A extensão da proteção à liberdade de expressão frente a outros direitos, notadamente os direitos da personalidade, não é a mesma em diferentes tradições jurídicas, o que gera evidentes repercussões no papel da responsabilidade civil em face da manifestação de ideias e ao trânsito dos discursos, notadamente aqueles francamente ofensivos, o que inclui os qualificáveis como discursos de ódio.
Nos Estados Unidos da América, a freedom of speech, ainda que não seja ilimitada, ocupa posição de evidente primazia, sendo admitida a sua restrição apenas em casos excepcionais. Fora dessas hipóteses de absoluta exceção, prevalece a liberdade de discurso. Essa liberdade, na construção jurisprudencial norte-americana, se estende, inclusive, a discursos ofensivos ou, mesmo, aqueles francamente inseridos no conceito de discursos de ódio.
Winfried Brugger traz interessante comparação entre as respostas oferecidas pelo Direito frente aos discursos nos ordenamentos jurídicos norte-americano e alemão.1
Ele descreve a hipótese em que um cidadão, portando um cartaz com um desenho francamente degradante retratando o presidente da República, se coloca diante do Capitólio, em Washington, bradando vulgares ofensas morais ao chefe do Poder Executivo, proferindo frases racistas, negando o Holocausto na Alemanha Nazista e a escravidão negra na história dos Estados Unidos da América.
O autor aponta que, no Direito Americano, mesmo essa conduta seria compreendida como protegida pela freedom of speech prevista na Primeira Emenda.
Todavia, igual conduta, se praticada em frente ao Reichstag, em Berlim, ensejaria, conforme Brugger, até mesmo persecução penal, uma vez que "Na Alemanha, como na maioria dos outros países, o instinto básico coletivo refletido no direito é que o discurso do ódio é perigoso e deveria ser efetivamente eliminado". Com efeito, na Alemanha, a liberdade de expressão, apesar de dotada de intensa proteção constitucional, não apresenta primazia frente a outros direitos constitucionalmente assegurados.
Na mesma linha, constata Daniel Sarmento que o discurso de ódio, no sistema Americano, é lido, em regra, como parte integrante da livre difusão de ideias, sendo inviável, na racionalidade daquele sistema, admitir que alguém possa sofrer sanção pela sua manifestação pública, por mais abjetas e ofensivas que sejam.2
O limite se coloca nas hipóteses das chamadas fighting words, que consistem nos discursos com aptidão para gerar imediata reação violenta de seus destinatários. O valor protegido, nesses casos, todavia, não é a personalidade das vítimas do discurso de ódio, mas, sim, "a garantia da ordem e da paz públicas".3
No Brasil, a leitura do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão aponta, de modo coerente com o que emerge do texto constitucional, uma "posição preferencial"4, prima facie, ainda que relativa, que pode ceder a posteriori, na constatação de violação de outros direitos. Trata-se do pressuposto que serve de alicerce à vedação à censura prévia à expressão do pensar, mas não descura da resposta coerciva posterior, em caso de violação a outros direitos fundamentais, por meio do abuso da liberdade de expressão.5
Não se confunde, pois, com a posição de proeminência quase inabalável que a freedom of speech detém no Direito americano, mas, ao mesmo tempo, apresenta uma posição preferencial prima facie que não se identifica no sistema alemão.
Um debate relevante que se impõe diante dessa construção jurisprudencial é se, no sistema jurídico brasileiro, diante dessa primazia prima facie, discursos ofensivos seriam admitidos como passíveis de controle somente ex post, ou se, pela gravidade da violação por eles perpetradas a princípios constitucionais, poderiam ser coibidos ser coibidos ex ante, em inversão da regra de primazia – aqui, de modo especial, no caso dos discursos de ódio propriamente ditos.
Ou seja: trata-se de questionar se, no campo dos discursos ofensivos, a primazia prima facie cederia automaticamente, em todos os casos, ou se ela se manteria, em regra, hígida, sendo excepcionada, porém, em situações limite, nas quais a violação a princípios jusfundamentais seria de tal modo grave e autoevidente que a prévia restrição à expressão seria justificada em não constituiria censura.
A ordem constitucional aponta para uma relevante pista, ao criminalizar o racismo, no inciso XVII do art. 5º, e ao repudiá-lo no inciso VIII do artigo 4º. Há, aqui, evidente repulsa constitucional a um típico discurso de ódio, que não goza de qualquer proteção constitucional no Brasil. É coerente com a ordem constitucional a não admissão de que discursos racistas integrem a liberdade de expressão.
Outros discursos ofensivos, porém, quiçá não recebam o mesmo tratamento constitucional, mantendo hígida a primazia prima facie da liberdade de expressão.
Há, porém, outra questão a formular – e que é antessala relevante para se pensar sobre a responsabilidade civil.
