Pode-se dizer que a reparação pelos chamados danos morais é um dos temas mais frequentes no Judiciário brasileiro. A título de exemplo, a simples pesquisa pela expressão no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul remete a mais de 450 mil processos entre os anos de 2021 e 1965.
O estudo do tema apresenta complexidades desde o seu começo com a difícil tarefa de conceituação. Essa dificuldade se reflete no maior obstáculo enfrentado pelos magistrados, advogados e acadêmicos, atribuir, de modo fundamentado, um valor adequado à lesão de âmbito moral.
Em busca de uma solução, alguns países (como Reino Unido e Itália) adotaram diferentes sistemas de tabelamento. O tema é de especial interesse, haja vista os dois anos de estudo no mestrado dedicados à temática que, posteriormente, fora publicado em formato de livro1.
Ao contrário do que se pode pensar, o tabelamento do dano moral não é uma novidade no ordenamento jurídico pátrio. Neste ponto, ao contrário do caminho de prosperidade seguido pela técnica tabelar adotada no direito italiano, no Brasil, ao longo das décadas, todas as tentativas de se estabelecer uma espécie de tabelamento foram refutadas seja pela doutrina, seja pela jurisprudência. Sendo que, um dos principais motivos para essa rejeição é que em basicamente todas as propostas, inclusive na mais recente (com o art. 223-G da CLT), tentou-se fixar um limite ao valor que a indenização poderia alcançar.
Critica-se que, até então, todas as tentativas brasileiras partiram do Poder Legislativo. Já na Itália, a título elucidativo, a iniciativa partiu dos chamados Observatórios de Justiça (um rol de estudiosos formado por advogados, juízes, médicos-legistas e professores universitários), uma espécie de grupo vinculado ao Tribunal de cada região. Esse pequeno, mas não tanto, detalhe fez toda diferença.
O sucesso da técnica italiana passa pelo fato de que os sujeitos responsáveis pelo seu desenvolvimento foram e ainda são (considerando a constante evolução) todos indivíduos com formação jurídica, anos de estudos e dedicação sobre o tema.
Nesse sentido, muito relevante a notícia sobre a ferramenta que vem sendo desenvolvida pela Comissão de Inovação do TJRS (INOVAJUS) e pela Escola Superior da Magistratura da AJURIS, em parceria com a PUCRS. A ferramenta chamada Tabela de Parâmetros do Dano Moral, utilizada há cerca de 6 meses pelos Juízes e Desembargadores gaúchos, representa um novo capítulo na temática.
Atenta-se que, pela primeira vez, no Brasil, a iniciativa para desenvolver o tema do tabelamento do dano moral partiu de um grupo de julgadores, ou seja, pessoas que diariamente lidam com o tema e se deparam com as dificuldades que ele apresenta. Algo mais próximo do que ocorreu na Itália.
Interessante destacar o início do tema na Itália que, curiosamente, não se deu em virtude do dano moral, mas sim por conta de outro dano extrapatrimonial, o dano biológico. A mesma dificuldade que hoje enfrentamos ao tentar mensurar o dano moral os juristas italianos enfrentaram quanto ao biológico.
Isso não significa que, em países conhecidos por adotarem tabelas orientativas, como o caso da Itália e Inglaterra, o tema seja tratado como resolvido. Pelo contrário, em ambos os países a matéria segue sendo objeto de debates, discussões e atualizações.
Em busca de uma solução para tal dificuldade, na Itália, no começo dos anos noventa, os membros dos Observatórios de Justiças de alguns Tribunais elaboraram as primeiras tabelas. Maior destaque se deve ao instrumento desenvolvido pelo Observatório do Tribunal de Milão, que hoje é adotada inclusive pela Corte de Cassação.
Inicialmente desenvolvido para o cálculo do dano biológico, o instrumento ganhou tamanha relevância que, com julgamento n. 394, seção III, de 2 de janeiro de 2007, a Corte de Cassação adotou a posição de que a sua utilidade também abrangeria o cálculo dos danos morais.
Ainda que seja intitulada de "tabela", a técnica não se restringe a um aglomerado de linhas e colunas preenchidas por números. Em especial a tabela milanesa apresenta uma série de detalhamentos e explicações acerca de diferentes situações que podem ensejar o dano moral. Assim, tem-se uma harmonia entre valores de condenações anteriores, indicadores gráficos a serem considerados conforme a idade, o gênero e outras características da vítima, bem como orientações de como identificar os graus de gravidade de diferentes espécies de ofensas (como, por exemplo, uma parte própria destinada ao estudo do dano moral decorrente da difamação via imprensa).
Percebe-se que o instrumento estrangeiro é incomparável ao que havia sido proposto até então no Brasil a título de tabelamento de danos. Até porque, na Itália os Magistrados não estão vinculados ao uso da tabela, não há uma lei que imponha a sua adoção, esta consiste apenas numa ferramenta que está disponível, que pode ou não ser utilizada.
Soma-se a isso a inexistência de um valor teto atribuído à indenização, ou seja, o valor máximo estabelecido na tabela não consiste em algo intransponível, podendo o julgador, no caso concreto, romper esta barreira com a devida fundamentação. Como visto, as tentativas brasileiras não apresentavam tal possibilidade.
