Diante da colação de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça, em face da aplicação do artigo 12 do Código Civil brasileiro, em especial da apreciação da legitimidade atribuída aos herdeiros do falecido para a defesa dos seus interesses após a morte, a doutrina se sente provocada a descrever os principais posicionamentos relativos à interpretação da norma jurídica e realizar críticas sobre as suas disposições e como os Tribunais vêm aplicando o direito ao caso em concreto.
O Código Civil brasileiro em seu artigo 6º declara que a existência da pessoa natural termina com a morte, e consequentemente a sua personalidade civil se encerra, deixando a pessoa de ser sujeito de direitos e obrigações.
Por sua vez, apesar da morte, o corpo da pessoa, a sua imagem e a sua memória podem influir no curso social e perdurar no mundo das relações jurídicas, mesmo que o seu titular não seja mais sujeito de direitos, merecendo uma proteção jurídica autônoma.1
Visando dar efetiva proteção aos bens da personalidade do morto, os quais se estendem após a sua morte, o Código Civil brasileiro, no parágrafo único do artigo 12, dispõe sobre a tutela jurídica post-mortem da personalidade humana. Considerando que o corpo morto e sua memória necessitam do mesmo respeito à dignidade a qual era submetida à pessoa viva.
Assim, o presente trabalho delimita o estudo da tutela jurídica dos direitos da personalidade, após a morte, apontando o caminho que deve o interprete utilizar para a aplicação do direito e a solução dos conflitos.
A esse respeito poderíamos perguntar se é possível depois da morte que uma pessoa continue a ter direitos à honra, à imagem e à intimidade, uma vez que, com fundamento no artigo 6o do Código Civil brasileiro, com a morte extingue-se a personalidade.2
A postura de boa parte da doutrina é manter a ideia de que a pessoa morta não tem direitos, nem pode ser vítima de difamação, apesar de ser possível reclamar indenização por danos causados àqueles que tinham relacionamento com o falecido, e se sintam atingidos pelas ofensas.3
Mas, apesar de o morto não ter personalidade, nem mesmo ser sujeito de direitos, será que é justo atacar a dignidade de pessoa falecida?
Não é justo que se ataquem bens da personalidade de pessoa morta; por isso, os valores da personalidade humana, dignos de proteção, perduram muito mais além do que a sua personalidade civil; em respeito à pessoa do falecido, admite-se ao mesmo tempo em que a personalidade se extingue com a morte, que os familiares mais próximos possam defender os interesses perdurados do morto.
Desta forma, o Código Civil concede legitimidade aos herdeiros para proteger a memória do falecido, os quais podem exercer a tutela jurídica dos direitos da personalidade, independente da transmissão dos direitos em si mesmos, pois, a legitimação foi concebida de forma concorrente e independente da preferência imposta pela ordem de vocação hereditária, objetivamente para a defesa dos bens da personalidade do morto.
Nesse mesmo sentido, o disciplinamento legal trata de semelhante caso quando ocorre o ataque ao direito da personalidade ainda em vida, antes do falecimento, e a pessoa não pôde exercer o seu direito de ação.
Quando a lesão tem lugar antes do falecimento sem que o titular do direito tenha exercido as ações reconhecidas pela lei, pode o mesmo ser substituído em seu direito de ação pelos sucessores, segundo a ordem de vocação hereditária, como determina o art. 943 do Código Civil, que dispõe que o direito de exigir a reparação e a obrigação de prestá-la transmite-se com a herança.
Ora, neste caso não se trata da transmissão do direito da personalidade, mas sim da transmissão do direito de ação que protege os bens da personalidade, pois o dano evidentemente foi causado na esfera jurídica do autor da herança, não sendo a morte do titular do direito motivo justificável para excluir a responsabilidade civil do lesante.
Não há dúvidas de que se o dano foi provocado quando o titular do direito ainda estava vivo e este promoveu a competente ação processual civil, vindo a falecer logo em seguida, a transmissão do direito à reparação civil se faz presente, desde que os sucessores queiram continuar com o processo.
Contudo, quando a lesão ocorre em face da memória do morto, através de afirmações negativas quanto a sua honra e seu bom nome, surge uma grande discussão quanto à titularidade do direito subjetivo violado. O titular do direito violado é o próprio morto, em face de sua memória, ou aqueles parentes determinados pelo Código Civil, em face da relação de parentesco?
Com a morte e consequente extinção da personalidade, a pessoa deixa de ser sujeito de direitos e obrigações, daí a necessária discursão quanto à titularidade do bem jurídico violado, pois, a lesão é causada diretamente a honra e a memória do morto, discutindo-se se a mesma atinge os bens da personalidade do falecido, ou os bens da personalidade de seus familiares.
A resposta a esta indagação é objeto de várias ponderações e divergências.
O professor Menezes Cordeiro diante de polêmica discursão na academia portuguesa, enumera três posições possíveis, em face da divergência quanto à extinção ou não dos direitos da personalidade, com a morte do seu titular.4
A primeira delas, defendida pelo Professor Diogo Leite Campos, em suas Lições de Direitos da Personalidade, entende que a personalidade não se extinguiria (totalmente), contrariando disposição do Código Civil que determina a extinção da personalidade com a morte, empurrando a personalidade do morto para um momento posterior a sua própria morte.5
A segunda posição, defendida por José de Oliveira Ascensão, em sua Teoria Geral do Direito Civil, entende que a personalidade cessa com a morte, e que a proteção não se faz em face dos direitos da personalidade do morto, mais sim em face da memória do morto, que seria um bem autônomo.6
A terceira corrente defendida por Paulo Mota Pinto, declara que a tutela se faz aos vivos, e o que se protege são as pessoas enumeradas no Código Civil, afetadas pelas ofensas à memória do morto. Elas, as pessoas vivas, teriam direito próprio à indenização, pois, são as pessoas juridicamente protegidas e lesionadas.7
O Professor Menezes Cordeiro defende a terceira corrente, declarando que "a tutela post mortem é, na realidade, a proteção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos". No mesmo sentido entende o Professor Pedro Paes de Vasconcelos.8
Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que permite a extensão do direito à indenização pelos danos causados à pessoa do morto, a todos aqueles relacionados no art. 12 do Código Civil, atribuindo além da legitimidade de ação, o direito próprio de pedir indenização, independentemente de outros herdeiros, inclusive os necessários, mesmo que estes já tenham exercido os mesmos direitos e promovido a mesma ação.
Abro a divergência para sustentar, com elevado respeito ao Superior Tribunal de Justiça, principalmente, porque a matéria é polêmica, que a melhor doutrina é a do Professor José de Oliveira Ascensão, a qual demonstra que de fato aos familiares não é exigido que comprovem lesão à sua personalidade, vez que o que deve ser exigido e demonstrado é a lesão a memória do falecido.9
Caso houvesse a necessidade de provar a lesão à personalidade dos parentes, como seria produzida esta prova, vez que o bem jurídico violado foi a memória do morto? A aplicação do princípio in re ipsa, no caso, limita-se a demonstrar que o fato por si mesmo lesiona a memória e o respeito ao morto, não sendo possível estendê-lo aos seus parentes.
Como provar a lesão à dignidade dos parentes? Falar em presunção de dano em face dos parentes seria atribuir um caráter subjetivo ao dano, sem possibilidade de impugnação. Ou seja, entender que a lesão à memória do falecido causaria imediatamente uma lesão a honra dos seus parentes estenderia, por presunção, a lesão a um sem número de familiares, que se prolongaria até o quarto grau na ordem de sucessão, e que na maioria dos casos, nenhuma relação tem com o falecido.
Se a ofensa fosse praticada em vida, a pessoa do ofendido teria direito a uma única ação e os seus familiares nenhuma legitimidade teriam para pleitear uma indenização, mesmo que fossem afetadas pelas ofensas dirigidas ao seu parente. Em caso de morte posterior do ofendido, os familiares herdariam os valores da indenização, segundo a ordem de vocação hereditária, bem como, sucederiam no direito de ação, nos termos do artigo 943 do Código Civil.
Apesar de os herdeiros terem legitimidade para a propositura de ações visando à proteção pos-mortem dos bens da personalidade, nos termos do artigo 12 do Código Civil, não é possível atribuir a eles a titularidade do bem jurídico violado, pois não se exige a comprovação de dano a sua personalidade, mas sim a comprovação de lesão à memória do falecido.10
Indaga-se, porém, se a legitimidade atribuída aos herdeiros para a propositura de ações de indenização por danos causados à memória do morto possibilitaria tantas ações quantos fossem os herdeiros, ou uma única ação coletiva, ou promovida por um só dos herdeiros?
O art. 12, parágrafo único, do Código Civil não indica uma ordem sucessória preferencial, quando gradativamente o parente mais próximo exclua o mais remoto.
Porém, o melhor entendimento para essa questão é o de que existe um único direito à indenização, o qual beneficiará todos os sucessores, seguindo a ordem de vocação hereditária, mesmo que a ação tenha sido promovida por aquele que não é o herdeiro mais próximo.
No caso, o dano é causado a memória do morto. Os sucessores serão beneficiados com o valor pago a título de indenização; não há uma transmissão do direito da personalidade do morto para os seus sucessores, não sendo o herdeiro titular de um direito próprio de indenização, mas possuidor exclusivamente de uma legitimação processual para agir em defesa da memória do morto.
Assim, o valor atribuído na ação de indenização será partilhado entre os herdeiros legais, independente do fato de alguns deles não terem participado efetivamente da propositura da ação. Do contrário, teríamos um número infindável de ações, tantos fossem os herdeiros do morto.11
O dano post-mortem aos bens da personalidade é único e autoriza uma única ação, que pode ser promovida em conjunto por todos os herdeiros legitimados, por alguns deles, ou por um só herdeiro, e terá por objeto a indenização por dano causado à memória do morto, diante dos valores relativos aos direitos da personalidade que devem ser preservados com a sua morte.
A legitimação atribuída no artigo 12 do Código Civil não permite concluir que aquelas pessoas ali relacionadas sejam os titulares dos bens jurídicos da personalidade objeto de proteção.
São eles guardiões dos interesses do morto, em respeito à sua personalidade enquanto pessoa viva, estando autorizados a pleitearem indenização pecuniária nos limites do dano causado, e não em seu interesse próprio.
*Silvio Romero Beltrão é pós-doutor em Direito pela FDUL. Juiz de Direito. Professor adjunto da UFPE.
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1 SOUZA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 192.
2 SÁNCHEZ, Clemente Crevillén. Derechos de la personalidad: honor, intimidad personal y familiar y propia imagem en la jurisprudencia. Madri: Actualidade, 1995, p. 54.
3 SÁNCHEZ, op. cit., p. 55.
4 CORDEIRO, Menezes. Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral. Coimbra: Almedina, 2000, p. 514.
5 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 119.
6 Idem.
7 Idem, p. 120.
8 Idem.
9 ASCENSÃO, José de Oliveira. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Editora Coimbra, 1997, p. 90.
10 Idem.
11 SANTOS, Antônio Jeová. Dano moral indenizável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 485.