Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade patronal sobre o assédio moral digital

Responsabilidade patronal sobre o assédio moral digital.

29/7/2021

Os meios virtuais são uma realidade. Com o acesso facilitado às informações por utilização da internet, novos problemas surgiram e carecem de uma efetiva tutela jurídica, tal qual ocorre com o fenômeno do cyberbullying (assédio moral virtual). Há ferramentas jurídicas no sistema que permitem aplicar sanções aos agressores virtuais (justa causa na esfera trabalhista, indenização na esfera judicial e crime na esfera penal).

Caracteriza-se o assédio moral virtual ou digital como uma ação repetitiva e prolongada, dentro do ambiente eletrônico (WhatsApp, e-mails, plataformas digitais), capaz de expor a vítima a situações constrangedoras. Trata-se de um desdobramento do conceito de assédio moral. Diante do assédio on-line, o trabalhador pode se sentir amedrontado e envergonhado. Isso pode gerar problemas psicológicos capazes de afetar a sua vida pessoal e profissional.

O Assédio Moral Digital (cyberbullying) foi precipitado pelo Direito Emergencial do Trabalho: COVID-19 e necessidade de isolamento social, home-office como realidade para os trabalhadores manterem seu emprego e renda (Medida Provisória nº 1046/2021, que instituiu a possibilidade de home office a critério da necessidade das empresas) – tornando o trabalho digital uma realidade mundial, entre outras medidas.

Nesta coluna, refletindo-se sobre a "Responsabilidade parental em tempos digitais", Ana Cristina de Melo Silveira já alertava para o fato de que "com a era digital, o bullying tradicional se tornou mais complexo, com potencial ainda maior de atingir diversas esferas da personalidade de crianças e adolescentes. O Cyberbullying pode acontecer por meio do anonimato, ainda, dificulta a reação da vítima, deixa registros indeléveis no espaço sem fronteiras do mundo digital, podendo atingir um número potencialmente maior de expectadores. Em alguns casos, leva à automutilação e ao suicídio."1

Nesse cenário, o cyberbullying é um tipo de violência contra uma pessoa praticada através da internet ou de outras tecnologias relacionadas (meios virtuais). Praticar cyberbullying significa usar o espaço virtual para intimidar e hostilizar uma pessoa (colegas de escola, professores, chefes, subordinados, colegas de mesma hierarquia ou mesmo pessoas desconhecidas), difamando, insultando ou atacando covardemente.

O cyberbullying nada mais é do que bullying praticado por meio de novas tecnologias. No entanto, a análise mais profunda do tema, evidenciará que ele pode se configurar como mais gravoso, perpetuando a situação de vitimização em virtude das configurações do espaço virtual, que permite o livre e simultâneo fluxo das informações, o que faz com que as notícias e informações se propaguem muito rapidamente, alcançando um número indefinido de internautas. Significa dizer, de outro modo, que se perde o controle sobre as informações postadas, podendo qualquer usuário da internet  armazenar esse conteúdo, como disseminá-lo entre outras pessoas. É o assédio moral virtual, muito comum nas relações de trabalho, em que algum colega quer se vingar de alguém que se destaca no serviço, na empresa.2

Nesse sentido, o uso de meios digitais de comunicação no trabalho remoto emergencial (WhatsApp, Telegram, Reuniões Virtuais, enfim, uso das mais variadas plataformas digitais), facilita a propagação mais rápida do assédio moral digital – cyberbullying (mais pessoas são atingidas em menor e mais veloz espaço de tempo em comparação com o assédio moral tradicional que até então tínhamos como fonte de consulta e debate). A própria linguagem é mais coloquial nos meios digitais, o que facilita até mesmo um duplo sentido de uma determinada ordem dada pelo empregador ou superior hierárquico, facilitando o abuso de poder consagrado no art. 187 do Código Civil Brasileiro.

Na jurisprudência, já é possível localizar casos envolvendo o assédio moral digital/ virtual (cyberbullying). Nesse sentido, a Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou recurso da Almaviva do Brasil Telemarketing e Informática Ltda. contra a condenação ao pagamento de indenização a uma supervisora de atendimento de Guarulhos (SP) em razão da conduta assediadora dos gestores em grupo de WhatsApp. As situações vexatórias incluíam a cobrança de retorno do banheiro, com a exposição dos empregados aos demais participantes do grupo.

Na reclamação trabalhista, a supervisora disse que, desde o início do contrato, era obrigada a permanecer em grupos de WhatsApp administrados pelos gestores, em que eram expostos os resultados e os nomes de quem não alcançava as metas semanais e divulgadas falhas como pausa, faltas e atrasos. Como supervisora, ela também era chamada a atenção nos grupos.

Para o relator do recurso de revista da Almaviva, ministro Alberto Bresciani, a sujeição da empregada à humilhação por seu superior hierárquico compromete a sua imagem perante os colegas de trabalho e desenvolve, presumidamente, sentimento negativo de incapacidade profissional. O ministro observou que, nessa circunstância, o dano moral não exige prova para sua caracterização, bastando a demonstração do fato que revele a violação do direito de personalidade para originar o dever de indenizar. No caso, ficaram evidenciados, na decisão do TRT, o dano, o nexo causal e a culpa da empregadora (Processo: RRAg-1001303-33.2018.5.02.03210 – publicação em 18/09/2020).

Por outro lado, garantir um meio ambiente de trabalho equilibrado, sadio, é condição sine qua non para que haja respeito à dignidade do trabalhador3, evitando condutas desrespeitosas no trabalho. Dessa forma, estará a empresa4 agindo de forma responsável, ética, evitando futuras condenações contra si mesma por danos morais propostas por seus ex-empregados, seja por assédio moral presencial, seja por assédio moral virtual.5 Assim, percebe-se que além de ser um dever da empresa evitar a prática do assédio moral na empresa, quer seja ele presencial, quer seja virtual (cyberbullying), deve ela também promover ações de inclusão de grupo vulneráveis (deficientes físicos, portadores de HIV/AIDS, entre outros). Nessa medida, a ISO 26000 – Diretrizes sobre Responsabilidade Social – recomenda reconhecer a diversidade dos seres humanos como fonte de riqueza para a organização do trabalho. Assim, além de evitar possíveis indenizações por danos morais, a empresa passa a ser promotora da dignidade da pessoa humana no que essa tem de mais sagrado: o trabalho, direito fundamental social previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988, dever do Estado em relação aos seus súditos.6

Os danos indenizáveis podem ser patrimoniais ou extrapatrimoniais. Nesta última categoria, em especial das lesões oriundas da prática de cyberbullying no ambiente laboral, destacam-se os danos morais puros e os danos existenciais.

No que tange ao dano existencial, observe-se que “consiste em espécie de dano extrapatrimonial cuja principal característica é a frustração do projeto de vida pessoal do trabalhador, impedindo a sua efetiva integração à sociedade, limitando a vida do trabalhador fora do ambiente de trabalho e o seu pleno desenvolvimento como ser humano, em decorrência da conduta ilícita do empregador”. (TST - Recurso de Revista (RR) 10347420145150002- Publicação em 13/11/2015).

Diante disso, exige-se das autoridades julgadoras atuações cooperativas7 a fim de se otimizar a concretização das normas constitucionais, e, em particular, dos direitos fundamentais. Todo direito é constitucional, isto é, deve ser lido e interpretado através dos preceitos constitucionais. Nessa linha, fato inexorável é que a atividade judicial é, por excelência, interpretativa. Porém, inarredável também a realidade de que todos os atores que militam no mundo jurídico participam dessa tarefa e também contribuem para esse mister hermenêutico.

Por fim, registre-se que no artigo "Bullying e responsabilidade civil" publicado neste site em 2011, o professor Adriano Ferriani já advertia que "o fato é que o problema do bullying, presencial ou digital, existente no mundo inteiro, precisa ser rigidamente combatido."8 Fundamental que se incentive, no ambiente laboral, nas atividades prestadas nas dependências da empresa ou em homeoffice, a adoção de programas de educação e prevenção de danos praticados em meio digital muito antes de se procurar compensar pecuniariamente a lesão a um direito da personalidade, o que, por diversas oportunidades, revela-se incompensável. Sem falar na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/2018), que prevê pesadas sanções aos empregadores (controladores) que não fizerem o devido tratamento dos dados pessoais sensíveis de seus empregados (origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico). Sem dúvida alguma, a LGPD traz nova responsabilidade às empresas, podendo acarretar uma indústria de indenizações por danos morais na Justiça do Trabalho pela inadequada armazenagem, por exemplo, de dados pessoais sensíveis de seus empregados. 

*Liane Tabarelli é doutora em Direito pela PUC-RS com doutorado sanduíche na Universidade de Coimbra - PT. Mestre em Direito pela UNISC. Pesquisadora. Professora. Advogada e Consultora. Autora de obras e artigos jurídicos. Associada do IBERC.

**Rodrigo Wasem Galia é pós-Doutor em Direito pela PUC-RS. Doutor em Direito pela PUC-RS. Mestre em Direito pela PUC-RS. Pesquisador. Professor Federal nas áreas de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. Avaliador do INEP/MEC na autorização de novos cursos de Direito no Brasil. Palestrante. Autor e co-autor de Diversas Obras Jurídicas. Diretor Científico da Comissão de Direito do Trabalho da ABA (Associação Brasileira de Advogados) na Região do RS.

__________

1 Disponível aqui. Acesso em 21 jul. 2021.

2 RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado – atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019.

3 Nesse sentido: "A norma constitucional inserida no artigo 170 determina que a ordem econômica deve assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, devendo, pois, buscar um equilíbrio entre esses fundamentos, conquistando, assim, a dita justiça social, sem olvidar de um de seus princípios, qual seja a busca do pleno emprego. Assim, resta claro que a dignidade da pessoa do trabalhador constitui uma das finalidades principais da ordem econômica, devendo tal princípio ser informador da própria organização do trabalho". RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado – atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019.

4 "A livre iniciativa, pois, deve ser compatibilizada à valorização do trabalho humano, devendo o aplicador do direito buscar um equilíbrio entre os bens constitucionalmente tutelados, diante do caso concreto, aplicando a ponderação entre os ditos valores, sem, jamais, olvidar dos direitos fundamentais do trabalhador." SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direitos fundamentais e o contrato de trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 24. No que se refere ao dever de ressarcir (independentemente de dispensa por justa causa do colega assediador e imposição de dever indenizatório ao mesmo), veja-se que os artigos 932, III c/c 933, ambos do CC/02 estabelecem a responsabilidade civil objetiva do empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.

5 Nesse ponto, veja-se que o art. 223-E da CLT, após a Reforma, prescreve que "são responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão". Ademais, o art. 223-G da CLT estabelece parâmetros para auxiliar o julgador na fixação do quantum indenizatório nesses casos, tendo em vista que a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física, ou seja, o trabalhador, consoante art. 223-C da CLT.

6 RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral e Cyberbullying no trabalho: O Abuso do Poder Diretivo do Empregador e a Responsabilidade Civil pelos Danos Causados ao Empregado – atuação do Ministério Público do Trabalho. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019. Nessa esteira: "Fato é que todas as províncias jurídicas devem conformidade e obediência ao Estatuto Fundamental. Assim, o respeito à Constituição, fonte normativa suprema, garante estabilidade e coerência a todo o tecido normativo brasileiro, em especial ao promover a axiologia decorrente das opções político-jurídicas do legislador constituinte. Essa conformação constitucional é exigível de todas as normas que compõem o ordenamento, ainda quando vinculem unicamente interesses privados". TABARELLI, Liane. Contratos agrários e sustentabilidade ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

7 Lembre-se que, por exemplo, com a adoção do Princípio da Cooperação no art. 6º, CPC/2015 para que exercício do direito constitucional disposto no art. 5º LV, CF/88 (contraditório e ampla defesa) seja pleno e efetivo, exige-se do julgador condução proativa do feito, estimulando e facilitando o auxílio mútuo entre todos os envolvidos na relação jurídica processual para que, ao fim e ao cabo, consiga-se se obter uma prestação jurisdicional eficiente num prazo razoável. Foi exatamente em homenagem à composição amigável dos conflitos entre os litigantes e a duração razoável dos feitos em juízo (art. 5º, LXXVIII, CF/88), entre outros motivos, que o legislador processual civil de 2015 previu a implantação da audiência do art. 334 na lei 13.105.

8 Disponível aqui. Acesso em 21 jul. 2021. 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.