O provedor de registro e a invocação de um falso paradigma para atribuição de sua responsabilidade (REsp nº 1.695.778/RJ)
Uma recente polêmica envolve o Marco Civil da Internet, especialmente em relação a um dos atores da rede mundial de computadores. Enquanto aos provedores de acesso, provedores de busca e provedores de conteúdo há, pelo menos, uma diretriz a ser observada nos artigos 18 e 19, em relação às instituições responsáveis pelo registro de nomes de domínio – que, no caso do domínio ".br" fica a cargo do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) – começa surgir dissonâncias a respeito do correto enquadramento jurídico de sua responsabilidade.
O NIC.br é o órgão escolhido para administrar o sistema de registro de nomes de domínio ".br" no Brasil, função antes exercida pela FAPESP. Ocupa uma posição peculiar no âmbito da internet brasileira. Segue a Resolução do Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br (Resolução 2008/008) e, mediante solicitação prévia de qualquer interessado, confere a este o uso de uma determinada expressão linguística como nome de domínio para seu uso exclusivo.
Não é sua atribuição conferir qualquer conteúdo objetivo ou subjetivo do interessado em registrar a expressão linguística como nome de domínio na rede mundial de computadores, quiçá prever o que esse interessado irá fazer após o obter o uso de uma expressão linguística como nome de domínio. Tampouco está apto a fiscalizar atividades subjacentes ao registro exercidas pela pessoa, empresário ou não, que solicitou o assentamento do nome na rede. Não faz apreciação finalística sobre a expressão linguística escolhida pelo interessado, salvo quando existir conflito com expressão anteriormente requerida, observado o princípio da anterioridade.
Segue-se, portanto, o princípio universal denominado first come, first served: o nome de domínio será conferido ao primeiro que solicitar. Sua atividade se delineia em inserir uma determinada expressão como nome de domínio numa tabela mundial de endereços e garantir o seu funcionamento lógico e localização.
Considerando a situação peculiar do NIC.br como verdadeiro provedor de registro ou de assentamento de nomes de domínio numa tabela lógica de nomes existente na rede mundial de computadores, seria correto lhe imputar responsabilidade objetiva, pautada em eventual risco por atos subjacentes e posteriores dos titulares do domínio, bem como pelos danos que estes eventualmente causam a terceiros (consumidores)?
Até pouco tempo atrás essas dúvidas sequer eram suscitadas. Quaisquer demandas promovidas em face do NIC.br eram extintas sem resolução de mérito (ou julgadas improcedentes), não havendo sentido lhes impor condutas prévias ou posteriores de persecução investigativa contra os donos de sites e titulares de nomes de domínio, considerando não só a neutralidade da rede mas, efetivamente, a possibilidade de colapso de um sistema que recebe mais de 30 mil pedidos de registro de domínio por mês.
Ocorre que a desejada estabilidade deste modelo começa a ser ameaçada a partir da invocação de um "falso" paradigma do STJ, em que se mencionou, nas razões de decidir a aplicação da responsabilidade civil objetiva pelo risco de atividade ao NIC.br.
Em situação anterior ao marco civil da internet (sentença de 2012), no Recurso Especial nº 1.695.778/RJ (“Caso Carolina Ferraz”), o STJ, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), atribuiu responsabilidade solidária ao NIC.br pelo não congelamento do site pornográfico quando provocado pela atriz, em afronta ao seu direito de personalidade, entendendo-se que naquele caso teria assumido um risco de atividade.
Naquele julgado, o que se estava em questão era se o provedor de registro também deveria ser incluído na responsabilização dos danos a pessoa notoriamente conhecida, à luz de provocações extrajudiciais antecedentes da atriz. E para proteger o seu direito da personalidade, considerando a ciência prévia, entendeu-se que NIC.br teria assumido um risco do empreendimento, invocando-se, o § único do artigo 927 do Código Civil.
Ocorre que, a partir deste julgamento, algumas decisões estaduais começaram a expandir, erroneamente, a leitura do aludido julgado, ignorando a superveniência da própria lei 12.965/2014, aplicando-se, de maneira totalmente acrítica, equivocada e indiscriminada, o artigo 927, § único do Código Civil aos provedores de registro, como se este exercessem uma super função no âmbito da internet ou que estariam aptos a arcarem com a seguridade de danos no sistema, criando-se, de maneira velada, uma indevida situação de responsabilidade integral a quem é apenas mais um provedor na rede e que, além de assegurar a neutralidade e eficiência, tem o dever de atuar, hoje, apenas após provocação judicial.
Inaplicabilidade do § único do artigo 927 do Código Civil aos provedores de registro.
Para se aplicar o § único do artigo 927 do Código Civil, indispensável que o julgador avalie e discrimine a atividade normalmente desenvolvida pelo provedor. Não se avaliará uma conduta isolada, mas sim a atividade como conduta reiterada, habitualmente exercida, organizada de forma profissional ou empresarial para realizar os fins.
E nesta avaliação deve se perguntar: o provedor de registro controla conteúdo de site? Não. Referenda bons e maus fornecedores de serviços aos consumidores? Fiscaliza a qualidade e entrega de mercadorias? Tem como função checar previamente a titularidade de razão social ou marca? Não.
Então como lhe imputar um risco – responsabilidade por danos causados a consumidores pelos fornecedores de produtos e serviços em sites da internet – se sua atividade não se relaciona, nem de longe, com a relação entre fornecedor e consumidor?
Da mesma forma que o locador de imóvel não residencial não é responsável pela solidez, segurança e pela entrega de bens vendidos pelo locatário do imóvel, o provedor de registro não pode ser responsabilizado por danos praticados pelos titulares do domínio, afinal, sua missão não é de persecução penal ou fiscalizador de atividades empresariais destas pessoas. Também não pode ser obrigado a se imiscuir nas atividades empresariais subjacentes e desenvolvidas pelos titulares do domínio, nem mesmo a avaliação jurisdicional prévia de colidência de expressões linguísticas com razão social ou marca de quem quer que seja.
Defender diverso seria ruir o sistema e adotar um caso isolado de responsabilidade integral, criando-se, aliás, um perverso estimulo reverso, fazendo com que os provedores de registro atue fora das limitações regulamentares e, em nome da equivocada precaução de sofrer a imputação objetiva, não mais atribuir nomes de domínio, congelar os já existentes sem prévia provocação, bem como interferir em conteúdo e atividades de terceiro, algo que, segundo o próprio STJ, feriria, de morte, a neutralidade da rede.
Obrigá-los a fiscalizar vícios de produtos e serviços em situações de e-commerce ou atribuir-lhe prévia análise sobre eventual violação a proteção de bens imateriais praticados por terceiros e perfeitamente identificados não é aplicar corretamente o § único do artigo 927 do Código Civil, mas imputar a alguém um dever totalmente extrínseco a sua atividade, tornando-o verdadeiro segurador universal de danos no ambiente da rede, o que nunca foi pensado ao sistema e, exatamente por isso, poderá gerar seu colapso.
Indispensável, assim, o enquadramento destes provedores ao microssistema pensado pela lei 12.965/2014.
Não há sentido em se criar um grau de responsabilização maior e mais severo ao provedor de registro que, como vimos, é o que mais está distante da atuação dos titulares de nome de domínio, enquanto para os outros provedores, incluindo até mesmo o provedor de busca – que atuam diretamente na, digamos, dinâmica da internet, indicando o site para eventuais clientes, fornecendo meios de pagamento e até logística de entrega, tem se sujeitado a incidência da responsabilidade subjetiva.
Ademais, falar-se em responsabilidade subjetiva (hoje tendo a figura da culpa interpretada à luz da boa-fé objetiva) não significa abrandamento. Como tem orientado o STJ, a adoção da responsabilidade aquiliana dos provedores não significa um protecionismo, mas sim uma forma de se coibir empoderamento excessivo dos agentes da internet que acabariam por decidir ou censurar o que é ou não disposto na internet, bem como para afastar o risco de supressão das inovações veiculadas na web, uma vez que a análise prévia de cada informações e publicação registrada mudaria por completo o ritmo da comunicação digital. Criar-se um dever de checagem prévia – sob pena de responsabilidade objetiva – seria legitimar a interferência indevida em liberdades e na própria autonomia das atividades empresariais.
Conclusão: indispensável delimitação da responsabilidade subjetiva aos provedores de registro e aplicação do Marco Civil da Internet.
Passados mais de 18 anos do advento do Código Civil – e, porque não dizer, da descoberta concreta jurisdicional de novas atividades de risco – parece-nos que o ímpeto da objetivação da responsabilidade não deve romper com a previsibilidade pensada ao microssistema do Marco Civil da Internet, seu sistema de aferição de culpa, pautado na boa-fé objetiva, que atenua comportamentos voltados a censura ou quebra de fluidez da rede.
Tal raciocínio se confirma especialmente se considerarmos que o precedente erroneamente invocado em algumas decisões (REsp nº1.695.778/RJ), além de anterior a Lei, envolveu à época discussão sobre a necessidade de notificação prévia ao provedor de registro para o cancelamento de domínio de site que abrigava conteúdo pornográfico e homônimo ao da notória atriz, que pleiteava aquela tutela extrajudicial.
Temos que o STJ não delineou a atividade do provedor de registro à luz do Marco Civil da Internet, muito menos sua responsabilidade por atos subjacentes, em especial, comércio eletrônico dos titulares de domínio.
Logo, diante de tal precedente, um provedor de registro deveria sofrer responsabilização integral por atos empresariais praticados por titulares de um domínio (ou site) na internet e subjacentes ao registro, por vícios causados aos consumidores adquirentes de produtos na internet, pelo simples fato de ser o ator responsável pelo registro de nomes de domínio?
Seria o caso então de reconhecer e exigir-lhe um dever de persecução prévia e posterior fiscalizatória da licitude dos conteúdos e dos atos empresariais praticados pelos titulares dos sites, contrariando suas funções delimitadas e, por que não dizer, ao Marco Civil da Internet, impondo-lhe, portanto, uma inequívoca responsabilidade integral e irrestrita por atividades que não exerce, ou fora do seu campo de atuação, e sob a qual não tem nenhum controle, contrariando o sentido e ao alcance dos artigos 186 e 927, parágrafo único do Código Civil, bem como os precedentes do STJ a respeito da responsabilização civil dos provedores de conteúdo no Marco Civil da Internet?
Obviamente que não.
Obrigá-los a fiscalizar atos de terceiros, vícios de produtos e serviços de sites de compra e venda é responsabilizá-lo por algo extrínseco a sua atividade, atribuindo-lhe risco integral, incentivando instabilidades e incertezas normativas após amplo debate consolidado no âmbito do STJ e, por que não dizer, desvirtuando o verdadeiro propósito do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil.
*Diogo Leonardo Machado de Melo é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Pós-doutor em ciências jurídico-civis pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Associado fundador do IBERC. Diretor Administrativo do IASP. Advogado.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil