Fundada em 2013, a Quinto Andar, proptech1 dedicada a simplificar e agilizar o fechamento de contratos de locação e de compra e venda de imóveis, acaba de ser avaliada por espantosos US$ 4 bilhões, ou mais de R$ 21 bilhões2. A metodologia de avaliação dessa e de outras empresas em atividade, em última análise, considera o que a corporação tem, realiza, representa e lucra no presente; e, principalmente, o que ela é capaz de ser e de lucrar no futuro.
Um laudo de avaliação de uma companhia, assim, tem boa dose de futurologia, o que não lhe retira a priori a confiabilidade, afinal, ninguém investe centenas de milhões de dólares em uma companhia sem que haja uma chance palpável da possibilidade se transformar em realidade. Dito de outro modo: a avaliação, embora espelhada no futuro, trata do presente. A Quinto Andar, não daqui a um ano, ou dez, e sim hoje, vale US$ 4 bilhões. No futuro poderá valer muito mais ou muito menos. Quem viver, verá.
Também um reflexo da transformação por que vem passando o setor imobiliário, o mercado de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) vem crescendo consistentemente. O estoque de CRIs que, em 2005, era de aproximadamente R$ 1 bilhão, em 2020 já se aproximava de R$ 80 bilhões3. Nesse mercado, o titular do crédito imobiliário (geralmente, um incorporador, loteador ou locador) cede seu crédito – prestações do saldo devedor do preço do imóvel ou aluguéis – para uma companhia securitizadora, que emite os CRIs no mercado, os quais são comprados por investidores, que recebem o rendimento dos títulos, com lastro imobiliário. Nesta operação estruturada, o credor-cedente antecipa sua receita, obviamente com deságio, calculado pela diferença econômica entre a chance e a certeza de recebimento do crédito cedido.
Financeiramente, algo semelhante ocorre com o bilhete de loteria: quanto maior a chance, maior seu valor. Se a possibilidade do bilhete simples da Mega Sena acertar as seis dezenas é ínfima, algo como 1 em 50 milhões, você pode tentar revolucionar sua vida financeira por apenas R$ 4,50, menos que uma passagem de metrô na cidade do Rio de Janeiro, que quase certamente te levará à estação desejada. O fato de a chance de ganhar o prêmio ser ridícula não significa que o bilhete não vale nada.
A economia tem muitos exemplos de negócios jurídicos cujo preço presente leva em conta um fato futuro e incerto. Toda chance tem valor e pode ser alienada mediante contrapartida. Estamos acostumados a isso.
Entretanto, quando saímos do campo negocial e seguimos pela estrada da responsabilidade civil, uma avalanche de nuvens se derrama sobre nós, nublando a visão e criando uma encruzilhada sem placa ou sinalização clara de que rota seguir. É como se a matemática da chance ganhasse novas regras elementares, sem uma razão que realmente justifique a distinção.
Se, por um lado, já se caminhou bastante no desenvolvimento da teoria e aplicação da responsabilidade civil pela perda de uma chance, há muito a ser feito. Doutrina e jurisprudência concordam bastante, mas discordam ainda mais quando o tema é a natureza da indenização ou suas hipóteses de cabimento e valoração. Trata-se de lucro cessante, dano emergente ou algo intermediário? Que chance perdida gera o dever de reparar o dano? Como quantificá-lo?4
Naturalmente este brevíssimo artigo não tem a pretensão de responder a tais perguntas. O objetivo aqui é chamar a atenção para uma nuance que, ao menos em tese, pode ser capaz de evitar o que talvez seja um falso dilema.
A teoria da perda de uma chance (perte d’une chance), pelas feições gerais que lhe atribuiu a doutrina francesa da década de 1960, assenta-se, em larga medida, sobre o conceito de lucro cessante, com olhar sobre a supressão ilícita de oportunidade de obtenção de situação futura benéfica, que pode ser de um ganho obtido ou de um dano evitado.5
Vista sob tal enfoque, a teoria, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, exigiria "que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o improvável do quase certo, bem como a probabilidade de perda da chance do lucro, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas"6, e segundo o Ministro Luis Felipe Salomão, responsabiliza-se o agente pela indenização "não de um dano emergente, tampouco de lucros cessantes, mas de algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se buscar posição mais vantajosa que muito provavelmente se alcançaria, não fosse o ato ilícito praticado"7.
