O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) apontou, recentemente, que o último ano foi marcado não só pela pandemia da Covid-19, mas também pela intensificação das mudanças climáticas. Estima-se que cerca de 51,6 milhões de pessoas no mundo foram afetadas diretamente por inundações, secas ou tempestades e, ao mesmo tempo, tiveram que lidar com os impactos socioeconômicos e de saúde provenientes da pandemia.1
A cada dia, o clima do planeta sofre mudanças e grande parte dessas vem sendo promovidas por ações antrópicas. Isto é, muito embora o clima terrestre sempre tenha passado por variações naturais de aquecimento e resfriamento, as intervenções humanas dos últimos anos estão afetando diretamente essa variação natural, de modo que a ação antrópica passou a ser um fator determinante das mudanças climáticas e de seus efeitos intergeracionais.2
Tais mudanças climáticas antrópicas decorrem, notadamente, da emissão de gases de efeito estufa (GEE) que, ao permanecerem retidos, impactam negativamente a composição da atmosfera, o meio ambiente, a biodiversidade e a saúde humana em escala mundial.
Como reação a esse cenário, a litigância climática no campo da responsabilidade civil ganha importância ímpar na atribuição do ônus específico de reparar os danos climáticos decorrentes dessas intervenções humanas no meio ambiente.
Nesse contexto, pode-se observar, em diversos países, nos últimos tempos, o número crescente dessas ações que buscam a responsabilização dos agentes emissores de GEE, a fim de que passem a interiorizar essas externalidades negativas produzidas em desfavor do meio ambiente e da sociedade como um todo. Por sua vez, no cenário pátrio, entre as ações pioneiras nesse sentido está a Ação Civil Pública por Dano ao Meio Ambiente natural e por Dano Climático, movida em 2019 pela Advocacia-Geral da União (AGU), em face de Siderúrgica São Luiz Ltda e de Geraldo Magela Martins (sócio administrador), por meio da Procuradoria Federal de Minas Gerais, representando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em face de Siderúrgica São Luiz Ltda e de Geraldo Magela Martins (sócio administrador)3.
A temática sobre a responsabilidade civil por danos climáticos é, portanto, nova no direito brasileiro e traz consigo importantes desafios, posto que permeada por incertezas, a saber se a conduta humana deu causa às mudanças climáticas ou quais seus possíveis efeitos danosos adversos.
A chave para as respostas a esses desafios sobressai da norma específica a ser aplicada às mudanças climáticas: a lei 12.187 de 2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) no ordenamento jurídico nacional. Isso porque as fontes e os efeitos das mudanc¸as clima'ticas e seus responsáveis estão delimitados normativamente, destacando-se quatro importantes definições: "mudança do clima", "efeitos adversos da mudança do clima", "fonte" e "Gases de Efeito Estufa (GEE)".
Para os fins da lei, mudanças climáticas são, assim, qualquer "mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis" (art. 2, inc. VIII). Efeitos adversos das mudanças climáticas, por sua vez, são entendidos como "mudanças no meio físico ou biota resultantes da mudança do clima que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resiliência ou produtividade de ecossistemas naturais e manejados, sobre o funcionamento de sistemas socioeconômicos ou sobre a saúde e o bem-estar humanos" (art. 2, inc. II). Fonte causal é definida como todo "processo ou atividade que libere na atmosfera gás de efeito estufa, aerossol ou precursor de gás de efeito estufa" (art. 2, inc. IV). E, finalmente, Gases de Efeito Estufa (GEE) são "constituintes gasosos, naturais ou antrópicos, que, na atmosfera, absorvem e reemitem radiação infravermelha" (art. 2, inc. V).
Além dessas importantes definições, a norma cuidou de delimitar a correlação entre a participação na fonte causal e a responsabilidade pelo impacto antropogênico nas mudanças climáticas (art. 3º), de modo que o dever de indenizar restará caracterizado diante da contribuição e do efeito da geração de fonte emissora de GEE para a subsequente mudança do clima e seus efeitos adversos.
