Em janeiro de 2020, a OMS acendeu o seu mais grave alerta, ao decretar a emergência de saúde pública internacional em virtude da COVID-19, conclamando uma resposta internacional coordenada contra a expansão da doença, nos termos do Regulamento Sanitário Internacional.1 Desde então, a comunidade científica e os grandes laboratórios passaram a empreender todos os esforços para dissecar o vírus e desenvolver imunizantes e/ou medicamentos adequados à prevenção e à cura da doença. Como saldo, a OMS contabilizou, em março de 2021, um total de 182 vacinas candidatas à fase pré-clínica de pesquisa e outras 81 vacinas já em fase clínica.
Até maio de 2021, sete vacinas atenderam aos critérios de segurança e eficácia, segundo o Procedimento de Listagem para o Uso de Emergência (EUL) da OMS, quais sejam: as duas versões da AstraZeneca/Oxford-SKBio e Serum Institute of India; a Janssen/Johnson & Johnson; a Pfizer/BionTech; a Moderna e a Sinopharm.2 No Brasil, a vacinação é uma das estratégias de enfrentamento do vírus prevista na lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, art. 3º., inciso III, alínea d. Em decorrência de uma série de fatores, porém, o Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a Covid-19 só foi publicado em 16 dezembro de 2020, iniciando-se a campanha em 18 janeiro de 2021.3
Atualmente, PNI está na sua sexta edição e agora prevê o uso de quatro vacinas aprovadas pela Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA): a Sinovac/Butantan e a Janssen/Johnson & Johnson, autorizadas para o uso emergencial; e a AstraZeneca/Fiocruz e a Pfizer/Wyeth, com registro definitivo. Nas suas primeiras versões, aplicavam-se apenas a Sinovac/Butantan e a AstraZeneca/Fiocruz, os únicos imunizantes aprovados à época.
Compete à Anvisa (Lei 9.782/99) a concessão de registros e licenças para o lançamento das vacinas no mercado, seguindo um conjunto de regras e procedimentos que visam a aferição de sua qualidade e segurança em respeito ao direito fundamental à saúde. Mais recentemente e em caráter excepcional, as leis 14.124/2021 e 14.125/2021 autorizaram a aquisição do imunizante pelo Distrito Federal, Estados e Municípios antes do registro sanitário correspondente ou de uma autorização temporária para uso emergencial (art.2o., inciso I),4 exigindo apenas o seu registro ou autorização de uso temporário por uma das autoridades sanitárias estrangeiras listadas no art.16, da lei14.124/2021. Nessa hipótese, a Anvisa ainda deve ser consultada sobre essa importação nos moldes do art.16 e parágrafos, lei14.124/2021e da resolução 476/20215, incumbindo-se ao importador, a responsabilidade sobre a qualidade, eficácia e segurança do produto importado (resolução 476/2021, art.4º., III,).
O uso do imunizante no país é acompanhado das ações de farmacovigilância que monitoram e investigam os eventos adversos pós-vacinação, cuja ocorrência é de notificação compulsória ao SUS (decreto 8.077/2013, art.16, parágrafo único). A farmacovigiância se desenvolve no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância de EAPV6 como parte da política vacinal e em respeito ao direito à saúde, imprescindível à manutenção da vida e da dignidade da pessoa humana.7
Considera-se EAPV, qualquer ocorrência médica indesejada após o uso do imunizante, independentemente de uma relação causal com a vacina ou imunobiológico (imunoglobulinas e soros heterólogos).8 Classificam-se como eventos esperados ou inesperados, conforme sejam ou não, conhecidos e identificados pelos respectivos fabricantes. Quanto à gravidade, são classificados como graves (EAG) e não graves (EAnG).