Parece haver consenso de que, para ser indenizável, a chance eliminada precisa ser "razoável, séria e real, e não somente fluida ou hipotética"8. O próprio Enunciado 444 do CJF estabelece, em sua parte final, que "a chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos".
Entretanto, essa premissa, embora correta, não parece ajudar muito diante do caso concreto, pois o que é sério para um juiz pode soar meramente hipotético para outro. Por que isso? Ora, somos humanos, tendemos a julgar a partir do nosso senso comum, e o senso, mesmo sendo comum, varia – e muito – de pessoa para pessoa; e pior, mesmo quando não varia, pode enganar a muitos.
Se você duvida, trazemos um caso real ocorrido no programa americano de televisão das décadas de 1960 e 1970, denominado Let’s make a deal. Em um dos episódios, o participante estava diante de três portas fechadas. Atrás de duas delas havia cabras, e na terceira havia o prêmio, um carro. Uma vez que a pessoa escolhia aleatoriamente uma das três portas, por exemplo a nº 1, o apresentador, sabendo onde estava o carro, abria a porta nº 2, revelando uma cabra, e então perguntava ao participante: vale a pena mudar para a porta nº 3 a fim de aumentar a chance de ganhar o automóvel, ou permanecer na nº 1 dá no mesmo?
Caso não conheça o problema de Monty Hall, pare de ler e pense mentalmente qual seria sua resposta. Somente então leia a nota de rodapé9.
Se tentou e não acertou o que parecia evidente, não se envergonhe: até mesmo alguns matemáticos reconhecidos, na época, não foram capazes de deduzir corretamente que trocar de porta dobrava a chance de ganhar o carro, e mesmo depois de saberem a resposta relutaram em aceitá-la. Sim, o que parece logicamente óbvio pode não ser o correto. E se até mesmo um expert pode errar, com muito mais probabilidade um juiz, que não foi preparado para fazer análise combinatória, pode se enganar pelas aparências e pelo espaço amostral.
É possível contra-argumentar no sentido de que os juízes, em casos de erro médico, para citar as ações mais comuns em que se discute tal indenização, já nomeiam peritos que estimam, por exemplo, qual a probabilidade de sobrevivência do paciente, não fosse o erro médico. De fato, em situações existenciais, a valoração do dano em regra deve ser feita pelo próprio juiz – o que não significa que se deva renunciar a uma metodologia adequada para evitar incongruências e indenizar da forma mais justa possível, tal como ocorre em relação ao dano moral, para o qual a doutrina sempre procurou estabelecer critérios coerentes.10
Contudo, aqui o foco são as oportunidades perdidas nos negócios imobiliários, que possuem caráter patrimonial. Se o locador não consegue provar que alugaria o imóvel não fosse seu péssimo estado de conservação, fruto dos maus cuidados do locatário, não há lucro cessante. Mas nesse caso havia uma chance que se perdeu? Afinal, o que seria uma chance séria e indenizável? No mínimo 50%11? 25%12? Quem define isso? Aliás, alguém precisa realmente definir se a chance é séria?
Ninguém pode cravar se a Quinto Andar terá sucesso no futuro, mas isso não impede de avaliá-la no presente por bilhões de reais. Não temos certeza se o inquilino, em um contrato built to suit, pagará os aluguéis vincendos que dão lastro ao crédito imobiliário cedido e securitizado. Porém, esse fato não impede a emissão dos CRIs e a antecipação, com deságio, de receita pelo locador. De outro lado, é extremamente improvável que o esperançoso, com uma aposta simples de seis números, leve o prêmio da Mega Sena. Todavia, tamanha improbabilidade não impede que o bilhete tenha um valor econômico, ainda que muito baixo (R$ 4,50), o que, inclusive, tal como nos seguros, é precisamente o que dá base a tal modelo de contrato aleatório.
Se assim ocorre nos negócios, porque o mesmo não se passa na responsabilidade civil, ao menos nas situações de cunho patrimonial? Aqui não deveria haver espaço para binarismos em relação à indenização da chance perdida. De duas uma: ou não existia chance, e inexistindo dano, nada há a reparar; ou a chance existia, e seu percentual de concretização é importante não para definir se há ou não dever de indenizar, e sim para calcular seu valor, pois a indenização, em alguma medida, será sempre devida, ainda que em valor módico ou irrisório, salvo se a chance tiver, literalmente, valor zero, caso em que ela seria completamente irrelevante.
Isto não significa que a chance tenha valor autônomo, o que seria um contrassenso. Tal como ocorre na fixação do preço de empresas, de recebíveis imobiliários e de bilhetes de loteria, a avaliação jamais prescindirá da análise da (im)probabilidade de ocorrência do fato futuro e por natureza incerto. O que se defende é: em se tratando de direito patrimonial, e se ficar provado que há chance, a avaliação econômica será sempre possível – e assim indenizável – independentemente de seu percentual de futura concretização, desde que superior a zero.
Sendo esta não uma questão de se, mas de quanto, a prova da existência da chance é apenas um dos passos, mas não o único. É preciso apurar – e aqui parece que a prova é eminentemente técnica -, no caso concreto, qual é o valor econômico da possibilidade destruída, e o ponto de partida parece claro: quanto mais séria e real a chance, maior o montante a reparar, e vice-versa.
Tal quantificação, a toda evidência, é um trabalho técnico, e não jurídico, a ser exercido por um perito, e não pelo juiz, salvo nos casos em que depender de simples e mero cálculo aritmético, o que não costuma ser a regra. Uma vez que o dano e sua expressão em Reais (grande, média ou pequena) tenham sido apurados, o julgamento da causa torna-se tarefa mais clara, sem que o juiz tenha que decidir, como normalmente ocorre, se a chance é séria a ponto de merecer reparação, dando azo a decisões diferentes para situações idênticas.
Em um barco, no meio do oceano, não conseguimos mudar a direção do vento, mas podemos fazer um pequeno ajuste de velas para ir aonde queremos. Se, como disse o Ministro Ricardo Villas Boas, "o que se indeniza na responsabilidade por perda de chance outra coisa não é senão a própria chance perdida"13, ainda mais em situações patrimoniais, a chance séria, indenizável, deve ser toda aquela possível de se avaliar economicamente, com base na possibilidade, grande ou pequena, mas superior a zero, de futura ocorrência do fato alegado.
Sublinhe-se, para terminar: se há chance economicamente valorável, há dever de indenizar, ainda que pequeno, não importa seu percentual de possível concretização. Se aceita tal premissa, talvez evitemos discussões que no fundo são estéreis, melhorando a expectativa de se encontrar terra firme, com menor insegurança jurídica, maior previsibilidade, e mais justiça na decisão.
André Abelha é membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral na OAB Nacional. Fundador e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Sócio de Wald, Antunes, Vita, Blattner Advogados.
Antonio Evangelista de Souza Netto é pós-doutor em Direito pela Universidad de Salamanca – Espanha. Pós-doutorando em Direito pela Universitá degli Studi di Messina – Itália e pela Universidade de Coimbra - Portugal. Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Participates in Judicial Exchange at Harvard University. Juiz de Direito Titular de Entrância Final e Juiz Coordenador do CEJUSC Recuperação Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Membro do Fórum Nacional de Juízes com Competência Empresarial – FONAJEM. Professor e Coordenador do Núcleo de Ensino a Distância da EMAP - Escola da Magistratura do Paraná.
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*Agradecemos a Juliana Velloso e sua valiosa pesquisa, sem a qual teria sido impossível escrever este artigo.
1 No link é possível fazer o download de um mapa com as principais proptechs e construtechs, isto é, startups do setor de construção e do mercado imobiliário. Acesso em 30.mai.2021.
2 Quinto Andar quadruplica sua avaliação para US$ 4 bilhões, após nova captação de investimento. Acesso em 30.mai.2021.
3 Conforme reportagem disponível aqui. Acesso em 30.mai.2021.
4 Confiram-se dois excelentes artigos, ambos publicados no mesmo livro (PIRES, Fernanda Ivo (Org.); GUERRA, Alexandre et al (Coord.). Da estrutura à função da responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil (IBERC) ao Professor Renan Lotufo. São Paulo: Editora Foco, 2021): (i) SOARES, Ronnie Herbert Barros. Responsabilidade civil por perda de uma chance. Ob cit, p. 331- 338; e (ii) KFOURI NETO, Miguel. Quantificação do dano na perda de uma chance de cura ou sobrevivência. Ob. cit, p. 339-352.
5 Existiria, assim, uma linha tênue que separa a aplicação da perda de uma chance dos lucros cessantes nos casos concretos. Enquanto nos lucros cessantes há uma certeza quanto ao que se deixou de ganhar, aqui haveria a perda de uma oportunidade de se alcançar o resultado.
6 REsp 965.758/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/08/2008, DJe 03/09/2008.
7 STJ, Resp: 1.190.180/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/11/2010, DJe 22/11/2010 RDDP vol.95 p.125).
8 Resp: 1.190.180/RS (vide nota de rodapé nº 9).
9 Mudar da porta nº 1 para a porta nº 3, faz com que sua chance de levar o carro duplique, de 1/3 para 2/3, por duas razões simples: (i) a chance do carro estar nas porta nº 2 ou na porta nº 3 era de 1/3 + 1/3 = 2/3; e (ii) o apresentador sabia que o carro não estava na porta nº 2, e a abriu, revelando a cabra, e com isso, os 2/3 de chance se concentraram na porta nº 3, não escolhida e que permaneceu fechada. A chance somente se alteraria para 50% porta nº 1 x 50% porta nº 3 se a porta nº 2 tivesse sido aberta aleatoriamente, o que não foi o caso. Conclusão: é indubitavelmente melhor trocar de porta.
10 Por todos, ver: MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
11 Este é o entendimento de Sergio Savi: "Não é, portanto, qualquer chance perdida que pode ser levada em consideração pelo ordenamento jurídico para fins de indenização. Apenas naqueles casos em que a chance for considerada séria e real, ou seja, em que for possível fazer prova de uma probabilidade de no mínimo 50% (cinquenta por cento) de obtenção do resultado esperado (o êxito no recurso, por exemplo), é que se poderá falar em reparação da perda da chance como dano material emergente" (SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 65). No mesmo sentido, ver: CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
12 Em 2005, foi julgado pela Quarta Turma do STJ o caso do programa de televisão "Show do Milhão". Essa decisão fomentou os debates sobre a teoria da perda de uma chance no direito brasileiro. A participante, que havia acertado todas as questões até a última pergunta e acumulado R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), se recusou a respondê-la sob a alegação de que estaria mal formulada. O relator do caso, Ministro Fernando Gonçalves, entendeu que houve culpa da empresa na elaboração da redação da questão e aplicou a probabilidade de acerto para estabelecer a o valor da indenização. Desta forma, a ré foi condenada ao pagamento de R$ 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil reais), correspondente a ¼ (um quarto) do valor total da questão que era de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), considerando que, se formulada a questão corretamente, esta teria ¼ (um quarto) de chance de acertá-la. (REsp 788.459 REsp 788.459/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 13/03/2006). Nesse ponto, Flávio da Costa Higa, citando a referida decisão, defende que a utilização apenas da probabilidade matemática não traz segurança ao julgamento do caso concreto. (HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade Civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 86-87).
13 REsp 1335622/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2012, DJe 27/02/2013.