Por esse cenário que é possível ter certo nível de otimismo com o que vem sendo desenvolvido no âmbito do Tribunal de Justiça gaúcho, pois pela primeira vez a iniciativa não parte do legislativo, mas sim de quem enfrenta diariamente os obstáculos da matéria. Um dos responsáveis pelo projeto é o Desembargador e Professor Eugênio Facchini Neto, reconhecido nacionalmente pelo seu estudo no âmbito do Direito Comparado e da responsabilidade civil.
Ao relatar a construção da ferramenta, em artigo publicado no final de 20202, o Desembargador menciona uma situação que há anos é objeto de crítica, o costume brasileiro de nomear como dano moral todo e qualquer dano não patrimonial. Por conta disso, ao realizarem a pesquisa dos acórdãos que comporiam a ferramenta, o termo pesquisado foi "dano moral", a despeito de se tratar muitas vezes de dano estético, biológico ou qualquer outra espécie do gênero dano não patrimonial.
Uma mudança de cultura não ocorre de imediato, custa tempo e esforço daqueles que desejam implementá-la. Aqui, registra-se mais uma vez a crítica a esse tratamento equivocado feito por boa parte dos operadores do direito no país. A matéria dos danos não patrimoniais é vastíssima, composta por diferentes espécies merecedoras de estudos individualizados. Nesse cenário, indaga-se, não em tom de crítica, mas sim de sugestão, se a nomenclatura mais adequada à ferramenta não seria "tabela de parâmetros dos danos não patrimoniais", haja vista que, não apenas a valoração do dano moral é um desafio, como também do dano estético, biológico e de qualquer outro que não esteja limitado ao âmbito patrimonial.
Ainda é cedo para avaliar a efetividade da ferramenta. O que se sabe é que ela visa fornecer uma completa rede de precedentes a fim de orientar os magistrados na valoração do quantum indenizatório, nas palavras do presidente da INOVAJUS. Algo muito parecido com a primeira fase do Método Bifásico de valoração do dano moral desenvolvido pelo Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino.
Essa etapa inicial tem como marco momento anterior ao recebimento da demanda. A sugestão do autor é de que os Tribunais desenvolvessem grupos de julgamentos com casos semelhantes, uma espécie de banco de dados de precedentes (por isso a proximidade à ferramenta do TJRS). Infelizmente, a aplicação do método restou limitada ao âmbito do STJ, não recebendo a adoção desejada pelos julgadores de primeiro e segundo graus.
A despeito da semelhança, parece que a ferramenta representa uma evolução da primeira fase do método proposto pelo Ministro. Em primeiro lugar, por representar um instrumento concreto e não uma ideia orientativa. Não se busca aqui criticar o Método Bifásico (cujo desenvolvimento também deve ser reconhecido como um marco na temática no âmbito nacional), mas sim demonstrar que o tema segue em constante evolução.
Em segundo, pelo fato de que concentra mais de 1500 decisões (número que certamente crescerá com o tempo), com indicações de valores. Não se trata de uma simples ferramenta de busca (isso os próprios sites dos Tribunais já fornecem). Há uma orientação de valor mínimo, médio e máximo extraído dos julgados relacionados a cada ponto da matéria.
Tal como ocorre hoje com a tabela milanesa, a ferramenta da justiça gaúcha poderá se desenvolver a ponto de apresentar conteúdo complementar aos valores e julgados. Seria interessante termos no mesmo instrumento os valores recomendados (com base nos julgados anteriores) e esclarecimentos sobre as espécies de danos ali referidas. Enfim, um detalhamento que certamente auxiliaria os magistrados que em todo processo decisório envolvendo os danos não patrimoniais.
De certo, um dos primeiros efeitos a serem notados deverá ser a redução nas sentenças de casos similares com valores extremamente desconexos. Espera-se que, num momento não tão distante, o acesso à ferramenta não seja mais restrito aos Membros do Tribunal e seus assessores.
Assim como ocorre na Itália com as tabelas, deve-se dar acesso a todos os operadores do direito. Com isso, além de se permitir que os magistrados possuam melhor embasamento na tomada de decisões, também se viabilizará que os advogados elaborem petições mais objetivas e adequadamente fundamentadas. Possibilitando haver uma certa previsibilidade ou noção mínima para se analisar a situação antes mesmo de ingressar com a ação indenizatória.
Questiona-se até que ponto essa iniciativa do Tribunal gaúcho será um fator de inspiração a outros órgãos ou será um fato isolado. Espera-se que, assim como houve o desencadeamento de um movimento entre os Tribunais italianos, inspire outros estudiosos do tema, outros tribunais a desenvolverem ferramentas nessa linha para que, quem sabe mais a frente a tarefa de quantificar o dano moral não seja tão obscura e repleta de subjetivismo.
*Lucas Girardello Faccio é mestre em Direito pela PUC/RS. Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor de Direito Civil. Advogado.
__________
1 Esse estudo resultou na minha primeira obra publicada pela Editora Fi. A versão digital pode ser acessada aqui.
2 O uso da tecnologia para o arbitramento de danos morais: a recente inovação gaúcha.