Há muito se debate acerca da natureza jurídica da responsabilidade civil do Poder Público na hipótese de conduta omissiva. Em verdade, mesmo após a Constituição da República de 1988 muitas vozes, em especial no Direito Administrativo, continuaram a fazer a distinção entre conduta comissiva do agente público – situação que serviria de fundamento para uma responsabilidade civil objetiva, fundada no risco administrativo – e conduta omissiva, caso em que o elemento subjetivo da culpa ou dolo seria exigido.
A razão seria que a Constituição de 1988, no seu conhecido art. 37, § 6º, ao utilizar a expressão causarem, só poderia estar se referindo às ações do agente público, uma vez que, na hipótese de omissão, o dano não teria sido causado por este, o qual só teria permitido, por força da sua omissão, que o dano ocorresse1. Trata-se de criativa interpretação doutrinária, a qual costuma ter na doutrina francesa da faute du service a sua grande inspiração. Assim, é a partir dessa visão que se afirma que a responsabilidade civil do Poder Público por omissão só existirá se ficar demonstrado que o serviço público não funcionou, ou funcionou mal ou funcionou tardiamente. Ou seja, fica, de todo modo, dispensada a prova da negligência de um agente público específico, o que, de fato, tornaria muito incerta a possibilidade de ressarcimento daquela que se diz vítima da omissão estatal.
Contudo, julgados mais recentes, inclusive dos Tribunais Superiores, foram, paulatinamente, afirmando a natureza objetiva da responsabilidade civil estatal também na hipótese de omissão do Poder Público. Exemplo desse entendimento foi a decisão proferida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.869.046/SP2. O caso versava sobre homicídio ocorrido dentro do Fórum de São José dos Campos, no Estado de São Paulo, tendo o autor do crime conseguido utilizar arma de fogo, uma vez que os detectores de metal do prédio público, naquela ocasião, não estavam funcionando. Ao julgar o Recurso Especial o Ministro Relator utiliza, como fundamento da responsabilidade civil estatal, o disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, conhecida “cláusula geral” da responsabilidade civil objetiva3.
A mesma afirmação da natureza objetiva da responsabilidade civil estatal ocorreu, pouco depois, no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário 608.880/MT. O caso versava sobre latrocínio cometido por um evadido da penitenciária estadual, – onde cumpria pena em regime fechado –, cerca de três meses antes do trágico crime4. Este julgado levou à edição da seguinte tese para fins de Repercussão Geral (tema 362): "Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada".
Tal decisão, portanto, tem o grande mérito de referendar a adoção da responsabilidade civil objetiva mesmo para a situação de omissão do Poder Público, fundando-a no chamado risco administrativo. Também parece confirmar a conhecida preferência pela teoria do dano direto e imediato para a explicação do nexo de causalidade entre a omissão estatal, que permite a fuga do apenado, e o dano então verificado (Código Civil, art. 403).
Contudo, embora tenha o mérito de definir um norte para as futuras – e, infelizmente, não tão escassas decisões sobre o tema –, certo é que a expressa referência ao momento da fuga não pode servir de impeditivo a que, presentes certos elementos, se reconheça a responsabilidade civil estatal pelos danos decorrentes de conduta omissiva. Nesse sentido, podem ser recordados ao menos dois precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal nos quais o dano não se verificou, propriamente, no momento da fuga, tendo, porém, sido reconhecida a causalidade entre a omissão estatal e o trágico desfecho.
O primeiro deles é representado pela decisão proferida pela Segunda Turma no julgamento do Recurso Extraordinário 409.203/RS5. O caso versava sobre crime de estupro cometido por detento que, nada obstante ter sido considerado, por sete vezes, foragido do sistema prisional – uma vez que não realizava o recolhimento noturno – foi mantido no regime aberto e, por volta das 04h30min, ingressou, armado, em uma residência onde veio a praticar o citado crime.
O segundo precedente é da mesma Segunda Turma do STF e foi proferido por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 573.595/RS (Rel. Min. Eros Grau, julgado em 24.06.2008). Este último caso também se refere à prática de latrocínio, tendo o crime sido praticado após o prazo de 25 dias da terceira fuga do criminoso.
