Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade, tecnologia e constituição na era digital: notas e reflexões preliminares

13/7/2021

1. Introdução. A tecnologia produz enormes benefícios, mas também causa espanto, curiosidade, perplexidade e danos. Nesse contexto, os associados do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade (IBERC) publicaram relevantes reflexões sobre tecnologia, responsabilidade e direito, tendo o Professor Sergio Marcos Carvalho de Ávila Negri redigido coluna destacada, no Migalhas de Responsabilidade Civil: “Personalidade, responsabilidade e classificação dos riscos na Inteligência Artificial e na robótica”. O tema da tecnologia também será objeto deste texto, dialogando com algumas questões tratadas na referida coluna e partindo de elementos e pressupostos do constitucionalismo.

2. Constitucionalismo: aspectos gerais e direitos fundamentais. Trata-se de filosofia social e jurídica que informa a construção das práticas constitucionais e o direito constitucional positivo, possuindo como algumas das suas características os direitos fundamentais, a democracia, a separação dos poderes, o controle das autoridades, dos órgãos e dos poderes estatais e a distinção entre poder religioso e poder estatal, assim como o reconhecimento das diferenças entre o público e o privado. Por sua vez, as novas tecnologias1, em maior ou menor medida, impactam nas estruturas centrais do constitucionalismo.

No âmbito dos direitos fundamentais, observa-se o reconhecimento doutrinário, legal e jurisprudencial de novos direitos fundamentais (proteção de dados pessoais), além de ricos debates sobre a existência ou não de outros direitos fundamentais (direito ao esquecimento). A privacidade e a liberdade de expressão são intensamente reconfiguradas, modificando seus âmbitos de proteção e suas formas de exercício, gerando a tecnologia novos dilemas sobre o abuso e limites desses direitos. Também a caracterização jurídica do ato ilícito se torna mais difícil por inúmeros motivos, sendo um deles a constante colisão de normas e especialmente de direitos fundamentais.

3. Tecnologia. Esses dilemas dos direitos fundamentais contemporâneos são perpassados pelas interações com a internet, a inteligência artificial, os algoritmos e os robôs. A utilização da tecnologia ocorre em campos bastante diversos da vida social e humana: emprego de drones militares, uso de inteligência artificial para auxiliar no desenvolvimento de fluência em idioma estrangeiro e seleção de músicas em aplicativos, por exemplo. De outro lado, a nota comum do fenômeno tecnológico consiste na substancial integração de tecnologias por bancos de dados, robôs, inteligência artificial e algoritmos2.

As empresas tecnológicas que são utilizadas para interação e comunicação de milhões de pessoas, além de poder econômico, exercem de maneira direta ou indireta poder político e social, influenciando ou determinando padrões, condutas e benefícios para pessoas naturais, empresas, autoridades e governos. Assim, o constitucionalismo do Século XXI precisa controlar razoável e adequadamente o poder exercido pelas big techs, devendo a accountability privilegiar a participação dos usuários e os mecanismos democráticos.

4. Democracia e Accountability. Dessa forma, ressalta-se que não se trata de um simples controle estatal e popular sobre as grandes empresas de tecnologia, e sim um imbricado sistema de accountability.

A literatura especializada sobre accountability indica a existência de algumas modalidades: vertical (eleitoral e social), horizontal e internacional3. A accountability que os usuários e a sociedade civil precisam aplicar sobre grandes empresas de tecnologia aproxima-se da modalidade de accountability social, porque as pessoas e os afetados pela tecnologia demandam das empresas e dos funcionários responsáveis pelas big techs informações e justificações de suas ações e omissões, podendo ser sancionados positiva e negativamente. Ainda, por meio de eleições (accountability eleitoral), os cidadãos encontram-se atentos às propostas e às ações dos agentes políticos eleitos e dos partidos sobre a adequada regulação legislativa e a construção de políticas públicas, em relação ao emprego e ao impacto da tecnologia, na vida cotidiana de pessoas naturais e jurídicas.

Não se olvida da accountability horizontal especialmente em razão da cooperação entre grandes empresas de tecnologia e governos com robustas consequências para os cidadãos. Entende-se por accountability horizontal o controle e a limitação que uma autoridade, órgão ou poder estatal impõe a outra entidade estatal. Nesse sentido, o legislativo necessita fixar normas sobre as big techs, mas também deve regulamentar a utilização da tecnologia por governos e órgãos públicos. O papel da jurisdição é essencial para determinar a legalidade e a constitucionalidade, a partir de casos concretos ou escrutinando a legalidade dos atos normativos, no uso e desenvolvimento de tecnologia pelo Estado.