Da análise dos conceitos legais aplicáveis, não se pode deixar de notar que mesmo a fonte de emissão que está devidamente licenciada poderá, ainda assim, causar danos climáticos. No entanto, apenas serão assim considerados quando a fonte emissora ultrapassar o que a doutrina nacional vem tratando por grau de tolerabilidade dos reflexos da conduta humana no meio ambiente.4
Sobre o assunto, Morato Leite e Patryck Ayala5 apontam que, a toda evidência, qualquer ação humana é hábil a gerar reflexos ambientais, mas a grande diferença está na tolerância da norma acerca dessa fonte específica. Por isso, a análise da gravidade do dano ambiental será sempre indispensável para a responsabilização.
Tal aspecto é sanado com a leitura do artigo 3º, inciso III, alínea e, da PNMA, que define poluição como "a degradacção da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos" (grifou-se). Ou seja, a conduta se caracteriza como antijurídica quando produz GEE acima do nível permitido para a sua atividade normalmente desenvolvida.
Nesse cenário, a causalidade6 deve ser analisada a partir da contribuição da emissão, implicando na relação direta entre a fonte poluidora e as mudanças climáticas. No aspecto, tanto a teoria da causalidade adequada, como a teoria do escopo de proteção da norma violada podem servir de importante mecanismo para a aferição das causas do dano climático. Isso porque, uma vez devidamente delineada a norma de conduta violada e seu potencial danoso ao clima, bem como à poluição ambiental, chega-se à identificação do escopo protetivo, em seus mais diversos aspectos. Da mesma forma, é possível identificar a causa adequada do dano, considerando a relação de adequação entre a emissão de GEE e as mudanças climáticas, verificando-se se determinada condição elevou objetivamente o risco de dano ambiental.
Em suma, é de se pontuar, portanto, que a responsabilidade pelo dano climático estará configurada quando: (i) ocorrer atividade que se configura como fonte de emissão de GEE; (ii) a emissão for enquadrada como poluição ambiental, seja por ação de poluidor direto, seja por ação de poluidor indireto, por consistir em emissão intolerável de material que contribua negativamente para com o equilíbrio climático; e (iii) a emissão resultar em degradação ambiental climática.
Não há dúvidas de que as mudanças climáticas representam um dos maiores desafios da contemporaneidade. O clima e os ecossistemas mundiais estão sendo alterados, ano após ano, em níveis nunca antes vistos, justamente em razão da ação humana nos últimos tempos. É premente, assim, a necessidade de se avançar não apenas nos padrões de controle criados para conter os riscos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mediante a limitação de emissões de GEE aos parâmetros do Acordo de Paris, mas também no reconhecimento da responsabilidade civil do agente-poluidor pelo dano climático próprio ou pelos danos decorrentes de tais mudanças.
Sabrina Jiukoski da Silva é doutoranda e mestra em Direito pela UFSC. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Cesusc. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).
Thatiane Cristina Fontão Pires é doutoranda e mestra em Direito pela UFSC. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.
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1 United Nations Environment Programme. Adaptation Gap Report. Nairobi, 2020. Disponível em file:///C:/Users/Sabrina/Downloads/AGR2020.pdf. Acesso em 03 mar. 2021.
2 MARENGO, José A. Mudanças Climáticas Globais e seus efeitos sobre a Biodiversidade: caracterização do clima atual e definição das alterações climáticas para o território brasileiro ao longo do século XXI. 2 ed. Brasília, MMA, 2007.
3 Para maiores considerações, cf. JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. p. 671-687, 2020.
4 Sobre o assunto, ver: STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato (Orgs.). Direito e mudanças climáticas: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010, p. 27.
5 MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patryck de Arau'jo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Sa~o Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
6 Importa observar que para o entendimento dessas autoras, o nexo de causalidade é pressuposto indispensável para a caracterização do dever de indenizar. Para maiores esclarecimentos, ver: JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina; PIRES, Thatiane Cristina Fontão. Mudanças climáticas e responsabilidade civil: um estudo de caso sobre a reparação de danos climáticos. Revista Brasileira de Política Públicas, Brasília, v. 10, n. 3. P. 671-687, 2020.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).