Trata-se de saber se, e (em caso positivo), em que medida, seria possível admitir, sob a égide da liberdade de expressão, a proteção constitucional a algum discurso ofensivo – e, portanto, se discursos ofensivos poderiam ser protegidos mesmo ex post, afastando, pois, respostas coercivas posteriores ao exercício da liberdade de expressão.
É necessário, destarte, refletir sobre as balizas para definir o que, a par do evidente repúdio ao racismo e à apologia à violência, deve mesmo ser compreendido como um discurso de ódio propriamente dito.6 Isso pode demandar a construção de uma distinção entre discursos ofensivos, como um conjunto mais amplo, no qual estão, em um subconjunto, os discursos de ódio propriamente ditos – estes últimos a ensejar franco rebaixamento ou negação da dignidade do outro, ou, no limite preconizando sua aniquilação.
Daniel Sarmento, com acerto, coloca o tema do discurso de ódio e de sua relação com a liberdade de expressão no campo do debate sobre os limites da tolerância.
O tema desafia os espíritos liberais, uma vez que a ampliação da coerção é, prima facie, indesejável em uma sociedade livre. Todavia, a indiscriminada admissão de discursos que humilham e tolhem as possibilidades de os vulneráveis integrarem a ágora comunicativa com igual dignidade são, também, formas de coerção.
Não por acaso, Karl Popper admite, ao versar sobre o "paradoxo da tolerância", que a "tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância", de modo que "se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo para aqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque do intolerante, então o tolerante será destruído". O grande pensador não está a defender, como ele mesmo afirma, que se deva sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes, uma vez que, "desde que possamos combatê-los por meio de argumentos racionais e mantê-los sob controle pela opinião pública, a supressão certamente seria muito imprudente". Isso não afasta, porém, a possibilidade de inserir a intolerância no campo da ilicitude, quando necessário a assegurar que não aniquile as condições de liberdade do próprio discurso e da sociedade.7
Há, como se observa, de um lado, a admissão de que discursos intolerantes possam ser proferidos, controlados e respondidos no campo do debate público. De outro lado, há, também, a admissão de sua supressão, como condição de possibilidade para a manutenção da própria tolerância.
Sem embargo, a advertência de Bobbio em "A Era dos Direitos" também merece ser lembrada: "Não estamos afirmando que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal".8
A pretensão de, por meio da atuação do Poder Judiciário, efetuar a sanção a todo e qualquer discurso que possa vir a ser reputado como ofensivo pode ser atitude que não apenas restringiria desproporcionalmente a liberdade de expressão, mas pode se revelar inócua e, mesmo, politicamente perigosa, especialmente diante dos riscos de um efeito backlash, que, em dada extensão, pode colocar em xeque importantes conquistas civilizatórias, construídas sob o pálio desse irrenunciável universal a que chamamos cidadania.
Diante disso, como se situa a responsabilidade civil frente a esse perfil constitucional da liberdade de expressão?
Cabe não descurar do fato de que, ainda que possa exercer uma função social relevante, a responsabilidade é, por excelência, um instituto de Direito Privado, e, como tal, seu locus é a intersubjetividade individual.9
É, pois, necessário que a responsabilidade civil não seja empregada como instrumento de controle do pensar e do manifestar pelo Estado-Juiz, como uma atípica ferramenta de moralização social em contraposição ao livre trânsito de ideias.
Não há espaço, no âmbito constitucional da liberdade de expressão e no lugar ocupado pela responsabilidade civil no ordenamento, para uma pretensão de emprego desse instituto de Direito Privado para a supressão ou a imposição de sanção a toda e qualquer manifestação que possa vir a ser reputada ofensiva, especialmente quando dirigida a coletividades abstratas (como por exemplo, pretensões de definição pret-à-porter de quais seriam os valores caros a coletivizações identitárias, ou, mesmo, à artificial personificação corporativa de categorias profissionais).
Nessa linha, a responsabilidade civil não tem o papel de, por meio da controversa10 – ainda que consagrada – figura do dano moral coletivo, moralizar discursos e eliminar a expressão do incivilizado.
Se a Constituição afasta inequivocamente a proteção a discursos que define como inadmissíveis, como o da discriminação racial e o da apologia da violência – e, aqui, a intolerância com o intolerante é mandamento constitucional, a atrair não apenas a responsabilidade civil, mas a responsabilidade penal -, a expansão dos lugares de coerção para o atendimento de outras pautas de reconhecimento revestidas de pretensões coletivizantes pode se converter no avesso da cidadania, que, ao fim e ao cabo, é a síntese universalizante do lugar do indivíduo livre e merecedor de igual consideração na vida em uma sociedade republicana.
As pretensões de reconhecimento, que transcendem a mera tolerância, são, seguramente, tuteladas em uma ordem constitucional que almeja a uma sociedade livre justa e solidária. São, porém, pretensões que, a rigor, somente fazem sentido como expressões individuais de cidadania, refletidas na igual dignidade de todos os cidadãos, e, nessa medida, no dever de a todos tratar com igual consideração, e não como fragmentação do tecido social em coletivos autorreferentes e, paradoxalmente, totalizantes no abstrato desenho de suas próprias identidades.
Não se advoga, por evidente, a lassidão frente à emergência da intolerância que humilha e suprime o igual lugar de expressão e de dignidade dos demais cidadãos, especialmente quando esta se apresenta na ofensa a indivíduos e, ainda mais, indivíduos vulneráveis.
O que não se pode descurar, porém, é a lição de Bobbio, para quem "é melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver". Como ensina o filósofo italiano, "somente uma liberdade em perigo é capaz de se renovar", e "uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se, mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidão".11
É na expansão da liberdade que deve se encontrar a chave para o balizamento do papel da responsabilidade civil frente aos discursos ofensivos, desafiando a diferenciação concreta entre o que soa odioso, mas, a despeito disso, se situa nos custos morais de manutenção de uma sociedade livre, e aquilo que, efetivamente, fomenta o ódio e desconstrói a subjetividade da vítima, a demandar respostas coercivas, inclusive do Direito Privado.
*Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é professor associado de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito Civil pela UFPR. Advogado.
__________
1 BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Revista de Direito Público, Brasília, v. 15, n. 117, jan.-mar. 2007, p. 119.
2 Assim Daniel Sarmento explica a prevalência da liberdade de expressão nos Estados Unidos, a proteger até mesmo os discursos de ódio: "Assim, nem a difusão das posições racistas mais radicais e hediondas pode ser proibida ou penalizada. Isto porque, entende-se que o Estado deve adotar uma postura de absoluta neutralidade em relação às diferentes idéias presentes na sociedade, ainda que considere algumas delas abjetas, desprezíveis ou perigosas". SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006.
3 SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do hate speech. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, ano 1, n. 4, p. 56, out./dez. 2006.
4 Explica Ingo Sarlet: "Todavia, mesmo que, em um primeiro momento, a CF assegure um idêntico status protetivo a privacidade e a garantia da liberdade de manifestação e expressão, percebe-se que, em relação à segunda, o texto constitucional entendeu por bem ser mais explícito e detalhista no que se refere aos critérios de controle e de restrição dessa liberdade, tal como se vê das regras constitucionais contidas nos artigos 220 e 221. Isso porque a CF, além de fixar de antemão impedimentos legislativos (§ 1º e § 3º do artigo 220), entendeu por bem já prever a proibição categórica à censura (§ 2º do artigo 220), assim como fixar princípios diretivos que deverão guiar a produção publicitária, de rádio e de televisão (§§ 4o, 5º e 6º do artigo 220 e artigo 221). Tal opção constitucional pode ser interpretada como sendo um sinal de que o Constituinte foi mais seletivo no que se refere às restrições que poderão ser aplicadas à liberdade de imprensa, de manifestação de pensamento e de expressão do que foi em relação à proteção da intimidade e da privacidade, a qual deverá contar com uma ponderação a posteriori para identificar as situações de grave e intolerável interferência na esfera de proteção privada. Essa opção do constituinte de 1988 pode ser interpretada como indicando a escolha constitucional por tratar restrições à liberdade de manifestação e expressão como sendo algo excepcional, exigindo que eventuais restrições adicionais necessitem de um esforço argumentativo diferenciado e mais intenso que consiga justificar a necessidade particular de uma nova limitação." SARLET, Ingo Wolfgang. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O PROBLEMA DA REGULAÇÃO DO DISCURSO DO ÓDIO NAS MÍDIAS SOCIAIS. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, [S.l.], v. 5, n. 3, p. 1207-1233, dez. 2019. ISSN 2447-5467. Disponível aqui. Acesso em: 12 maio 2021.
5 O leading case a consolidar essa interpretação foi a ADPF no 130, Rel. Min. Ayres Britto, DJE: 6/11/2009.
6 O problema, que não é, por certo, de fácil solução, é apontado como relevante por Ingo Sarlet, nos seguintes termos: "Nesse contexto, por sua vez, assume particular relevo a adoção de uma compreensão mais ou menos restritiva da definição jurídica do discurso de ódio, ou seja, dito de outro modo, a decisão a respeito de quais manifestações podem e quais não podem ser tidas como assim enquadradas e se — e até que ponto — podem ser reprimidas". SARLET, Ingo. Op. cit., p. 1213.
7 POPPER, Karl. The Open Society and its Enemies. Vol. 1. London: George Routledge & Sons, p. 226.
8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214.
9 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. As fronteiras da Responsabilidade Civil e o princípio da Liberdade. In: ROSENVALD, Nelson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo (coord.) Novas Fronteiras da Responsabilidade Civil: Direito Comparado. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 51.
10 Refinada doutrina critica a qualificação do chamado "dano moral coletivo" como dano moral propriamente dito, haja vista se referir a uma abstração coletiva. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 489.
11 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 214.
__________
Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil