Seguindo o fluxo da constante normatização deontológica sobre o tema, em 15 de junho de 2021, foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU, Seção I, p. 60), a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 2.294/211, que aporta normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida e revoga a normativa antecessora, a Resolução CFM 2.168/172.
A norma atual manteve questões importantes e trouxe, também, aspectos positivos3, mas, por outro lado, conferiu disciplina acentuadamente controversa a determinados pontos4, o que tem demandado reflexões bioéticas e jurídicas, considerando os direitos dos sujeitos envolvidos - o paciente e o médico. A proposta, aqui, é uma prévia reflexão panorâmica sobre as mudanças trazidas pela Resolução, para a análise da dimensão de responsabilidade que possa envolver a doação anônima de gametas.
NOTAS PONTUAIS SOBRE AS MUDANÇAS TRAZIDAS PELA RESOLUÇÃO CFM 2.294/21
Uma análise prévia sobre as alterações trazidas pela Resolução CFM 2.294/21 deve partir da necessidade de que os comandos deontológicos coadunem as demais normas do ordenamento jurídico, em especial, as previstas na Constituição da República (como os direitos fundamentais) e, também, na legislação civil, (como os direitos da personalidade). A harmonização entre normas hierarquicamente distintas é um pressuposto fundamental à construção de uma tutela adequada.
A inexistência de legislação ordinária, emanada do poder legislativo brasileiro, que regulamente a utilização das técnicas de RA, corrobora, historicamente, o papel do CFM na regulamentação da temática, ainda que destinada estritamente às condutas dos profissionais que aplicam as técnicas. Um dos pontos fundamentais da regulamentação deontológica tem sido a medida de preservação das autonomias do paciente (e, mesmo, do médico) diante dos comandos normativos atuais.
A Reprodução Assistida, até a Resolução CFM 2.168/17, foi pontualmente concebida como mecanismo de auxílio aos problemas de reprodução humana, de forma a facilitar o processo de procriação (Item I.1). A Resolução CFM 2.294/21 excluiu a concepção restritiva, baseada na infertilidade física5, concebendo as técnicas como meios facilitadores do processo de procriação (item I.1). Tal concepção é concretizada na manutenção da ideia de que “é permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros” (Item II.2 da Resolução CFM 2.294/21), previsão que havia sido incluída na Resolução de 2017 em 2020.
Assim, é possível perceber que outras motivações, não relacionadas a impedimentos biológicos, também são capazes de fundamentar a demanda pelos procedimentos artificiais de reprodução - as motivações de ordem pessoal, como nos casos de mães ou pais solteiros, viúvos e casais homoafetivos, que não querem contrariar sua orientação sexual, apesar de férteis muitas vezes. Em situações como essa, as técnicas de procriação artificial são necessárias porque dependem de um terceiro doador de gametas e/ou gestante por substituição6.
Da leitura da exposição de motivos da Resolução CFM 2.294/21, é possível inferir a tentativa do Conselho em incorporar à norma deontológica, sob a perspectiva bioética, entendimentos científicos, decisões judiciais e posições jurídicas correlatas já reconhecidas e não antes previstas na norma7. Contudo, do ponto de vista biojurídico, acredita-se, ainda, na necessidade legislativa de avançar em prol da garantia de prerrogativas que contemplem a autonomia das decisões no que tange aos projetos parentais assistidos.
A Resolução nova propugna a diminuição das chances de gestações múltiplas, reconhecidas como de risco, com a restrição do número de embriões transferidos e a limitação da idade da receptora (item I.78 da Resolução CFM 2.294/21). Por outro lado, levando-se em conta a saúde reprodutiva e o êxito da técnica, houve a redução da idade do homem (de 50 para 45) e o aumento da idade da mulher (de 35 para 37) para doação de gametas (item IV.3 da Resolução CFM n.º 2.294/21).
A Resolução limitou, também, o número de embriões gerados em laboratório que, nos termos do item V.2 da Resolução CFM 2.294/21, não poderá exceder a 8 (oito). A justificativa apresentada na exposição de motivos para a limitação é a existência de muitos embriões excedentários congelados e abandonados nas clínicas, o que não coaduna posição já vigente no país sobre a natureza jurídica do embrião humano e entendimento científico até então firmado sobre as características do processo de fertilização laboratorial.
