Ao longo dos últimos anos, as autoridades brasileiras de defesa da concorrência tomaram medidas para recrudescer o combate às violações à concorrência, concentrando grande parte de seus esforços para inibir os cartéis, tidos como a mais grave das violações. Tais medidas adotadas para a persecução pública foram reforçadas pelo aumento do número de ações privadas de pedido de indenização concorrencial. Os esforços empreendidos pelo público e pelo privado se complementam e ambas as atuações são necessárias para garantir uma efetiva dissuasão dos agentes econômicos à prática de atos anticoncorrenciais.
Esse recente florescimento das ações indenizatórias no campo concorrencial deu destaque aos temas que delas resultam em maior controvérsia no Judiciário. Dentre eles, a discussão sobre a prescrição é altamente relevante, do qual se destaca o debate sobre termo inicial de sua contagem.
Conta-se o prazo do ato ou da sua ciência? Qual a dada da efetiva ciência pela vítima? São essas as perguntas que precisam ser respondidas e que o PL 11.275/2018 poderá ajudar1.
O Código Civil determina, em seu artigo 189, que a contagem do prazo de prescrição se inicia com a violação do direito. Contudo, a fim de evitar a perda do direito por aqueles que sequer conhecem a sua existência, a doutrina desenvolveu interpretação no sentido de considerar que o prazo prescricional se inicia apenas da data do conhecimento do ato ou da lesão e seus efeitos pela vítima. José Fernando Simão esclarece que o dies a quo da prescrição para exercício de direito sobre fatos desconhecidos é a data em que se verifica o dano-prejuízo, seguindo o mesmo entendimento de Junqueira de Azevedo e Paulo Torminn Borges2.
A jurisprudência segue o mesmo caminho3 e referenda essa solução, que mantém vivo o direito da vítima e evita que se tornem totalmente inócuas as normas de responsabilização civil. A prescrição serve para evitar a eternização de direitos, não para suprimi-los.
A multiplicidade de momentos dos cartéis
No que diz respeito aos cartéis, são dois os níveis de prática de atos ilícitos. O primeiro é o do ato que deu origem ao acordo ilícito em si. O segundo é o da implementação desse acordo, quando ocorre a mudança das condições de mercado (dano-evento) – que, de forma direta ou indireta afeta os preços dos produtos ou serviços ofertados pelos cartelistas – e, a partir disso, geram-se as consequências aos agentes de mercado afetados (dano-prejuízo)4.
O início da operação do cartel marca o momento do início da produção dos danos e ele costuma ocorrer logo após a celebração do acordo entre os envolvidos. Embora haja discussão sobre o cartel ser crime permanente ou continuado, é consenso que ele se estende no tempo5.
Portanto, a data do início da operação do cartel demarca o início dos danos, no caso, a ocorrência do dano-evento.
Importante agora dividir duas possíveis origens às ações de indenização por dano concorrencial: cartéis descobertos diretamente pelas vítimas e cartéis investigados pelas autoridades de defesa da concorrência. No primeiro caso, têm-se uma ação judicial chamada de "stand alone", na qual a vítima terá que apresentar todas as provas do ato alegado, comprovar a existência do cartel por meio de provas coletadas mediante seus próprios esforços e, também, comprovar o dano sofrido. O segundo caso é o da ação judicial chamada de "follow on", em que a vítima apoia todo seu pedido nas provas e decisões produzidas pela autoridade que julgou e condenou o cartel6.
Essa diferença é fundamental para tratar da prescrição porque para as ações stand alone há apenas um ponto no tempo a ser discutido, enquanto para as ações follow on existem vários. Quando uma vítima inicia uma ação judicial stand alone, ela deve apresentar todas as provas quanto aos elementos formadores da responsabilidade civil e, tratando-se de fato sobre o qual tomou conhecimento após sua ocorrência, deverá comprovar a data de sua ciência. Os réus poderão contestar essa alegada data de ciência, caso tenham provas que ela ocorreu em momento diferente.
