Migalhas de Responsabilidade Civil

A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil

A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil.

19/8/2021

Foi bastante divulgada no início deste mês campanha publicitária em que o ex-jogador de futebol Zico é surpreendido no gramado do Maracanã por uma mensagem de voz de seu pai, José Antunes Coimbra, já falecido, que lhe pedia mais um gol, pois nunca tivera a oportunidade de vê-lo ao vivo no estádio.1 A cena, que emocionou não apenas o Galinho de Quintino, mas milhares de pessoas, lança luzes a uma questão sensível que tem desafiado a civilística: a reconstrução digital da imagem e da voz a partir de ferramentas tecnológicas, especialmente da Inteligência Artificial, e os possíveis impactos para os direitos da personalidade e para a Responsabilidade Civil.

O caso de Zico foi fruto de parceria entre o Mercado Livre, patrocinador do Flamengo, com a Soundthinkers, que, se valendo de um vídeo do arquivo pessoal do ex-jogador e de um sistema de síntese neural (técnica de Inteligência Artificial), conseguiu produzir um "dicionário de voz personalizado e um novo texto com fala digitalizada"2, capazes de recriar com fidedignidade a voz de José Coimbra, falecido no ano de 1986.

O episódio não constitui, contudo, novidade. A reconstrução digital da imagem e da voz de pessoas falecidas já foi utilizada diversas vezes pelo cinema e a cada dia mais vem sendo feita por pessoas comuns, que têm criado por meio de aplicativos de celular as chamadas deepfakes, cuja influência para fins antidemocráticos tem sido ressaltada, apesar da larga utilização no humor. Exemplos deste emprego podem ser colhidos do popular perfil no Instagram de Bruno Sartori (@brunnosarttori), que faz diversas vídeo-montagens satíricas com políticos, recriando não apenas a imagem, mas, recentemente, também a voz. A diferença aqui, como pontuado em outra sede, é que as reconstruções humorísticas são de fácil constatação por quem as assiste.3

Bobby Chesney e Danielle Citron descrevem as deepfakes como "a manipulação digital de som, imagens ou vídeo para imitar alguém ou fazer parecer que a pessoa fez alguma coisa – e fazer isso de uma maneira que seja cada vez mais realística, a ponto de um observador desavisado não conseguir detectar a falsificação".4 Exemplo notório no Brasil desta utilização para fins antidemocráticos foi o caso do atual governador de São Paulo, João Dória, que, às vésperas das eleições do ano de 2018, foi vinculado a um vídeo em que supostamente participava de orgia com algumas mulheres. Peritos teriam constatado se tratar de uma deepfake,5 criada para abalar a imagem e a honra do governador em meio à acirrada disputa eleitoral, já que somente com perícia era possível detectar a montagem.

A possibilidade de recriar digitalmente a imagem de uma pessoa e suas projeções, como a voz, após sua morte também traz inúmeros desafios para a tutela dos direitos da personalidade, em especial do direito à imagem. Como se teve a oportunidade de afirmar em outra sede, a disrupção provocada por esse avanço tecnológico reside, sobretudo, no fato de que "a nova retratação gera imagens inéditas, não consentidas pelo retratado. É a imortalidade do ineditismo."6 Dito de outra forma: a menos que tenha havido previsão expressa em vida em relação à possibilidade de recriação póstuma – o que é relativamente comum na indústria cinematográfica de Hollywood –, o falecido jamais terá consentido para aquela recriação, que constitui imagem inédita, produzida a partir de técnicas artificiais. Seria este um óbice intransponível?

Como se analisou em artigo dedicado ao tema, afigura-se possível pensar em alguns parâmetros, quais sejam: "(i) a previsão expressa em contrato em vida e autorização da família, (ii) a finalidade da recriação da imagem e (iii) a adequação da imagem criada post mortem à imagem-atributo construída em vida pela pessoa."7 Tais parâmetros poderiam atuar como standards não absolutos, a serem sopesados diante das especificidades do caso concreto.

Aplicando-os à campanha envolvendo o pai de Zico, como não houve qualquer vedação em vida à recriação e, ao que tudo indica, os vídeos de que se extraiu a voz foram fornecidos com o consentimento dos herdeiros, o primeiro parâmetro estaria satisfeito. Em sequência, a finalidade de prestar homenagem ao filho, em princípio, não seria óbice. No entanto, o fato de a homenagem estar associada a uma utilização para fins lucrativos por parte da criadora da campanha publicitária poderia ser um ponto a ser levantado caso não houvesse concordância entre os herdeiros. Finalmente, não houve qualquer violação à imagem-atributo do falecido, o que, em tese, confirmaria a legalidade desta recriação específica.

Resta discutir, no entanto, os impactos para a Responsabilidade Civil de recriações feitas sem o consentimento dos herdeiros. Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 20 do Código Civil habilita o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes a requererem a proteção da imagem do de cujus, pleiteando não apenas a cessação da divulgação como, eventualmente, até mesmo a reparação prevista no caput do artigo 12, que, neste caso, a rigor, tem fundamento em direito dos próprios herdeiros, já que a personalidade se extingue com a morte.8

Aqui, todavia, a questão não é tão simples. Se por um lado eventual recriação digital para fins de utilização comercial parece ser tendencialmente proibida, o que dizer do emprego para finalidades não lucrativas e que possam ter, por exemplo, caráter educativo? Seria possível permitir a recriação digital da imagem de famosa pintora, como Tarsila do Amaral, a fim de que explicasse por meio de um avatar para frequentadores de um museu as técnicas utilizadas para pintar uma de suas telas, como Abaporu? Nesse caso, teriam os herdeiros direito a pleitear a cessação da utilização de sua imagem e a eventual indenização? Ainda que se reconhecesse o direito a cessar a exibição, restaria configurada lesão apta a demandar reparação civil? Hipóteses como essa reforçam a necessidade de se testar, caso a caso, os parâmetros apresentados anteriormente, sempre à luz da escala de valores do ordenamento.

É de se cogitar, ainda, no caso de explorações comerciais não autorizadas, a aplicação de mecanismos como o lucro da intervenção, a exemplo do precedente do STJ referente à ação movida pela atriz Giovanna Antonelli e julgada no Recurso Especial nº 1.698.701 – RJ, de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, por meio do qual a atriz pleiteava ressarcimento em razão do uso não autorizado de sua imagem para campanha publicitária de uma farmácia de manipulação.9 Como ressaltado, a indenização aqui não foi justificada apenas pela "violação a atributos morais da imagem, mas, também, a partir do enriquecimento proporcionado à indústria de cosméticos que se valeu da imagem da atriz para auferir lucros."10 Dito diversamente, o aspecto patrimonial de sua imagem também foi indenizado, a bem da eficácia do princípio da reparação integral.11

Seja como for, os exemplos analisados revelam que, se por um lado a tecnologia, em especial a Inteligência Artificial, tem permitido assegurar de algum modo a imortalidade de pessoas queridas, por outro tem criado complexas questões para o Direito, que demandam do intérprete soluções cada vez mais criativas diante da insuficiência da legislação que, como observado no caso do pai de Zico, não vislumbrava que o ineditismo de uma imagem pudesse se tornar imortal.

*Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (graduação, mestrado e doutorado). Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). Membro da Comissão de Direito Civil da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ), do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e do Comitê Brasileiro da Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française (AHC-Brasil). Sócio fundador de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Advogados.

**Filipe Medon é doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de cursos de Pós-Graduação do Instituto New Law, PUC-Rio, CEPED-UERJ, EMERJ, ESA-OAB, CERS, FMP e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Pesquisador em Gustavo Tepedino Advogados. Advogado. Instagram: @filipe.medon.

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1 O vídeo pode ser visto aqui.

2 SANTA ROSA, Giovanni. Mercado Livre recria voz do pai de Zico usando inteligência artificial. In: Tecnoblog, 04 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em 15 ago. 2021.

3 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; NERY, Maria Carla Moutinho. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade no humor. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (coords.). Liberdade de Expressão e Relações Privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 228.

4 No original: "digital manipulation of sound, images, or video to impersonate someone or make it appear that a person did something — and to do so in a manner that is increasingly realistic, to the point that the unaided observer cannot detect the fake." (CHESNEY, Bobby; CITRON, Danielle. Deep Fakes: A Looming Crisis for National Security, Democracy and Privacy?, LAWFARE (Feb. 21, 2018), Disponível aqui. Acesso em 09 mar. 2019).

5 Peritos constataram montagem em vídeo vazado, afirma Doria. In: Folha de São Paulo, 24 out. 2018. Disponível aqui. Acesso em 09 jul. 2020.

6 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 267.

7 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 269.

8 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Pandemia e responsabilidade: a pessoa no centro do tabuleiro (Editorial). Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 3, p. VIII, set./dez. 2020.

9 Sobre o tema, é válida a referência ao Webinar IBERC #25 | Responsabilidade civil e enriquecimento injustificado, que se encontra disponível aqui.

10 MEDON, Filipe. O direito à imagem na era das deepfakes. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 27, p. 251-277, jan./mar. 2021, p. 265.

11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.