A RA é um processo complexo, sem possibilidade de cálculos precisos, que pressupõe o excedente embrionário como resultado da prática. A limitação do número de embriões gerados, sem a apresentação de uma justificativa científica, restringe o exercício dos direitos reprodutivos e da autonomia, na medida em que nem todos os embriões serão viáveis: uns não desenvolverão, outros podem apresentar questões genéticas e não serão transferidos e outros, ainda, serão implantados e não gerarão a gravidez. Deve-se depreender que a limitação do número de embriões gerados pode contribuir significativamente para o aumento do custo das técnicas de RA e atingir, também, a saúde reprodutiva e psicológica dos envolvidos, já que pode simbolizar a necessidade de realização de mais tentativas.
No item V.4, a Resolução CFM 2.294/21 exige autorização judicial para o descarte de embriões. Tal previsão não evidencia harmonia, de um lado, com a natureza jurídica do embrião extrauterino, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3510 em 2008; de outro lado, com a autonomia manifesta no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), exigido previamente para a realização da prática de RA. Tal previsão é um apelo injustificável à judicialização da relação. A submissão da decisão do descarte do excedente embrionário à autorização judicial contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que um embrião extracorpóreo não titulariza a condição de pessoa e evidencia uma série de questionamentos. Quanto tempo durará esse processo? Não seria mais um ônus emocional e financeiro aos envolvidos? Tal dispositivo seria válido para os descartes consentidos após a nova Resolução, permanecendo os anteriores como ato jurídico perfeito?
No campo da gestação de substituição ou cessão temporária de útero, o CFM trouxe a exigência, no item VII.1 da Resolução 2.294/21, de que a cedente temporária, além de pertencer à família de um dos parceiros usuários das técnicas de RA em parentesco consanguíneo até o quarto grau, deva ter ao menos um filho vivo. Qual é o fundamento científico para essa exigência? Seria um eventual conflito positivo de maternidade? Ocorre que a técnica é desenvolvida com a manifestação do consentimento por meio do TCLE, além do próprio contrato, onde deve estar claramente determinada a relação de maternidade.
Sobre a noção de consanguinidade no parentesco, há outra questão problemática, na medida que o Direito das Famílias atual é fundado no afeto e nas relações socioafetivas. Desse modo, o próprio item traz a possibilidade de que existem exceções que deverão ser avaliadas e autorizadas pelo Conselho Regional de Medicina.
Por fim, passa-se, em seguida, às questões concernentes ao item IV que versam sobre a doação de gametas e embriões.
DOAÇÃO DE GAMETAS À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO
Até a Resolução CFM 2.168/2017,9 a doação de gametas ou embriões para uso das técnicas de RA era admitida exclusivamente a título anônimo, ou seja, os doadores não podiam conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. Contudo, em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento 52, trazendo as regras para o registro de nascimento de crianças nascidas pelo uso das técnicas de RA, onde previu, no art. 2º, II, que o dito registro demandaria a apresentação de declaração do diretor técnico da clínica de RA, contendo o nome do doador ou da doadora, o registro de seus dados clínicos gerais, características fenotípicas e o nome dos beneficiários e das beneficiárias, dentre outros dados. Ademais, a norma, no §º do art. 2º, exigia a apresentação do TCLE de todas as partes via escritura pública. Tal posição colocava em discussão o anonimato da identidade civil dos doadores e das doadoras, conforme previsto pela Resolução do CFM. Em 2017, o CNJ editou o Provimento n.º 63, que revogou o de n.º 52, passando a harmonizar o sistema e deixar de exigir a apresentação de dados de identificação civil das partes, em especial do doador ou da doadora, garantindo-se, portanto, o sigilo.
Ainda que não se trate de situação de mesma natureza, é importante esclarecer que o art. 4810 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8.069/90 admite o direito ao conhecimento da origem genética em casos de adoção quando o indivíduo completar a maioridade.
A Resolução CFM 2.294/21 incorporou no seu item IV.2 a possibilidade de doação por parentes até o 4º grau, desde que não incorra em consanguinidade. Passa-se, então, a ter um sistema não isonômico quanto ao anonimato de doadores.
A justificativa para a incorporação da exceção ao anonimato se deu, conforme exposição de motivos, em razão da existência de decisões judiciais que autorizavam a doação de gametas entre parentes. Ademais, é uma forma de contribuir, em nome da segurança da saúde, para a diminuição da prática de inseminações caseiras11.
Do ponto de vista jurídico, em um caso ou em outro, a doação autorizada contratualmente e pelo TCLE garantirá a não extensão da filiação e os direitos daí correlatos.
Pontua-se que a Resolução do CFM se afasta do contexto socioafetivo do Direito das Famílias e desconsidera que a autonomia das pessoas envolvidas é suficiente para criar ou afastar o parentesco, não sendo a consanguinidade sua única forma de consecução.
A exigência da não ocorrência de consanguinidade na doação entre parentes parece ser pensada a partir de um paralelo com os impedimentos matrimonias previsto no art. 1.521 do Código Civil. Assim, por exemplo, uma irmã não poderia doar seu óvulo para que a cunhada gerasse um embrião produzido com o esperma do próprio irmão, em razão da consanguinidade entre eles.
Pondera-se a necessidade de amadurecimento da noção de consanguinidade como uma das formas de vínculo familiar.
RESPONSABILIDADE CIVIL E DOAÇÃO ANÔNIMA DE GAMETAS
O item IV.10 da Resolução CFM 2.294/21 prevê que “a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões”. Tal previsão normativa não evidencia clareza em sua proposta finalística, ou seja, carece de ponderações quanto ao seu objetivo. A redação do dispositivo caminha no sentido de isentar a responsabilidade dos profissionais sobre problemas relacionados à escolha de gametas doados via banco, seja quanto aos aspectos terapêuticos, seja quanto ao perfil fenotípico.
O estágio atual da Genética acentuou a necessidade de admitir o uso de processos heterólogos de reprodução (com doação de gametas), pois, passou-se a ser possível a identificação das doenças hereditárias transmissíveis que somente seriam evitadas em caso de não uso das células reprodutivas dos indivíduos que possuam o gene. Assim, uma das justificativas atuais, além da infertilidade clássica, é que a doação de gametas seja uma forma de contornar essa realidade, considerando o fato de que exames ou diagnósticos que propiciam o acesso às condições genéticas dos indivíduos são cada vez mais usados em termos procriativos12.
Questões importantes emergem do processo de seleção de doadores anônimos de gametas e demandam ponderações. Uma dessa questões está, justamente, nos critérios legítimos para seleção. A Resolução nova, assim como a anterior, não estabeleceu parâmetros claros para a escolha do doador, ficando, muitas vezes, a questão à mercê da vontade de quem impulsionou o projeto parental ou do médico. A Resolução determina que “a escolha das doadoras de oócitos, nos casos de doação compartilhada, é de responsabilidade do médico assistente. Dentro do possível, deverá selecionar a doadora que tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora, com a anuência desta”. Não se sabe, ao certo, o que motivou a redação do dispositivo quanto à exclusão da situação que envolve a doação de sêmen. Se a razão da previsão é a manutenção da semelhança fenotípica, não há motivação para que a redação tenha previsto apenas o caso da doação de oócitos na forma compartilhada. Também se faz necessário previsão normativa quanto a casos de reprodução heteróloga com doação de sêmen.
O processo seletivo dos doadores aponta para duas questões distintas: os aspectos relacionados à saúde do(a) doador(a) e as características fenotípicas que possam manter relação com a possibilidade de semelhança entre doadores e demandantes.
A doação de gametas demanda atenção especial à elaboração do TCLE. As informações de saúde e possíveis exames realizados no material reprodutivo do doador precisam restar esclarecidas aos demandantes. É necessário que na relação entre o médico responsável e as pessoas que demandaram a reprodução assistida fiquem pontuadas quais informações são possíveis de ser aferidas no que tange às condições de saúde do doador(a). Há, também, de se esclarecer que, em genética, não se pode perquirir a ideia de determinismo e, sim, de probabilidade.
Logo, o TCLE deve ser concebido como “um instrumento de garantia da autonomia do paciente, mas é, também, instrumento de garantia de direitos do profissional e da instituição, capaz de limitar ou excluir sua responsabilidade.”13 Assume, dessa forma, protagonismo o TCLE, na medida em que deve prever, em detalhamento, as questões concernentes às informações de saúde do doador, bem como os critérios fenotípicos para escolha. Assim, ainda que certas características sejam escolhidas no que tange ao doador, não necessariamente serão elas reproduzidas na realidade. Se não é possível garantir a incidência de características de um filho na reprodução natural, também não será possível garanti-las na RA.
As informações referentes à escolha do doador de gametas, em sua dimensão fenotípica e de saúde, devem ser esclarecidas durante a relação médico-paciente, bem como previstas no TCLE. O não esclarecimento das informações pode ensejar responsabilidade civil do profissional, independentemente da ressalva prevista na Resolução CFM 2.294/21.
A medida de responsabilidade do profissional envolvido não pode ser previamente excluída, tendo em vista que dependerá da sua conduta diante do dever de informação perante o(s) paciente(s) submetidos à fertilização laboratorial. A doação de gametas é um procedimento que demanda cuidados especiais, bem como a elaboração de um TCLE especifico, com o objetivo da prevenção de litígios por violação de algum direito.
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1 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021.
2 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021.
3 Sobre o tema, sugere-se o vídeo 1 do Diálogo entre o CEBID e o JusBioMed, com participação das autoras, disponível no YouTube em: clique aqui.
4 Sobre o tema, além do vídeo da nota vi, sugere-se o vídeo 2 do Diálogo entre o CEBID e o JusBioMed, com a participação das autoras, disponível no YouTube em: clique aqui.
5 “[...] impotentia coeundi (de ereção ou de ejaculação), incluindo aí a esterilização voluntária, ou quando há escassez de espermatozoides, ovulação insuficiente, incapacidade de retenção do embrião no útero para o seu natural desenvolvimento, ou, ainda, pela denominada infertilidade inexplicada.” (SÁ, Maria de Fátima Freire; SOUZA, Iara Antunes de. Responsabilidade Civil e Reprodução Humana Assistida: a (in)aplicabilidade das ações de wrongful conception ou pregnancy e birth nos tribunais brasileiros. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. (Org.). Responsabilidade Civil e novas tecnologias. 1ed.Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, v. 1, p. 383-397.)
6 MEIRELLES, Ana Thereza. Neoeugenia e reprodução humana artificial. Limites éticos e jurídicos. Salvador: JusPodivm, 2014; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 5ª ed. Indaiatuba: Foco, 2021.
7 É o caso do objeto desse escrito, qual seja, a doação de gametas, que, até a Resolução de 2017, somente era admitida na forma anônima. Contudo, por exemplo, no julgado da Apelação Civil n.º 0007052-98.2013.4.03.6102/SP pelo TRF3 em 2015 (Disponível em: clique aqui. Acesso em: 30 jun. 2021), foi permitida a doação de gametas (óvulos) entre parentes.
8 “7. Quanto ao número de embriões a serem transferidos, fazem-se as seguintes determinações, de acordo com a idade: a) mulheres com até 37 (trinta e sete) anos: até 2 (dois) embriões; b) mulheres com mais de 37 (trinta e sete) anos: até 3 (três) embriões; c) em caso de embriões euploides ao diagnóstico genético; até 2 (dois) embriões, independentemente da idade; e d) nas situações de doação de oócitos, considera-se a idade da doadora no momento de sua coleta.”
9 As Resoluções CFM sobre RA anteriores são: 1.358/92, 1957/2010, 2013/2013 e 2121/2015.
10 “Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.”
11 MEIRELLES, Ana Thereza. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: Uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020
12 MEIRELLES, Ana Thereza; CAVALCANTI, Thais. As novas famílias por projetos parentais assistidos heterólogos: uma ponderação sobre o acesso e os critérios concernentes à escolha do doador de gametas. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 14, n. 32, p. 137-159, jan./abr. 2019.
13 SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e esclarecido e responsabilidade civil do médico e do hospital. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. (Org.). Responsabilidade civil e medicina. 2ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 75.