Por fim, a accountability internacional, a qual significa o controle realizado por organismos e entidades internacionais globais e regionais relativamente a atos ou a omissões de autoridades nacionais. Assim, os Tribunais Regionais de Direitos Humanos (Corte Interamericana de Direitos Humanos e Corte Europeia de Direitos Humanos) decidem acerca de assuntos tecnológicos que se relacionam com importantes situações existenciais.

5. Público e Privado. O tema do público e do privado atravessa a discussão sobre o direto e o constitucionalismo moderno. Nesse sentido, há diferenças substanciais, por exemplo, entre as contratações privadas e as contratações públicas. De outra banda, vislumbram-se claras inter-relações entre essas esferas no campo da tecnologia.

Apesar de a inovação ser intensamente relacionada com a iniciativa privada, o desenvolvimento tecnológico decorre de incentivo dos governos, em virtude da existência de tributação adequada, de mecanismos de resolução de disputas e da alocação de recursos públicos. Constata-se atualmente a enorme dificuldade de regulamentação das atividades de tecnologia, as quais fixaram um modelo de atuação inovador com interações que transcendem em muito o espaço territorial.

A normação privada construída pelas empresas de tecnologia para os consumidores e usuários é bastante assimétrica e desproporcional, porquanto resta ao interessado aderir ou não aos termos propostos pelas big techs. Nessa esteira, é imprescindível a ampliação da participação efetiva dos usuários e dos consumidores na definição e no controle do uso da tecnologia, sem desconsiderar o respeito à iniciativa privada e as atribuições dos governos preocupados em promover os direitos fundamentais.

6. Constitucionalismo Digital. A adequada regulação da tecnologia deve pautar-se no constitucionalismo digital, o qual analisa “o impacto que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço” e o papel da jurisdição constitucional4. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais e o controle judicial de constitucionalidade são assuntos a serem revisitados e repensados.

Além disso, a liberdade é bem de primeira necessidade e pressuposto da democracia e do constitucionalismo. Em verdade, a medida da responsabilidade vincula-se diretamente com a liberdade e a autonomia do agente. As novas tecnologias impossibilitam que um comando programado seja descumprindo, produzindo inegáveis vantagens sob diversas perspectivas. Nesse sentido, se o motorista de um veículo automotor ingerir bebida alcoólica superior à quantidade permitida para guiar com segurança, a tecnologia utilizada no automóvel impossibilita acionar o motor. Esse instrumento provavelmente salvará muitas vidas.

Por sua vez, a incapacidade de inobservância das condutas programadas pode causar enormes problemas. Em primeiro lugar, o direito é complexo, sendo difícil programar algoritmos ou empregar a inteligência artificial de forma a produzir decisões jurídicas sobretudo em questões que impactam sobre direitos fundamentais. Em segundo lugar, o descumprimento consciente e voluntário das normas é elemento relevante em práticas legítimas de desobediência civil, tendo a tecnologia a aptidão de obstar esse instrumento democrático.

7. Conclusão. A tecnologia impacta fortemente em relações e aspectos sociais, econômicos, políticos e jurídicos. Por consequência, novos desafios surgem para a responsabilidade civil, impondo-se principalmente reflexões sobre as regulações das big techs, o papel do Estado como regulador, usuário e eventualmente violador de direitos com o auxílio tecnológico e a participação popular, dos usuários e dos consumidores. Nesse contexto, o constitucionalismo digital tem e terá grande papel.

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1 Cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

2 Cf. BALKIN, Jack. The Path of Robotics Law. California Law Review Circuit, Berkeley, v. 06, p. 45-60, jun. 2015.

3 Cf. TOMIO, Fabrício Ricardo de Limas e ROBL FILHO, Ilton Norberto. Accountability e Independência Judiciais: uma Análise da Competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Revista de Sociologia e Política [online]. 2013, v. 21, n. 45.

4 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo Digital e Jurisdição Constitucional: uma Agenda de Pesquisa para o Caso Brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 3, out. 2020.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.