Migalhas de Responsabilidade Civil

Fixação do valor do dano extrapatrimonial e o consumidor como grupo social: um problema para a responsabilidade civil?

Fixação do valor do dano extrapatrimonial e o consumidor como grupo social: um problema para a responsabilidade civil?

9/3/2021

O conceito de consumidor tem sido constantemente enfocado, principalmente pelos tribunais brasileiros, como sendo relativo a um sujeito individual. Isso é um problema - adianto a resposta à pergunta constante do título - para a efetividade da política nacional de defesa do consumidor.

Toda a teoria de responsabilização civil, no Direito do Consumidor, do fornecedor pelos vícios e fatos de produtos e serviços, bem como pela publicidade mal realizada, assim como por práticas abusivas e relativa à proteção contratual, foi pensada a partir do reconhecimento da tipicidade da posição do consumidor no mercado e de uma característica que dá sentido ao próprio chamado microssistema de proteção e defesa do consumidor:  a vulnerabilidade. Ela não é uma qualidade empírica de um consumidor específico em uma dada situação, mas um princípio normativo (contrafático, portanto) que dá sentido à busca da realização da igualdade substantiva, constitucionalmente prevista. Ao constituir a própria possibilidade do microssistema de proteção e defesa do consumidor, a vulnerabilidade é um princípio no sentido próprio do termo, pois dá sentido e legitima esse campo da experiência jurídica (prática), permitindo, por exemplo, estabelecer normas de tratamento diferenciado em favor do consumidor, compreendidas como instrumentos de realização da igualdade.

Um bom exemplo de como interpretar um problema de responsabilidade civil no âmbito da defesa do consumidor é o caso da quantificação do valor devido quando ocorre dano extrapatrimonial, o quantum debeatur no chamado dano moral. A dimensão coletiva do problema pode facilmente identificada pela expressão (equívoca, me parece) "indústria do dano moral". Um dos significados dessa expressão é o de que há grande número de ações judiciais nas quais se pleiteia dano moral, movimento de alguma forma análogo ao de uma indústria, algo em larga escala, em um padrão fabril de manifestação.

Há uma dimensão moral de significado implícita nessa expressão que diz respeito à desconfiança de que os consumidores estejam pleiteando direitos que não existem e que, como resposta, o Judiciário, por inocência ou por conivência, decide a seu favor, levando a uma estratégia coletiva dos consumidores para ganhar algo que não lhes é devido. A realidade, parece-me, é outra. O grande número de ações judiciais pleiteando indenizações decorrentes do descumprimento das normas de defesa do consumidor é resultado de uma atuação estratégica das grandes empresas, especialmente nos setores regulados, que instrumentalizam estrategicamente a ordem jurídica e o comportamento do Judiciário a seu favor, tendo em vista, obviamente, o lucro. Aqui não temos espaço para formular esse ponto, mas me parece ser nítido a todos que têm qualquer experiência com a prática forense o fato de que empresas como as de telefonia, por exemplo, abarrotarem as pautas dos juizados especiais cíveis, serem condenadas em danos morais com freqüência e, ainda assim, continuarem a lesar os consumidores. É intuitivo concluir que esse tipo de conduta seja lucrativa e que as condenações em danos morais não têm como resultado qualquer mudança significativa na conduta das empresas.

É necessário considerar as variáveis de intensidade e de escala como fatores importantes no momento da fixação do valor indenizável por danos extrapatrimoniais cometidos. Pretendo recuperar aqui uma discussão que fiz há alguns anos sobre esse tema, buscando sintetizá-la e postular um modelo de interpretação e aplicação das normas de responsabilidade civil aplicáveis, capaz de produzir incentivo à mudança de conduta dos fornecedores e efetivar a proteção em chave coletiva.

Meu argumento alinha quatro postulações relacionadas entre si, as quais formam uma tese sobre a indenização por dano moral com função punitiva no direito do consumidor: 1. O chamado dano moral não se verifica somente quando há lesão relativa à ofensa aos direitos de personalidade do sujeito. 2. A indenização por dano moral com função punitiva deve ser compreendida, para que faça sentido, como instrumento de calibração econômica do comportamento do agente ofensor. 3. A indenização com função punitiva tem como objetivo prioritário a coibição da reiteração da conduta do ofensor, além da satisfação do direito do ofendido e, portanto, objetiva mais condicionar as expectativas de conduta do ofensor do que a recomposição de bem jurídico lesado do ofendido. 4. A quarta asserção, que em parte decorre das anteriores, é relativa à definição de dever jurídico no direito do consumidor, subsistema do direito no qual as características específicas dos vínculos entre os agentes no mercado demandam que, na identificação sobre o que vem a ser dano, sejam considerados elementos hermenêuticos próprios à tipologia dos contratos relacionais, distintos daqueles disponíveis na matriz epistemológica liberal da teoria dos contratos.

São muitas as decisões dos tribunais sobre o dano moral como um dano in re ipsa. Nesses casos, o que tribunal faz é atribuir um valor extrínseco à conduta do ofensor, em dimensão objetiva, independentemente de como essa conduta repercute na psique ou na afetividade do lesado.  Dispensar a prova do dano moral significa desconsiderar, na prática, a necessidade da existência de qualquer afetação negativa da esfera dos direitos da personalidade do ofendido. 

Isso nos leva a uma primeira síntese: a de que é possível haver condenação da conduta do ofensor - no caso de uma relação de consumo, um fornecedor - sem que tenha havido efetivamente, de forma atualizada, dano a direito da personalidade do ofendido.

Segundo ponto: um tipo de fornecedor que age em larga escala e que tem nas normas de defesa do consumidor uma variável a ser considerada no cálculo econômico de eficiência tendo como objetivo a maximização de lucro, é um litigante habitual e estratégico. Nesse contexto, a função punitiva da indenização por dano moral funciona como um elemento sancionatório dissuasor da reiteração da conduta lesiva pelo fornecedor. Ao cumprir essa função, do ponto de vista sistêmico, espera-se que a regra resultante de uma decisão que afirme a imposição de valores indenizáveis com finalidade punitiva sinalize ao mercado que pode não ser eficiente e lucrativo, por exemplo, inserir o nome do consumidor em cadastro de inadimplentes de forma ilícita como mecanismo de cobrança de determinada coletividade de consumidores.

O fornecedor é um agente amoral que tem como preocupação a eficiência econômica de sua atuação mercadológica. Responde, assim, à lógica da atuação baseada em um código binário de estímulo econômico positivo ou negativo. A atuação do Judiciário, nessa medida, passa a objetivar a programação futura da atuação dos agentes econômicos.

Como terceiro ponto, penso que a abordagem coletivista é a forma mais adequada de dar sentido e operar o direito do consumidor como critério de solução de conflitos e sistema normativo de organização das relações de mercado entre sujeitos em situação de assimetria de poder. Na consideração do consumidor como sujeito de direito, o enfoque a ser dado não é o individualista, mas o transindividual. Os conceitos, o funcionamento do direito do consumidor (princípios, pressupostos teóricos, conceitos gerais, regras processuais etc) e seu repertório normativo são fruto do consenso histórico sobre a necessidade da tutela de uma categoria subjetiva que, estando em uma situação específica (um status, mesmo que transitório), se encontra em estado de vulnerabilidade e merece ser protegida. Não é só o indivíduo que é vulnerável, mas sim a classe (ou uma tipologia, poderíamos dizer) de indivíduos que atuam na sociedade e no mercado. Daí dizer-se que o direito do consumidor não faz parte do grande campo do direito privado, mas mescla com o privatismo aspectos de interesse claramente público, se manifestando como parte integrante do direito social.

Por fim, é a partir da conformação de uma teoria como a dos contratos relacionais que se poderá formar uma prática interpretativa que leve em conta aspectos como vulnerabilidade, poder (e seu excesso), capacidade de arcar com prejuízos (e, portanto, distribuição dos mesmos), importância dos bens objeto dos contratos, necessidades específicas das partes, etc. A teoria hegemônica não tem sido capaz de responder ao problema de solucionar conflitos que têm por base contratos que reúnem as características dos contratos relacionais.

Explicitar o enquadramento dos contratos de consumo como contratos relacionais é, como já adiantado, apresentar mais uma ferramenta teórica apta à abordagem de conceitos como onerosidade excessiva, boa-fé objetiva e eqüidade, base da reflexão sobre a noção de dever jurídico e diretamente relacionados com a utilização da indenização com função punitiva.

A boa-fé objetiva é elemento de fundamental importância em um modelo de concepção de contrato que privilegia a solidariedade, a longevidade da relação, a comunidade de interesses e valores, sendo ela que determina o que significa a frustração de legítima expectativa, relacionada diretamente com a imposição de indenização com função punitiva, calibradora das expectativas de conduta dos fornecedores.

A boa-fé, geralmente conceituada como transparência, lealdade, um compromisso de fidelidade, de bem agir e de cooperação nas relações contratuais, se constitui em princípio regulador hermenêutico, permitindo considerar diversos valores e princípios como, por exemplo, a vedação do enriquecimento ilícito e as funções punitiva e pedagógica das indenizações. A boa-fé expressa, segundo essa visão, o que a sociedade espera do homem que age com retidão, sendo sua função para a teoria contratual relacional de regulação da tensão entre valores coletivistas ou individualistas e da veiculação adequada das ideias de distributividade de riscos e de custos sociais e da a autonomia da vontade. 

Em síntese, com a modificação da natureza dos contratos, se no modelo tradicional clássico as trocas eram descontínuas, hoje a forma contratual mais habitual é a relacional, na qual as expectativas não monetizáveis são mais intensas e o conceito de legítima expectativa deve ser avaliado em função das práticas normativas que se estabelecem no mercado, tal como o oportunismo econômico de fornecedores que funcionalizam os custos de indenizações baixas a ponto de serem lucrativas se realizadas em larga escala. Com isso se quer sublinhar que o quantum debeatur deve ser estipulado segundo não somente uma matriz decisória de base moral, mas visando ao desestímulo à reiteração da conduta lesiva, o que leva à introdução da variável escala para a sua determinação. Por sua vez, como parâmetro de conduta objetivo, a boa-fé permite a calibragem das expectativas em torno das regras de solução de conflitos futuros sendo, portanto, um elemento constitutivo da regra que determina a quantificação da indenização, entrando em jogo, nesse caso, a intensidade da sanção.

Por fim, duas observações. Em relação ao argumento de que indenizações mais altas tornariam o preço dos produtos mais elevado, dada a possibilidade de repasse de custos, deve-se lembrar que a competição no mercado é o antídoto contra o repasse integral do custo da função punitiva da indenização, o que somente pode ser conseguido se efetivamente o preço for limitado pela concorrência. Mas esse nos parece um tema de específica complexidade e merecedor de análise em outro espaço de reflexão que escapa ao escopo e às pretensões do presente artigo.  Pode-se sustentar que a situação ideal seria que houvesse um fundo público para o qual fossem destinadas as condenações por danos extrapatrimoniais punitivos. Ocorre que, na sua falta, e essa é a realidade presente, postulamos que é melhor dissuadir o fornecedor assumindo a possibilidade de que um ou outro consumidor aumente seu patrimônio.

*Roberto Freitas Filho é mestre e doutor em Direito pela USP e pós-doutor pela Universidade de Wisconsin - Madison - EUA. Professor dos Programas de doutorado e mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Desembargador no Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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