No âmbito da responsabilidade civil, a mitigação é a norma que repercute a conduta do lesado – posterior ao evento lesivo – sobre a quantificação e compensação do dano. O mais fácil é concebê-la a partir de seu efeito: o prejuízo evitável não é ressarcível, o que encoraja o lesado a mitigar, ou seja, a se portar com razoabilidade após o evento lesivo para impedir o agravamento do dano.1
Apesar de divergências quanto ao fundamento (se boa-fé objetiva, se abuso de direito ou se decorrência da causalidade, por exemplo), natureza jurídica (se dever, se ônus, ou se incumbência, etc.) e origem (se importação de figura estrangeira ou se solução nacional), há consenso doutrinário quanto à incidência da referida norma nas relações jurídicas reparatórias envolvendo danos patrimoniais (lucros cessantes e danos emergentes).
Questão menos discutida, todavia, é a possibilidade de mitigação do dano moral. Neste pequeno ensaio, serão apresentadas duas provocações sobre o tema.
A primeira diz respeito ao exercício tardio do direito de ação referente à compensação do dano moral. Aqui, cogita-se a possível incidência da mitigação sobre os juros moratórios acrescidos à indenização frente à demora no ajuizamento da demanda pela vítima.
Como se sabe, lesionado interesse existencial merecedor de tutela, a pretensão à compensação moral deve ser exercida dentro dos limites temporais estabelecidos pela prescrição no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
Com base nisso, o agir da parte que exerce a pretensão no limiar de referidos prazos (por ex., no último dia) supostamente majoraria a condenação devida pelo ofensor a título de danos morais, por força da incorporação dos juros de mora desde o evento lesivo, nos termos da Súmula 54/STJ.2
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já se deparou com a situação ao apreciar o RESp n. 1.677.773/RJ. Na ocasião, consignou que o dilatado prazo prescricional instituído no CC-16 "resultava em situações extremas, nas quais o período decorrido entre o evento danoso e a propositura da ação indenizatória se revelava nitidamente exagerado ou desproporcional", mas, com a drástica redução dos prazos operada pelo CC-023, a justificativa não mais subsistiria. Isso levou ao desprovimento do RESp.4
De fato, a invocação da mitigação não é o caminho mais adequado para lidar com o ajuizamento tardio e os juros de mora. A prescrição tem por panos de fundo a estabilização social e a segurança jurídica. Admitir a mitigação como meio de, casuisticamente, limitar os juros nas pretensões exercidas dentro dos marcos temporais definidos no Código geraria, justamente, instabilidade e insegurança. Se for o caso, a discussão deve se centrar na revisão da Súmula/54 e no marco a quo da incidência dos juros, evitando-se a utilização da mitigação como sucedâneo em situações patológicas.
A segunda provocação pressupõe a investigação da real possibilidade de mitigar o prejuízo moral propriamente dito. Parte da premissa do dano moral, assim como o patrimonial, também pode ser agravado a depender da conduta da vítima, o que demanda necessária diferenciação entre dano-evento e dano-prejuízo.
Dano-evento seria a lesão ao interesse juridicamente relevante (de índole existencial, no caso). O dano-prejuízo, por sua vez, consistiria na consequência patrimonial ou moral de referida lesão. O fato de existirem dois "momentos" não significa que haja lapso entre eles: pode ser que o prejuízo se consume simultaneamente à lesão.5
Diante disso, quando o dano-prejuízo for simultâneo ao dano-evento ou se for consequência direta de sua materialização, não há espaço para a incidência da mitigação. Isso porque, nessas circunstâncias, não há possibilidade de agravamento passível de ser atribuído à vítima. Para ilustração, imagine-se a hipótese de envio de cartão de crédito sem autorização (Súmula 532/STJ): dessa prática abusiva, por si só, decorre o prejuízo moral, sem que haja possibilidade de mitigação pela vítima, pelo menos dentro daquilo que normalmente ocorre.
Diferente é a situação na qual: i) do dano-evento não necessariamente decorre o dano-prejuízo; ii) há o agravamento do dano-prejuízo após o dano-evento; iii) há o agravamento da lesão existencial em si, com a reconfiguração da relação reparatória.
Exemplo da primeira situação: não correntista comparece ao caixa de determinado Banco público para realizar o pagamento da inscrição em concurso público no último dia do vencimento do título. Imagine-se que o sistema de referida Instituição Financeira sai do ar e, consequentemente, não é possível realizar o pagamento in loco.
Ainda assim, o pagamento poderia ser realizado até às 22h por via de aplicativo mobile ou internet banking. Nessas circunstâncias, a pretensa vítima poderia localizar amigo, familiar ou terceiro, correntista da Instituição Financeira, e solicitar que realizasse referido pagamento, eliminando o prejuízo moral oriundo da falha sistêmica.
Percebe-se que, apesar do dano-evento, o dano-prejuízo de índole moral pela perda da chance de realizar o concurso não necessariamente se materializaria, embora, é verdade, pudesse se configurar outra hipótese de dano-prejuízo, menos grave, pelo tempo despedido pelo consumidor.
Exemplo da segunda situação: matéria baseada em fatos inverídicos é divulgada em veículo de comunicação social, abalando a honra subjetiva da vítima. No primeiro dia, há apenas 200 visualizações. Tomando a vítima ciência do fato, cabe a ela exigir o direito de resposta previsto na lei 13.188/2015? Ou enviar notificação extrajudicial exigindo a remoção ou retificação do conteúdo inverídico? Isso tendo em mente que tais medidas podem minorar o alcance de referida notícia. Aqui se está diante de hipótese em que ocorre o agravamento do dano-prejuízo posteriormente ao dano-evento pelos efeitos continuados da lesão existencial, sendo que a vítima poderia, pelo menos, tentar minorar-lhe as consequências, mesmo que não se possa apagar a lesão originária.6
Exemplo da terceira situação: a vítima é alvo de atropelamento e sofre apenas ferimento na perna, mas deixa de tratar a ferida. Sucede então grave infecção, a demandar a amputação do membro lesionado. Com efeito, a vítima poderia ter tratado a ferida sem se submeter à intervenção cirúrgica, sendo também certo que o dano-prejuízo de índole moral pelas escoriações decorrentes do atropelamento difere substancialmente do dano-prejuízo em caso de amputação de membro. A segunda situação é muito mais gravosa, exigindo condenação maior. Houve, pela conduta omissiva da vítima, a ampliação da lesão inicial, com a consequente alteração do quadro reparatório originário, ao qual estaria adstrita a responsabilidade do ofensor.
Nesses três cenários, pelo menos intuitivamente, a mitigação poderá incidir acaso a vítima venha pleitear indenização por dano moral: i) pela perda da chance de participar do concurso; ii) pela divulgação da notícia inverídica durante certo lapso de tempo; e iii) pela amputação do membro. Sua efetiva incidência, todavia, será decidida apenas no caso concreto, em que será preciso considerar as reais possibilidades de mitigar o prejuízo.
Longe de esgotar a temática, percebe-se que sim, é possível falar em mitigação de danos morais, mas ainda é necessário desenvolvimento teórico mais verticalizado.
*João Pedro K. F. de Natividade é advogado e mestre em direito das relações sociais pela UFPR.
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1 Por todos: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Responsabilidade Civil & Mitigação de Prejuízos: a resposta do lesado ao evento lesivo e seus efeitos sobre a reparação de danos patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2020; DIAS, Daniel. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
2 A propósito: "(...) o lesado que, convenientemente, posterga a dedução de sua pretensão em juízo, com vistas à majoração do benefício econômico que da condenação lhe pode advir, finda por se esquivar dos deveres de boa-fé impostos a todos e a qualquer um." ARNT RAMOS, André Luiz. Doctrine of mitigation, culpa concorrente e responsabilidade civil por dano moral: a súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça e o direito civil contemporâneo. In: PEREIRA, Gabriel Bittencourt; SILVEIRA, Robson Luiz Schiestl; BRUNETTO, Caroline Araujo (Coords.). Temas atuais e relevantes da responsabilidade civil. Curitiba: Instituto Memória, 2015 v.2. p. 31.
3 Por exemplo, o art. 206 §3º inc. V prevê prazo prescricional de três anos para o exercício da pretensão de reparação civil, em contraste ao limite vintenário previsto no CC-16.
4 Clique aqui.
5 FLUMIGNAN, Silvano José. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
6 Em seu art. 2º, §3º, a lei inclusive 13.188/2015 ressalva que a retratação ou retificação espontânea, ainda que com o mesmo destaque, publicidade e periodicidade da publicação original, não exclui a ação de reparação por dano moral. Mas certamente a dimensão dano-prejuízo – sua quantificação – será minorada.