Migalhas de Responsabilidade Civil

A problemática da prova relacionada à responsabilidade civil decorrente da prática de stalking

A problemática da prova relacionada à responsabilidade civil decorrente da prática de stalking.

6/5/2021

Tipificado como crime pela lei 14.142/2021, o stalking consiste na perseguição reiterada praticada contra alguém, por qualquer meio, com capacidade de ameaçar-lhe a integridade física ou psíquica, restringindo sua capacidade de locomoção, ou de qualquer forma invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade.

A palavra inglesa Stalk remete à caça predatória, onde o predador aproxima-se silenciosamente, em uma contínua perseguição, assédio ou vigilância sobre a vítima1. Tamanha a importância do valor fundamental do bem tutelado, que o direito penal se preocupou em tipificar o ilícito, que já era objeto de tutela pelos demais ramos do direito, notadamente pelo Direito Civil2. Tendo em vista a independência entre instâncias, uma pessoa pode ser responsabilizada através de um sistema complexo e organizado para equilibrar as relações sociais, podendo imputar-lhe responsabilidade penal, civil, administrativa e laboral concomitantemente.

Sendo a responsabilidade um sistema de justiça, o braço direito do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito cujo fundamento é a dignidade humana, de forma protetiva e promocional, garante-se a todos a tutela de sua integridade psicofísica, além de condições de vida para que a pessoa exerça sua liberdade para projetar e dirigir sua existência. Esse sistema baliza-se a partir da solidariedade social em articulação obrigatória entre o individual e o coletivo, na busca do bem comum, repudiando e prevenindo danos injustos, patrimoniais ou extrapatrimonais3.

O fenômeno não é recente, já considerado um ilícito civil, observado, por exemplo, como forma de assédio moral trabalhista; bullying escolar e universitário, em relacionamentos abusivos passados ou atuais ou mesmo entre pessoas desconhecidas a partir da ocorrência de um fato que desencadeie comportamento obsessivo sobre outra pessoa.

A motivação do stalking varia, muitas vezes por sentimento de inveja, vingança, obsessão, preconceito ou ódio gratuito, materializado por práticas diversas, como ligações inoportunas; envios contínuos de mensagens ou emails; publicações de fatos íntimos ou boatos; remessas de presentes; frequentar os mesmos locais e horários em que saiba que se encontra a vítima, perguntar sobre sua rotina para pessoas próximas, gravar mensagens e ligações sem o devido aviso, dentre outras.

Ainda que o ofensor tenha algum poder legítimo sobre a vítima, ou que tenha a liberdade de coletar informações públicas ou estar coincidentemente nos mesmos ambientes que a vítima, este poder ou esses direitos deverão ser exercidos dentro dos limites do ordenamento, especificadamente pelos direitos fundamentais, não podendo configurar abuso de direito.

Desta forma, tem-se os elementos clássicos para a configuração da responsabilidade civil: O dano, o nexo de causalidade e o elemento volitivo, que no caso é o dolo4.

Embora o stalking físico ainda seja muito comum para manipular a vítima ou prejudica-la em seu sossego e sua paz, na atual sociedade hiperconectada, com o surgimento de novas tecnologias, inicialmente incentivadas pelo anonimato, alargaram-se os meios de assediar, intimidar e monitorar as vítimas dentro do ambiente virtual, ocasião conhecida como cyberstalking.

Na era da "cultura do cancelamento", em que muitas pessoas discordam de opiniões de modo desproporcionalmente agressivo, promovendo verdadeiras campanhas para promoção de boicote ou agressão gratuita à vítima, torna-se ainda mais cruel, podendo ocasionar perda de trabalhos, contatos sociais e danos à sua imagem e de sua família. Ainda mais grave quando o stalker coleta informações anteriores, tirando-lhes do contexto original, deturpando-as com o propósito de atingir a reputação da vítima, demonstrando conduta prejudicial, intencional e violenta, capaz de espalhar rumores maliciosos e mentiras, no sentido de violar sua honra, intimidando-a, dentro de uma relação desigual de poder que poderá desencadear sentimentos de angústia, tensão, ansiedade, medo e até depressão5.

Como conduta ameaçadora, configura real possibilidade de mal grave e injusto, sendo natural a geração de um temor pela segurança da vítima ou de outras pessoas, decorrente de um controle, subjugando-a de modo que não consiga desconectar de sua preocupação, afetando sua vontade e atingindo decisões comportamentais, podendo inclusive ocasionar mudanças de hábitos e escolhas, degradando sua condição humana, gerando danos temporários ou permanentes.

Essa intimidação pode se manifestar pelo modo de tratar, falar, gesticular, escrever, de modo a exercer tal pressão psicológica que a vítima tenha real ciência de que está sendo habitualmente perseguida, através de atos sequenciais, não necessariamente diários, mas capazes de causar-lhe perturbação física e emocional que poderá evoluir para problemas psíquicos ou mesmo físicos, como é o caso da síndrome de Burnout6.

Por conta disso, um dos pontos mais controversos sobre o stalking é relacionado à questão probatória, em relação à demonstração não apenas do dano, mas do nexo de causalidade, como perseguição capaz de atingir efetivamente a paz da vítima, não sendo um mero incômodo ou desconforto por quem lhe acompanhe ou admire. Isso se deve ao fato das provas, nesse caso, serem predominantemente indiciárias ou indiretas, por não configurar conduta de fácil comprovação, já que o stalker não persegue sua vítima de modo evidente, utilizando-se de subterfúgios, terceiras pessoas, perfis falsos, invasões a dispositivos conectados à internet para obter informações.

O direito brasileiro adota a liberdade probatória, podendo-se provar o alegado por todos os meios em direito admitidos e a viabilidade da presunção sobre o nexo causal, em juízo de probabilidade a partir de uma relação de causa e efeito entre o fato e o dano7.

Nesse sentido, ainda que se possa cogitar a quebra de sigilo de dados para a identificação do perseguidor ou comprovação da importunação, seja pelas operadoras de telefonia ou pelos provedores de internet, essa possibilidade ainda é polêmica e muitas vezes negada pelo Poder Judiciário. Desta forma, é conveniente guardar todos os meios de provas explicitamente abusivas ou ameaçadoras, realizando-se Boletim ou Termo Circunstanciado de Ocorrência criminal para uma investigação mais profunda que forme lastro probatório também para uma ação civil.

Todos os meios de prova são importantes nesse momento, sejam testemunhas, Prints de telas, gravações ambientes, perícias, atas notariais, dentre tantos outros, podendo ser requerida, também, audiência de justificação em eventual requerimento de tutela de urgência.

Esse foi o entendimento do Acórdão Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) de 25 de fevereiro de 2021, da Terceira Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul8 que unanimemente reformou a sentença de improcedência do juízo de primeiro grau, que havia entendido não haver prova material direta sobre o ilícito de stalking que fundamentava o pedido de responsabilização civil por danos morais em que a vítima demonstrava receber reiteradamente mensagens e e-mails ofensivos e perturbadores da parte ré.

Considerou a corte que, sobre esse tipo de conduta, há um emprego de inteligência e esforço para se manter em anonimato, característica que mantem o caráter injusto da conduta, encobrindo rastros e vestígios de identificação de autoria, indicando má-fé da parte ofensora, através da capacidade de planejamento, antevisão e persistência.

No caso, levou-se em consideração a improbabilidade da autora lançar-se em uma custosa e desgastante aventura processual contra a ré, contratando advogado para o acompanhamento dos boletins de ocorrência policial anteriores à ação civil, os quais concluíram serem as mensagens originadas de números pré-pagos utilizado em um mesmo aparelho celular pela parte ré direcionados à autora da ação. Alguns desses números estavam registrados inclusive com o CPF da autora, como forma de afirmar ser a mesma autora das mensagens. A Turma destacou ainda a seriedade das providências tomadas pela autora que indicavam uma perturbação real e concreta, não aparentando o dispêndio de tempo e valores para mera simulação.

Com razão houve a reforma da sentença de primeiro grau, mesmo porque atualmente sustenta-se que entre a prova e a verdade existe uma relação teleológica, relacionando o fato com sua causa final, deslocando-se para o raciocínio epistemológico e para o raciocínio de probabilidade. Assim, a verdade possível no processo é a probabilidade lógica, em formulações adequadas da hipótese e sua confrontação para fins de confirmação e não refutação9.

Nesse sentido, sobre o ilícito de stalking, depender-se-ia da aceitação de provas indiciárias, retirando-lhe o caráter de provas subsidiárias, podendo o juiz, em seu livre convencimento motivado, considera-la apta para a procedência ou improcedência do pedido, como prova condenatória que mais se aproxime à verdade, concluindo que supervalorizar a prova formal como incontestável, muitas vezes seria impor à vítima um encargo enorme e invencível.

Assim, considera-se a importância de reconhecer a força probandi das provas indiciárias à conduta de stalking, tanto para a configuração do an debeatur quanto do quantum debeatur, sob pena de esvaziar seu sentido protetivo.

*Agatha Gonçalves Santana é advogada civilista, mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora titular da Universidade da Amazônia – Grupo Ser Educacional, onde ministra aulas na graduação e pós stricto senso. Lider. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade da Amazônia. Associada titular do IBERC.

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1 CASTRO, Ana Lara; SYDOW, Spencer. Stalking e Cyberstalking: obsessão, internet, amedrontamentoBelo Horizonte: D' Plácido, 2017, p. 53

2 MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 32-33.

3 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p. 629-630.

4 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 18

5 SANTANA, Agatha Gonçalves. A responsabilidade dos pais do menor agressor no caso de bullying: Uma decorrência direta das relações de poder. In: LEAL, Pastora do Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. São Paulo: Gen Método, 2014, p. 354-355.

6 DIAS, Sandra. Assédio Moral e suas novas formas. São Paulo: Gestae, 2014. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021.

7 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 5 ed. Salvador: Juspodvm, 2020, p.470

8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CAT Nº 71009850959 (Nº CNJ: 0001645-35.2021.8.21.9000) 2021/CÍVEL. Relator Cleber Augusto Tonial. Porto Alegre: 25 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021.

9 MITIDIERO, Daniel. Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p.198-200.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.