome. Nesse caso há um dano, uma diminuição patrimonial da sociedade. Suponha-se que essas ações valorizem e o ofensor colha um ganho a partir desse dinheiro ilicitamente obtido. Ora, como diz o brocardo inglês, “tort must not pay”. Permitir ao administrador inadimplente que permaneça com os resultados obtidos a partir de seu ilícito é uma falha do sistema jurídico que o deixaria se beneficiar de sua torpeza. Nesta situação outro remédio restitutório deve agir, a remoção dos ganhos ilícitos, novamente autorizado pela abertura concedida pelo art. 1.017 do CC. Referido remédio, classificado como um give up, é voltado a obrigar o ofensor a abrir mão dos ganhos provenientes do ilícito, o que no common law se denominou disgorgement of profits. Assim, além de compensar o dano que provocou, ficaria obrigado o administrador a entregar à sociedade os lucros que realizou.
Este argumento sistemático reforça a posição de que o ordenamento jurídico brasileiro, pelas características já citadas, abarca a aplicação dos remédios restitutórios pela responsabilidade civil e não pelo enriquecimento sem causa. Para outros casos que não possuem a mesma abertura semântica do art. 1.017 do CC caberia por vez promover as adequações ao art. 944 do Código Civil para sacramentar a inclusão dos remédios restitutórios no sistema de responsabilidade civil brasileiro, promovendo a tutela integral da pessoa que é o fundamento primeiro da responsabilidade civil.
*Vitor Ottoboni Pavan é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professor convidado de Direito Civil das pós-graduações da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de Responsabilidade Civil da Universidade Estadual de Maringá. Pesquisador do Grupo de Pesquisa "Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional - Virada de Copérnico" (PPGF/UFPR).
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1 Nesse sentido o texto de Leandro Reinaldo da Cunha publicado nessa coluna: "Nesse contexto surge a discussão acerca do lucro da intervenção, entendido como sendo a hipótese em que o sujeito obtém uma vantagem patrimonial face à utilização de bem de outrem, sem que possua a devida autorização para a exploração do referido bem. Seria, portanto, uma situação fática na qual se aplicariam as consequências decorrente do enriquecimento sem causa (art. 844 do CC)."
2 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 257-268.
3 PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020
4 Nesse sentido também Flaviana Rampazzo Soares e Ísis Boll de Araújo Soares, em interessantíssimo texto de reflexão a partir dos efeitos da pandemia, apontaram a necessidade de a responsabilidade civil agregar à sua clássica função reparatória outras que sejam adequadas a atender as demandas complexas da sociedade em seu estágio de desenvolvimento contemporâneo.
5 Para uma análise mais aprofundada do tema confira BIRKS, Peter. Unjust enrichment. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. E-book.
6 Codice di Propietà Industriale. Art. 125. "1. Il risarcimento dovuto al danneggiato e' liquidato secondo le disposizioni degli articoli 1223, 1226 e 1227 del codice civile, tenuto conto di tutti gli aspetti pertinenti, quali le conseguenze economiche negative, compreso il mancato guadagno, del titolare del diritto leso, i benefici realizzati dall'autore della violazione e, nei casi appropriati, elementi diversi da quelli economici, come il danno morale arrecato al titolare del diritto dalla violazione. 2. La sentenza che provvede sul risarcimento dei danni puo' farne la liquidazione in una somma globale stabilita in base agli atti della causa e alle presunzioni che ne derivano. In questo caso il lucro cessante e' comunque determinato in un importo non inferiore a quello dei canoni che l'autore della violazione avrebbe dovuto pagare, qualora avesse ottenuto una licenza dal titolare del diritto leso. 3. In ogni caso il titolare del diritto leso puo' chiedere la restituzione degli utili realizzati dall'autore della violazione, in alternativa al risarcimento del lucro cessante o nella misura in cui essi eccedono tale risarcimento".
7 O caput do referido dispositivo legal prevê que "O administrador que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá".
8 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Sociedades: teoria geral das sociedades. As sociedades em espécie do Código Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2014. (Direito comercial; v. 2), p. 41.
9 Neste sentido o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil CJF/STJ.
10 Conforme Enunciado 363 da IV Jornada de Direito Civil CJF/STJ.