A reparação da lesão moral sofrida, ou, de modo mais amplo, a reparação da lesão que não tenha cunho estritamente patrimonial, é um dos temas mais frequentes no judiciário brasileiro. Por isso, a importância de se fazer o seguinte esclarecimento a título introdutório, pois ainda existe muita confusão com relação aos significados de dano moral e dano extrapatrimonial. Ocorre que não são expressões usadas para identificar o mesmo objeto, em verdade, o dano moral consiste numa das espécies de dano não patrimonial ou dano extrapatrimonial.
É nessa linha de raciocínio que o brilhante jurista italiano Pier Giuseppe Monateri dispõe:
Con la nozione di danno morale si allude al dolore, ai patemi dell’animo, alle sofferenze spirituali, mentre con la locuzione danni non patrimoniali si intende ogni conseguenza peggiorativa che non tollera, alla stregua di criteri oggettivi, di mercato, una valutazione pecuniaria rigorosa. Con la locuzione danni morali si deve, allora, fare riferimento ai perturbamenti dello stato d’animo del soggetto, ingiustamente cagionati da un fatto […].1
Assim, pode-se avançar ao objeto deste breve texto, o tabelamento dos danos extrapatrimoniais desenvolvido no direito italiano.
A aplicação da técnica tabelar no direito italiano teve início de modo muito tímido. Num primeiro momento, seu uso estava restrito aos casos de reparação dos chamados danos à saúde, posteriormente entendidos como danos biológicos.
Há um importante destaque feito pela doutrina italiana com relação a três diferentes métodos reparatórios que antecederam o atual tabelamento. Primeiro, falava-se apenas na valoração equitativa pura pelo magistrado com fundamento no art. 1.226 do Código Civil Italiano. Essa recebeu inúmeras críticas por dificultar a construção de uma uniformidade e harmonização jurisdicional.
O segundo método era conhecido como genovese, que consistia em multiplicar o triplo do valor da pensão social anual pelo coeficiente de capitalização estipulado conforme a idade e o sexo da vítima, e considerar o percentual do grau de efeitos posteriores da lesão. Inaplicável conforme decidido pela a Corte de Cassação em 1993, pela sentença n.3572.
O terceiro, chamado de modelo pisano, era notório por extrair seus valores de percentuais estatísticos de invalidade e de precedentes jurisprudenciais, mostrando-se como uma introdução ao método que seria futuramente chamado de tabelar3.
Diante de um cenário de incerteza quanto ao modo como os valores concedidos a título de danos biológicos eram estabelecidos, começou um movimento nos Tribunais italianos para desenvolver algo que proporcionasse maior segurança jurídica. Com o intuito de evitar que dentro do mesmo Tribunal fossem proferidas decisões manifestamente diferentes em casos similares, surgem as primeiras tabelas, com maior destaque para a elaborada pelo Tribunal de Milão.
Ao contrário das tentativas brasileiras de tabelamento, cujo protagonismo restringe-se ao legislativo, na Itália a construção das tabelas partiu dos chamados observatórios de justiça. Observatório é um grupo de estudiosos formado por advogados, juízes, médicos-legistas e professores universitários, todos atuando com o fim de aprimorar a prática jurídica. Dentre esses grupos, o mais conhecido é o de Milão, que elaborou sua primeira tabela entre 1995 e 1996, cuja aplicação perdurou até a nova edição de 20044.
Nesse contexto, o que parecia ser a solução para harmonizar os julgamentos reparatórios no país começou a enfrentar o mesmo problema de desarmonia entre os valores indenizatórios. Cada Tribunal construiu sua própria tabela, havia, por exemplo, a tabela da região de Florença, de Roma, de Milão entre outras. Tentou-se, inclusive, elaborar uma única tabela nacional, mas isso se mostrou inviável. A real solução adveio da experiência prática, pois com o tempo evidenciou-se a superioridade da tabela milanesa a tal ponto de tanto a Corte Constitucional como a Corte de Cassação adotarem-na como a mais eficaz.
Após a consolidação da tabela milanesa como a mais adequada no âmbito nacional, a Corte de Cassação decidiu ampliar a sua abrangência e através do julgamento n. 394, seção III, de 2 de janeiro de 2007 confirmou a possibilidade de se utilizar a técnica do tabelamento criada para valorar o dano biológico para quantificar o dano moral5.
A título exemplificativo, abaixo trago parte da última edição da tabela do Tribunal de Milão, datada de 2018, mas ainda vigente. Os dados da imagem são referentes à indenização por lesões à integridade psicofísica, com referimento ao dano biológico e a eventual dano moral também consequente. Deve-se atentar para alguns pontos, no canto esquerdo temos o grau de invalidade, que pode ser de 1 até 100, no centro superior temos a faixa etária, que também vai de 1 a 100. Essas duas informações são a principal causa de variação nos valores ao lado do percentual de personalização, que poderá ser maior conforme a idade e o grau de invalidade da vítima6.
Interessante salientar que, a despeito de se chamar "tabela", na verdade não se resume a um conjunto de linhas e colunas preenchidas por números. O documento conhecido como tabela milanesa é composto por diversas páginas que, além de indicadores numéricos apresenta detalhamentos das principais causas de danos extrapatrimoniais (com destaque para os morais).
Além do mais, contém explicações de como identificar os graus de gravidade de diferentes espécies de ofensas (como, por exemplo, uma parte própria destinada ao estudo do dano moral decorrente da difamação via imprensa), o que demonstra a seriedade na construção da técnica e o motivo do seu amplo sucesso.
Esse sucesso deve-se, também, à incessante preocupação dos pesquisadores do observatório de Milão com relação à particularização de cada caso. Há uma quase que perfeita sintonia entre a função harmonizadora dos julgados e o respeito ao caso concreto. É notória a tentativa constante de evitar que haja uma padronização injusta das indenizações.
Tal preocupação não é particular dos pesquisadores, mas também dos tribunais, com destaque à Corte di Cassazione, haja vista a sentença n. 25817 de 2017, através da qual assegurou-se a possibilidade de se ultrapassar os valores propostos nas tabelas, quando no caso concreto se identificar alguma peculiaridade que não tenha sido considerada anteriormente7.
Destaca-se que, recentemente, no julgamento n. 25164 de 10 de novembro de 2020, a terceira sessão da Corte fez um alerta: a personalização do montante indenizatório deve se dar por conta de questões específicas e excepcionais, não podendo ser utilizada como uma forma de superar eventual insuficiência de prova quanto à eventual dano (no caso do julgado o alerta se fez pela suposta falta de provas de que o dano biológico teria causado determinado grau de incapacidade laboral).
Do exposto neste breve texto percebe-se que há uma grande diferença entre a experiência italiana de tabelamento dos danos extrapatrimoniais e a brasileira. A última tentativa nacional, através do art. 223-G da CLT apresenta uma série de defeitos, além de ter sua duvidosa constitucionalidade contestada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Entre suas falhas está a vinculação do valor da reparação ao salário do trabalhador e a inexistência de uma margem de personalização do caso pelos magistrados. Consequentemente, se uma mesma lesão for suportada por um diretor de multinacional e por um auxiliar administrativo, os valores serão extremamente díspares se pensarmos em quanto cada um recebe a título de salário.
O método tabelar milanês, a despeito de muito prático e amplamente utilizado, não é perfeito, sendo objeto de críticas pela própria doutrina italiana. Portanto, através deste escrito não se busca defender a sua adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas, sim, que seja uma inspiração para o desenvolvimento de uma ferramenta própria para o nosso sistema.
Lucas Girardello Faccio é mestre em Direito pela PUC/RS. Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor de Direito Civil. Advogado
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1 "Com a noção de danos morais se remete a dor, às perturbações de ânimo, ao sofrimento espiritual, enquanto que com o termo dano não pecuniário entende-se toda consequência pejorativa que não tolera, medida em critérios objetivos, de mercado, uma rigorosa avaliação pecuniária. Com o termo danos morais refere-se, portanto, às perturbações do estado de espírito do sujeito, injustamente causadas por um fato." [traduziu-se] (MONATERI, Pier Giuseppe. Le fonti delle obbligazioni: la responsabilità civile. Torino: UTET, 1998, p. 296).
2 MONATERI, Pier Giuseppe. Le fonti delle obbligazioni: la responsabilità civile. Torino: UTET, 1998, v. 3, p. 527.
3 MONATERI, P. G.; GIANTI, D.; SILIQUINI, L. C. Danno e risarcimento. Torino: G. Giappichelli, 2013, p. 221.
4 SPERA, Damiano. Tabelle milanesi 2018 e danno non patrimoniale. Milano: Giuffrè, 2018, p. 14.
5 FIANDACA, Lucrezia. Il danno non patrimoniale: percorsi giurisprudenziali. Milano: Giuffrè, 2009, p. 52.).
6 FACCIO, Lucas Girardello. A quantificação do dano moral: o uso de tabelas no direito italiano e a sua viabilidade no direito brasileiro. Porto Alegre: Editora Fi, 2020, p. 119.
7 Segue o trecho da sentença que trata da questão: È stato anche chiarito che, in ipotesi di liquidazione equitativa del danno non patrimoniale mediante applicazione delle 'tabele' predisposte dal tribunale di Milano, il giudice, nell’effetuare la necessaria personalizzazione di esso in base alle circostanze del caso concreto, può superare i limiti minimi e massimi degli ordinari parametri previste dalle dette tabelle solo quando la specifica situazione presa in considerazione si caratterizzi per la presenza di circostanze di cui il parametro tabellare non passa aver già tenuto conto, in quanto elaborato in astratto in base all’oscillazione ipotizzabile in ragione delle diverse situazioni orinariamente configurabili secondo l’id quod plerumque accidit, dando adeguatamente conto in motivazione di tali circostanze e di come esse siano state considerate (SPERA, Damiano. Tabelle milanesi 2018 e danno non patrimoniale. Milano: Giuffrè, 2018, p. 20).
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).