A cada campanha vacinal, o Brasil divulga os informes técnicos sobre o imunizante, nos quais aponta os possíveis EAPVs. No informe técnico sobre a vacina contra a H1N1, por exemplo, listou-se a síndrome Guillain-Barré como um Evento Adverso Grave – EAG que pode ocorrer na proporção de reduzida de 01 caso para cada milhão de doses aplicadas.9 A vacina contra a febre amarela, por sua vez, apresenta risco de doenças neurológicas ou doença viscerotrópica aguda. Entre 2007 a 2012, registraram-se, no Brasil, 0,42 casos desses EAGs por 100 mil doses administradas da vacina contra a febre amarela.10
Os Eventos Adversos Inesperados, a seu turno, são aqueles que não foram arrolados previamente pelo fabricante, seja porque a sua identificação era inalcançável pelo estado da arte da ciência à época do seu fornecimento, hipótese em que se vislumbra um risco de desenvolvimento;11 seja porque teve origem na contaminação de lotes, na má conservação do produto pelos distribuidores ou no erro de prescrição, manipulação ou aplicação do imunizante. Há outras situações, como referido, nas quais os eventos adversos não tem qualquer correlação com a vacina, sendo listados como tais porque ocorreram nas semanas seguintes à vacinação e demandam a investigação da farmacovigilância.
Feitas essas considerações, é de se concluir que nem todo EAPV importará em dano indenizável. Eventos adversos não graves - EAnG consistentes em estado febril leve, dores no corpo, edema no local da aplicação são uma consequência ordinária e natural do processo de vacinação que devem ser suportadas pelo paciente. Também não suscitam reparação aqueles EAPVs sem conexão causal com o imunizante ou com o seu manejo.
Relativamente aos Eventos Adversos Graves Esperados - EAG associados aos imunizantes cuja aquisição foi autorizada pelo órgão competente, a informação prévia, acessível e adequada sobre a possibilidade de sua ocorrência, afastará a responsabilidade civil do fornecedor (fabricante, importador, distribuidor ou clínicas particulares). Na hipótese de importação nos moldes das leis 14.124/2021 e 14.125/2021, também caberá ao importador os deveres de informação. Não se olvidando os deveres da União, gestora do PNI, na elaboração e divulgação do correspondente informe técnico.
O fornecimento e/ou importação regular do imunizante não constitui ato ilícito, ainda que o produto apresente um risco mínimo, devidamente sopesado pelas agências reguladoras nacional ou internacional. A falta da comunicação clara e efetiva sobre esse risco é que poderá resvalar em vício de informação (art. 6o, III, e art.12 do CDC) e justificar eventual responsabilidade civil do fornecedor e/ou importador.12
Importa ressaltar a responsabilidade civil da União Federal que tem desenvolvido notável protagonismo nessa matéria.13 Por meio da Agência de Vigilância, atesta a qualidade do imunizante e chancela a sua introdução no mercado de consumo pelo registro, autorização temporária de uso ou pela apreciação da solicitação da importação pelas demais entidades federativas. Por intermédio do Ministério da Saúde, conduz o Programa Nacional de Imunização, desenvolvendo as campanhas nacionais de vacinação e gerenciando todo processo imunizatório e as ações de farmacovigilância. Se o imunizante apresenta riscos de danos à saúde do usuário, serão eles (ou deverão ser) do conhecimento da União Federal.
A seguir a teoria do risco administrativo, presente no art.37, §6º., da CF/88, os danos associados ao exercício ou à prestação do serviço público suscitam o dever de reparação, independentemente da culpa do agente. Basta a prova da relac¸a~o causal entre o dano sofrido e a ação do agente ou do órgão da administração para que a reparac¸a~o se torne exigível. Considerando o papel da Anvisa e do Ministério da Saúde no controle da qualidade das vacinas e na gestão das políticas públicas vacinais, não há como afastar o dever da União em indenizar os danos decorrentes dos EAPV, ainda que o imunizante haja sido adquirido por outras entidades federativas.
Diz a lei14.125/2021, no art. 1º., que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são autorizados a adquirir vacinas e deverão assumir a responsabilidade civil em relação a eventos adversos pós-vacinação. Quando da sua aplicação as entidades federativas deverão informar aos pacientes que o produto não possui registro e nem autorização temporária para uso emergencial fornecido pela ANVISA (Res. No.476, art.3º., XII), entregando-lhe o cartão vacinal no qual constem informações sobre o imunizante utilizado, inclusive, quanto ao lote. Mesmo nesse caso, entende-se pela subsistência da responsabilidade solidária da União pelos EAG associados ao seu uso, haja vista a sua atuação em todo o processo.
Não se pode admitir que a vítima seja condenada a suportar o peso do dano como um mero infortúnio pessoal quando a campanha de imunização visava o equilíbrio da saúde pu'blica, em geral. A despeito da liceidade da vacinação, "não parece razoável, na legalidade constitucional, estando a pessoa humana posta na cimeira do sistema jurídico, que a vítima suporte agressões, ainda que causadas sem intenção nem culpa, isto é, sem negligência, imperícia ou imprudência."14
A ratio do ressarcimento do dano que decorre de atividade lícita como no exemplo citado, está na necessidade de salvaguardar interesses que o ordenamento jurídico considera merecedor de tutela mesmo em face de outros que também se comportam no vasto campo da licitude. Em face de interesses igualmente tutelados como na hipótese, é possível justificar a indenização pelo dano que sobrecarrega um ou poucos indivíduos.15 Em duas oportunidades (REsp no 1.514.775 – SE (2015/0026515-0) e REsp. no 1.388.197 – PR (2013/0099928-9), o Superior Tribunal de Justiça reconheceu como dano injusto e, consequentemente indenizável, o desenvolvimento da Síndrome de Guilhan-Barré após a ministração da vacina contra o vírus da Influenza.
Tocante ao evento adverso pós-vacinação inesperado, isto é, aquele que não foi identificado pelo fabricante tampouco pelo importador, tem-se um exemplo de risco de desenvolvimento que, na unidade civil-constitucional, não é considerada uma hipótese de exclusão da responsabilidade.16 Assim, é cabível a responsabilidade civil da União como gestora do PNI e da entidade federativa que adquiriu o imunizante, se a vítima tomou o imunizante por ela importado, na forma das leis 14.124/2021 e 14.125/2021. Entende-se, igualmente, pela responsabilidade solidária do fabricante, ainda que o contrato com ele celebrado preveja uma cláusula de não indenizar que, no Brasil, é considerada abusiva nos termos do art.51, do Código de Defesa do Consumidor.
Ao cabo e ao fim, os imperativos da solidariedade social e do direito à saúde serão assertivos na fundamentação do dever de indenizar. Não sem razão, a lei 14.125/2021 autorizou à União, Estados, Municípios e Distrito Federal a possibilidade de contratação de um seguro de responsabilidade para o enfrentamento dessas questões, sem detalhar amiúde os valores, o prazo de cobertura securitária, legitimados etc. Contudo, independentemente da cobertura securitária, as questões atinentes à responsabilidade civil não estaria todas resolvidas e a temática ainda nos renderá profícuas discussões.
*Joyceane Bezerra de Menezes é doutora em Direito pela UFPE. Professora titular da Universidade de Fortaleza. Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito (Mestrado/Doutorado) da Universidade de Fortaleza. Professora associada da UFCE. Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPQ: Direito Civil na Legalidade Constitucional.
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1 Instrumento jurídico internacional, disciplinado pela Resolução WHA58.3, aprovada na 58a Assembleia Mundial da Sau'de, de 2005, para orientar as ações contra a propagação internacional de enfermidades. Vincula cerca de 196 países em todo o mundo, incluindo aqueles Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Reglamento Sanitario Internacional (2005). Tercera edición. Disponível aqui. Acesso em 17/05/2021.
2 Status of COVID-19 Vaccines within WHO EUL/PQ evaluation process. Disponível aqui. Acesso em: 18/05/2021.
3 BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Disponível aqui. Acesso em: 19/05/2021.
4 A legislação também previu a possibilidade de importação do imunobiológico por pessoas jurídicas de direito privado, devendo as aquisições serem repassadas gratuitamente ao SUS até a completa vacinação dos grupos prioritários (art.2º, lei 14.125/2021). Após atendidos esses grupos, o repasse passará a ser de 50% (cinquenta porcento).
5 BRASIL. Anvisa. Resolução no.476, de 10 de março de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 20/05/2021.
6 O Sistema Nacional de Vigilância de EAPV, instituído em 1992 para integrar o Programa Nacional de Imunizaçao do Ministério da Saúde, se compõe de órgãos das esferas da federação e de alguns setores da sociedade civil.
7 CAMPOS, Adriano Leitinho; DÓREA, José Garrofe; SÁ, Natan Monsores. Judicialização de eventos adversos pós-vacinação. Rev. bioét. (Impr.). 2017; 25 (3): 482-92 . Disponível aqui. Acesso em 21/05/2021.
8 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância epidemiológica de eventos adversos pós-vacinação [recurso eletrônico]. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. – 4. ed. – Brasília. Disponivel aqui. Acesso em: 20/05/2021.
9 De acordo com o informe técnico da 23a Campanha Nacional de Vacinação Contra a Influenza, o imunizante pode estar associado à posterior manifestação da Síndrome de Guillain-Barré (SGB), evento que também pode ser deflagrado pelo próprio vírus. Segundo o Informe, "Geralmente, os sintomas aparecem entre 1 a 21 dias e no máximo até 6 semanas após a administração da vacina. É importante citar que o próprio víus influenza pode desencadear a SGB, e que a frequência de 1 caso por milhão de doses administradas, encontrada em alguns estudos, é muito menor que o risco de complicaçõess da influenza que podem ser prevenidas pela imunização. (Brasil. Ministério da Saúde. Informe técnico da 23ª. Campanha Nacional de Vacinação Contra a Influenza. Disponível aqui. Acesso em: 19/05/2021, p.23.
10 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância epidemiológica de eventos adversos pós-vacinação. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. – 3. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014, p.74.
11 Para Tula Wesendonck, o risco de desenvolvimento resulta em "fato do produto ou do serviço" sendo albergado pela cláusula geral de responsabilidade objetiva do art.931, do Código Civil, cujas excludentes são o caso fortuito externo, a força maior, o fato de terceiro ou a culpa exclusiva da vítima. Ainda que o estado da arte da ciência não permita a sua identificação, ao tempo do fornecimento, o risco já existia (Art. 931: repetição ou inovação? In Revista de Direito Civil Contemporâneo |. vol. 3/2015, p. 141 - 159 | Abr - Jun / 2015 DTR\2015\6572. Sob esse entendimento é a decisão do STJ, REsp 971.845/DF (2007/0157382-1). E bem mais recentemente, no REsp. No. 1.774.372 - RS (2018/0272691-3), o risco de desenvolvimento foi considerado fortuito interno, justificando a reparação aos herdeiros da vítima, usuária do medicamento SIFROL, que a vista do uso, desenvolveu o chamado jogo patológico.
12 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4a ed. São Paulo: RT, 2017, p. 646.
13 MENEZES, Joyceane B.; SERPA, Jamila Araújo. Responsabilidade civil da União pelos danos causados pela vacina contra a Influenza – Síndrome Guillain-Barré. Responsabilidade Civil e Medicina. Organizadores: ROSENVALD, Nelson; DADALTO, Luciana e MENEZES, Joyceane B. Indaiatuba: Foco, 2021.
14 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos a` pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.179.
15 USTARROZ, Daniel. Responsabilidade por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014.
16 Enunciado 43, da I Jornada de Direito Civil, dispôs que "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento." Coube ao Superior Tribunal de Justiça acolher a tese do risco de desenvolvimento como um caso fortuito interno que não configura excludente de responsabilidade. (REsp no. No 1.774.372 - RS (2018/0272691-3).