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Responsabilidade civil do servidor - Uma leitura constitucional do art. 28 da LINDB

Responsabilidade civil do servidor - Uma leitura constitucional do art. 28 da LINDB.

20/5/2021

Um dos temas relativos à responsabilidade civil do Estado que vem despertando polêmica é o da compatibilidade do art. 28 da LINDB1 com o que estabelece o §6º do art. 37 da Constituição2-3.

Isso porque enquanto o último dispositivo prevê expressamente a prerrogativa de a Administração, condenada a ressarcir dano imputado a seus serviços, voltar-se em regresso em face do seu servidor, isso sempre que este tenha operado com dolo ou culpa no desempenho de suas funções, o primeiro determina que o agente público só responderá pessoalmente pelos prejuízos que causar em caso de dolo ou erro grosseiro.

Dessa forma, questiona-se se o legislador ordinário poderia restringir o alcance do §6º do art. 37 da Constituição no que diz respeito à disciplina do exercício do direito de regresso do Estado.

A nosso ver o art. 28 da LINDB poderia encontrar em nosso ordenamento uma hipótese de aplicação plena e outra de incidência modulada.

A plena refere-se a situações em que o terceiro lesado resolve ingressar com ação de reparação não só em face do Estado como também do servidor que lhe causou o dano.

Apesar de a matéria ser maltratada em nossa doutrina, entendemos, na linha do que já defendemos em outra oportunidade4, que em regra não é possível a vítima de um evento lesivo imputado à Administração simplesmente escolher, a seu talante, acionar a pessoa jurídica de direito público interno e seu órgão, ou seja, a pessoa física que titulariza uma unidade de ação estatal.

Como a atuação do agente, no exercício das competências que lhe são atribuídas por lei, é imputada ao Estado5, não se verifica razão jurídica pela qual este possa ser chamado a responder com seu patrimônio próprio por atividade que é desenvolvida, não por satisfação pessoal, mas sim em prol do interesse público.

Note-se que pensamento diverso inclusive colocaria o servidor público em uma situação mais arriscada, sob a perspectiva da manutenção dos seus meios de subsistência, que a experimentada por qualquer cidadão que, para o desempenho de uma atividade econômica, constitua uma microempresa de modo a separar a parte do seu patrimônio que se dispõe a comprometer para a exploração de uma iniciativa lucrativa.

Como o servidor, na condição de órgão estatal, se relaciona com terceiros em nome do Estado (e não em nome próprio), eventuais prejuízos gerados por ocasião desses vínculos (assim como as vantagens respectivas) são suportados pela pessoa jurídica de direito público interno a qual ele está adstrito.

Essa é a regra, que, vale dizer, atende aos anseios da sociedade por uma função pública exercida de modo impessoal e perseguindo a satisfação dos interesses gerais da comunidade, o que inclusive pode exigir atuação destemida contra poderosos, estejam estes operando no setor público ou privado.

Imagine-se, por exemplo, um fiscal do meio ambiente lavrar uma multa milionária em face de um grande desmatador e o infrator, até como meio de intimidar o órgão estatal que lhe está causando embaraços, ingressar com uma demanda contra o Estado e o seu agente buscando a anulação da sanção e reparação em perdas e danos.

Faria sentido em se admitir um expediente de tal tipo em nosso sistema jurídico, isso a partir de uma leitura “por tiras” dos artigos do Código de Processo Civil que dispõem sobre a formação de litisconsórcio passivo?

Entendemos que não.

Pois bem. E a regra de não responsabilidade direta do servidor perante terceiros admite exceções?

Já defendemos que sim, em duas circunstâncias.

Em havendo dolo, ou seja, intenção de o agente causar dano a terceiro, situação pode justificar o rompimento da ideia de imputação, já que o preposto do Estado estaria, com sua conduta, não realizando a missão pública a seu encargo, mas sim dando vazão a uma vontade exclusivamente sua.

E em havendo erro grosseiro, acompanhado de prova pré-constituída a respeito. Numa atuação em indisfarçada violação de deveres funcionais, com menosprezo ao risco gerado a bens jurídicos alheios e às orientações existentes para a prática de uma dada tarefa, o espectro da responsabilização do servidor diretamente pelo lesado poderia ser conveniente para estimular uma postura mais cautelosa da parte daquele no cumprimento de suas atribuições.

Com o art. 28 da LINDB, essa nossa posição sobre a possibilidade de terceiro litigar diretamente com o servidor que teria, com sua ação ou omissão, causado-lhe dano, ganha um argumento legal expresso.

Afora essa possível aplicação, digamos "plena", do art. 28 da LINDB, ainda seria plausível vislumbrar sua incidência modulada no que se refere à ação de regresso promovida pela Administração em face do servidor que, por dolo e culpa, tenha lesado terceiros.

Em que pese o §6º do art. 37 da Constituição não ter apresentado distinção acerca do grau de culpa a embasar pleitos de ressarcimento movidos pela Fazenda em face de seus prepostos, não nos parece que o legislador ordinário, numa política de promoção de uma atuação mais proativa de determinados agentes, não pudesse estabelecer parâmetros para o exercício de tal prerrogativa.

Se, por um lado, pode parecer despropositado impedir que a Administração cobre de um motorista de viatura oficial os danos que este causou ao patrimônio público ao envolver-se em um acidente de trânsito por negligência ou imprudência, por outro pode ser razoável que em situações nas quais se exija uma atuação mais assertiva e ousada por parte dos prepostos estatais o Poder Público se autolimite quanto ao exercício do direito de regresso (o que poderia se dar, por exemplo, quando um policial, em perseguição de meliantes, acabe por danificar patrimônio alheio).

Note-se que, nessa segunda categoria de casos, também se enquadrariam hipóteses em que se pretenda conferir maior segurança jurídica a servidores incumbidos de formular políticas públicas, campo normalmente próprio à experimentação, e no qual cada vez mais se exige adesão do setor público à inovação.

Não é raro ouvir de gestores envolvidos nesse tipo de missão justificativas para inação em circunstâncias que recomendariam seu pronto agir sob a escusa de ausência de lei expressa autorizativa, ou então de receio de penalização por órgãos de controle, dentre os quais destacam-se os Tribunais de Contas.

Trata-se do conhecido “apagão das canetas”, contra o qual o legislador buscou oferecer contramedidas6, isso tendo a cautela de ressalvar o erro grosseiro como inadmissível, do que é ilustração patente uma tomada de decisão que se dê fora da processualidade exigida para qualquer exercício de poder estatal, em descompasso as melhores evidências científicas levadas ao conhecimento do decisor público.

Diante de um cenário com tantos matizes, embora nos pareça excessivo defender a aplicação indiscriminada do art. 28 da LINDB na relação entre Administração e servidor à vista da dicção do §6º do art. 37 da Constituição, acreditamos que o dispositivo possa servir de argumento para o estabelecimento de parâmetros para uma política de regresso pelo Poder Público em que sejam previstas hipóteses nas quais este, considerando os melhores interesses do serviço público, só será exercido quando a conduta ilícita do seu preposto estiver revestida de dolo ou culpa grave (ou seja, erro grosseiro).

Se isso, a nosso ver, já seria possível sob a égide do quadro normativo vigente pré-lei13.655/2018 via regulamento interno (autolimitação), com maior razão o será via aplicação parametrizada pela Administração do comando legal expresso no art. 28 da nossa Lei de Introdução. 

*Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho é mestre e doutor em Direito do Estado, associado ao IBERC e juiz de Direito em SP.

__________

1 Art. 28 do Decreto-lei nº 4.657/1942 - O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (com a redação que lhe foi dada pela lei 13.655/2018).

2 Art. 37, § 6º da CR - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

3 Manifestando-se pela inconstitucionalidade do dispositivo, confira-se, por exemplo, DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil do agente público. O art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) in CUNHA FILHO, Alexandre J. C. da; ISSA, Rafael H.; SCHWIND, Rafael W..(coord.). Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – anotada, p. 401-407, São Paulo: Quartier Latin, 2019.

4 CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da. Responsabilidade pessoal do servidor por dano causado a terceiro no exercício da função administrativa in Revista Brasileira de Estudos da Função Pública - RBEFP I Belo Horizonte, ano 3, n. 7, p. 85-112, jan.-abr. 2014.

5 E aqui temos a teoria do órgão, de ampla difusão entre nós para explicar, juridicamente, a imputação de uma conduta da pessoa física a uma entidade ideal que encontra amparo no nosso Direito, no caso, o Estado. Segundo Hely Lopes MEIRELLES, interpretando a formulação de Otto Gierk sobre o assunto, pela teoria do órgão "as pessoas jurídicas expressam sua vontade através de seus próprios órgãos, titularizados por seus agentes (pessoas humanas), na forma de sua organização interna. O órgão – sustentou Gierk – é parte do corpo da entidade, e, assim, todas as suas manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade" (Direito Administrativo Brasileiro, 16. ed., São Paulo: RT, 1990, p. 58).

 

6 Fazendo essa leitura da introdução do art. 28 na LINDB, ver BINEMBOJM, Gustavo; CYRINO, André. Art. 28 da LINB – a cláusula geral do erro administrativo in Rev. Direito Adm., Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, Rio de Janeiro, nov. 2018; MARQUES NETO, Floriano de A.; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018, Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 129 e ss.

 

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.