Percebe-se, assim, que a referência ao momento da fuga, tal como consta da Tese firmada por ocasião do julgamento do tema 362 da repercussão geral, deve ser entendida com grande cautela pelo intérprete, sendo oportuno observar que a passagem do tempo, por si só, não é capaz de romper o nexo causal entre a omissão estatal e o seu possível seu trágico efeito. Nesse sentido, podem ser recordadas as palavras de Gustavo Tepedino, Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes:
Não é, portanto, a distância temporal entre o dano e a conduta do agente que rompe o nexo causal, mas, sim, a interferência de outra cadeia causal independente. A interrupção do nexo de causalidade pode ocorrer por fato exclusivo de terceiro, da própria vítima ou por um evento de caso fortuito ou de força maior. Assim, os desdobramentos do evento danoso que, temporalmente, estão distantes da conduta do agente são também passíveis de ressarcimento, contanto que sejam consequência direta e imediata de um ato ilícito ou de uma atividade perigosa objetivamente considerada, isto é, contanto que estejam ligados à conduta do agente por uma cadeia causal que não tenha sofrido qualquer interrupção. Em regra, conforme salienta Agostinho Alvim, os danos remotos não são indenizáveis, porque quase sempre deixam de ser efeito necessário, em decorrência do aparecimento de concausas, mas, se isso não ocorrer, eles devem ser indenizados. Para a análise do nexo de causalidade, não é, pois, a distância temporal que importa, mas antes a distância lógica que separa o dano da conduta do agente (grifou-se)6.
Marcelo Junqueira Calixto é doutor e mestre em Direito pela UERJ. Professor adjunto da PUC-Rio e associado fundador do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
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1 Recorde-se a redação do dispositivo: "Art. 37. (...); § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".
2 STJ, Segunda Turma, Recurso Especial 1.869.046/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 09.06.2020. Afirma a ementa, no que aqui interessa: "(...) 3. A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa. 4. Aplica-se igualmente ao Estado a prescrição do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, de responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante seja a conduta comissiva ou omissiva. O vocábulo "atividade" deve ser interpretado de modo a incluir o comportamento em si e bens associados ou nele envolvidos. Tanto o Estado como os fornecedores privados devem cumprir com o dever de segurança, ínsito a qualquer produto ou serviço prestado. Entre as atividades de risco "por sua natureza" incluem-se as desenvolvidas em edifícios públicos, estatais ou não (p. ex., instituição prisional, manicômio, delegacia de polícia e fórum), com circulação de pessoas notoriamente investigadas ou condenadas por crimes, e aquelas outras em que o risco anormal se evidencia por contar o local com vigilância especial ou, ainda, com sistema de controle de entrada e de detecção de metal por meio de revista eletrônica ou pessoal".
3 Afirma o dispositivo: "Art. 927. (...). Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
4 STF, Plenário, Recurso Extraordinário 608.880/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 08.09.2020. A ementa do julgado é a seguinte: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DACONSTITUIÇÃO. PESSOA CONDENADA CRIMINALMENTE, FORAGIDA DO SISTEMA PRISIONAL. DANO CAUSADO A TERCEIROS. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O ATO DA FUGA E A CONDUTA DANOSA. AUSÊNCIA DE DEVER DE INDENIZAR DO ESTADO. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.1. A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva, exige os seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. 2. A jurisprudência desta CORTE, inclusive, entende ser objetiva a responsabilidade civil decorrente de omissão, seja das pessoas jurídicas de direito público ou das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. 3. Entretanto, o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias como o caso fortuito e a força maior ou evidências de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima. 4. A fuga de presidiário e o cometimento de crime, sem qualquer relação lógica com sua evasão, extirpa o elemento normativo, segundo o qual a responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela conduta do agente. Nesse cenário, em que não há causalidade direta para fins de atribuição de responsabilidade civil extracontratual do Poder Público, não se apresentam os requisitos necessários para a imputação da responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federal - em especial, como já citado, por ausência do nexo causal. 5. Recurso Extraordinário a que se dá provimento para julgar improcedentes os pedidos iniciais".
5 STF, Segunda Turma, Recurso Extraordinário 409.203/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, Relator para o Acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgado em 7/3/2006, em cuja ementa se lê: "(...). Impõe-se a responsabilização do Estado quando um condenado submetido a regime prisional aberto pratica, em sete ocasiões, falta grave de evasão, sem que as autoridades responsáveis pela execução da pena lhe apliquem a medida de regressão do regime prisional aplicável à espécie. Tal omissão do Estado constituiu, na espécie, o fator determinante que propiciou ao infrator a oportunidade para praticar o crime de estupro contra menor de 12 anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão. Está configurado o nexo de causalidade, uma vez que se a lei de execução penal tivesse sido corretamente aplicada, o condenado dificilmente teria continuado a cumprir a pena nas mesmas condições (regime aberto), e, por conseguinte, não teria tido a oportunidade de evadir-se pela oitava vez e cometer o bárbaro crime de estupro. Recurso extraordinário desprovido".
6 Gustavo TEPEDINO, Aline de Miranda Valverde TERRA, Gisela Sampaio da Cruz GUEDES, Fundamentos do Direito Civil, vol. 4, Rio de Janeiro, Forense, 2020, pp. 90-91.