Com relação às ações follow on, como as vítimas se embasarão em investigação promovida pelas autoridades de defesa da concorrência, pois não tinham acesso a qualquer informação ou prova antes da investigação – do contrário, estar-se-ia diante de uma ação stand alone –, há discussão sobre os inúmeros marcos temporais que existem na própria investigação, desde a data de instauração do processo administrativo até o dia de sua extinção.
Especialmente no contexto das ações follow on, a dificuldade é determinar quando se daria o conhecimento inequívoco de tais danos tendo em vista os inúmeros marcos temporais, sobretudo em ilícitos complexos como os casos de cartel.
Conhecimento inequívoco dos danos pela vítima
Cartéis são ilícitos sigilosos e seus membros tentam esconder ao máximo sua existência para que a prática se alongue no tempo, uma vez que a descoberta precoce impossibilitaria a continuidade dos ganhos espúrios, seja pela mobilização das autoridades ou dos demais agentes do mercado, prejudicados pelo ilícito.
Por sua natureza secreta, a obtenção de provas quanto à existência dos cartéis é tarefa extremamente difícil, se não hercúlea. Quando inexiste qualquer acordo (leniência ou termo de compromisso de cessação – TCC) por meio do qual algum participante do cartel o denuncie e entregue provas de sua existência às autoridades, as provas materiais só podem ser obtidas mediante busca e apreensão de documentos. Tal medida não é tarefa fácil e demanda grandes recursos, esforços e articulação institucional entre diversos órgãos investigativos7.
Portanto, ao prejudicado cabe buscar tal ajuda do governo (mediante a propositura de ações stand alone) ou aguardar que os fatos sejam desvendados para que depois inicie sua ação de indenização (ações follow on). Surge daí a seguinte questão: como buscar provas de algo cuja existência se desconhece? Na medida em que os prejudicados somente saberão que estão sofrendo prejuízo quando o cartel for revelado, eles só poderão buscar provas sobre eventual ilícito após tal data.
Qualquer ponto cronológico que antecede a decisão final do CADE sobre uma investigação de cartel poderá trazer elementos parciais sobre a possível existência do ato ilícito, mas a partir dos quais não é possível determinar se ocorreu o dano-evento e qual seria ele, quanto menos averiguar suas eventuais consequências (dano-prejuízo).
Portanto, fica claro que o marco que determina o início da contagem do prazo prescricional é o da verificação do dano-prejuízo, que pode ser coincidente ou não com o dano-evento e com o ato ilícito. Contudo, os casos de concorrencial revelam que há ainda maior dificuldade quando se desconhece a existência do próprio ato ilícito, porque mesmo que a vítima sofra as consequências do dano, não poderá relacionar tais efeitos a qualquer ato, pois os desconhece ou ainda não foram revelados.
É sob tal ótica que a doutrina tem analisado a contagem do prazo prescricional para as vítimas de cartéis. Como o dano-prejuízo somente pode ser verificado mediante perícia econômica e econométrica, que se baseia nos dados do dano-evento, impossível que se verifique qualquer prejuízo antes que se tenha acesso às informações mínimas da abrangência, autoria e período de prática do ato ilícito.
Assim, havendo uma sentença penal ou uma decisão administrativa, passa-se a ter ciência da existência do ato ilícito e de sua autoria, além dos seus efeitos, necessários para determinar a extensão do dano-prejuízo. Mais que isso, torna-se possível ter acesso às provas da existência de tal ilícito, necessárias para comprovar a relação de responsabilidade civil.
Esse momento ocorre na data da publicação da decisão final da autoridade, após eventuais embargos de declaração e outros recursos modificativos da decisão. Apesar de ser ainda possível questionar na Justiça a decisão final administrativa, parece ser um exagero aguardar por tal decisão, mesmo que possam alterar totalmente o julgamento. Para fins de ciência do ato ilícito e seus efeitos, basta a coisa julgada administrativa.
Já no caso de condenação criminal, deve-se aguardar pela coisa julgada judicial, pois somente com a publicação da decisão final do Judiciário que haverá a confirmação do crime e de sua autoria.
Assim, a conclusão não pode ser outra que: a ciência do ato ilícito de cartel ocorre na data da decisão final administrativa ou criminal, a que ocorrer primeiro.
O PL 11.275/18 e a prescrição: alteração ou confirmação?
Ainda existe confusão na interpretação legal, mas ao menos no Tribunal de Justiça de São Paulo, perante o qual tramita a grande maioria das discussões sobre o tema, inúmeras decisões já estão sendo discutidas em segundo grau e consolidou-se o entendimento ora defendido por este autor, de que a responsabilidade é aquiliana e o termo de início de sua contagem é a data da publicação da decisão final do CADE8. Tal entendimento segue também as normas e decisões internacionais9.
Nesse sentido, o texto do PL 11.275/2018 traz como grande contribuição ao debate da prescrição a consolidação do entendimento jurisprudencial e doutrinário já dominante, visto que determina expressamente que a ciência inequívoca do ato ilícito ocorre quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE10-11.
Portanto, mais que inovar, o Projeto de Lei confirmará a interpretação já adotada para a legislação vigente. Contudo, estará longe de resolver todas as discussões oriundas do tema, ao menos em um primeiro momento. Por exemplo: como ficaria a contagem do prazo prescricional para cartéis que foram julgados ou que tiveram início antes da entrada em vigor da nova lei? Resta claro que a jurisprudência continuará desempenhando papel fundamental para nos guiar por esse tema por alguns anos.
*Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Doutor, Mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", publicado pela RT, atualmente em sua 2ª edição, além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior.
__________
1 O Projeto de Lei (PL) 11.275/2018 é originário do Projeto de Lei do Senado (PLS) 283/2016 e atualmente aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O projeto traz outras determinações além daquelas sobre a prescrição, tal como a criação do double damage, a imposição da cláusula arbitral para quem celebrar acordo de leniência ou TCC e regra expressa sobre o ônus da prova sobre casos de repasse do dano.
2 SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 213-216.
3 Nesse sentido: REsp 1.354.348/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.08.2014; AgInt no REsp 1.478.280/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.08.2017; REsp 1.346.489/RS, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 11.06.2013; REsp 1.645.746/BA, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 06.06.2017.
4 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 195-203.
5 Parece muito mais coerente classificar o cartel como um crime permanente, visto que o acordo e seu objetivo são definidos desde o início, e durante a operação do cartel os membros fazem apenas ajustes da forma de sua operação, mas o ato ilícito permanece o mesmo e se estende no tempo. Ao contrário, sendo considerado um crime continuado, pressupor-se-ia que a cada venda realizada por cada um dos membros do cartel haveria uma nova decisão por sabotar o ambiente concorrencial. Por mais que os cartéis de fraude à licitação se assemelhem a essa descrição, vê-se que não há um novo acordo a cada certame, mas sim um acordo macro que busca os objetivos globais do cartel a cada processo licitatório. Tanto é verdade que existem os sistemas de compensação entre os membros do cartel para ajustar as diferenças de valores dos contratos ou participações de mercado entre uma licitação e outra em diferentes regiões do país ou do mundo.
6 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 198.
7 MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial. 2.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 197.
8 São decisões nesse sentido: TJ/SP – Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP – AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP – AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP – Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020.
9 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia e nos EUA asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da cocorrência.
10 Além de prever expressamente que a data da decisão final do CADE é o ponto de início da contagem da prescrição, a nova lei uniformiza o prazo prescricional em 05 anos, eliminando a distinção atualmente existente entre Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, confirmando também se tratar de responsabilidade civil extracontratual.
11 PL 11.275/2018: "Art. 2º A Lei nº 12.529, de 30 de dezembro de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência), passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 46-A e 47-A: (...) Art. 46-A. (...) § 2º Considera-se ocorrida a ciência inequívoca do ilícito quando da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade."