Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil do Estado por leis inconstitucionais

Responsabilidade civil do Estado por leis inconstitucionais.

4/3/2021

No filme The Hurricane (1999), o ator Denzel Washington interpreta Rubin "Hurricane" Carter, um pugilista em ascensão que teve sua carreira interrompida por uma prisão permeada por suspeitas de perseguição racial, eis que o polígrafo e testemunhos foram no sentido de que o personagem e seu colega não estavam envolvidos em um crime de homicídio. Após anos de luta, Carter consegue uma nova chance perante o júri e, por fim, obtém o reconhecimento do erro em sua prisão e, por conseguinte, a sua liberdade por meio da declaração de inocência.

Essa ideia de erro em aprisionar alguém está no filme Milagre na Cela 7 (2019), que trata da história de um pai com deficiência mental preso indevidamente pelo falecimento acidental da filha de um militar atuante no alto escalão governamental. A trama passa por todo o (in)devido processo jurídico no qual a personagem, Memo, é condenada à morte sem a adequada apreciação dos pedidos de provas, provas que poderiam reverter o desfecho do julgamento.

Ambas as películas cinematográficas retratam um ato do Estado que repercute indevidamente na esfera jurídica de alguém com as chamadas prisões por erro judicial (= erro estatal). Desses erros do Estado – que podem ser de tipos variado, e no âmbito dos seus três poderes – resulta a aplicação do regime da responsabilidade civil do Estado.

O regime da responsabilidade civil estatal dialoga com a teoria geral do Direito ao se vislumbrar que o sistema jurídico atribui ao Poder Público o dever derivado indenizatório em razão de certos comportamentos, lícitos ou ilícitos, adotados. Apesar dessa ideia estar positivada, a responsabilidade civil estatal passou por três grandes fases1: (i) a da irresponsabilidade, que tinha como base a ideia de que os atos do soberano advinham de uma autoridade incontestável; (ii) a civilista, que traçou linhas gerais da responsabilidade estatal a partir da feição subjetiva, a teoria da culpa, determinando que apenas atos de gestão (= praticados em igualdade com os particulares) atraiam a responsabilização, enquanto os atos de império (= praticados com superioridade aos particulares), não; e (iii) a publicista, que primeiro desvinculou a culpa do agente da culpa estatal, ainda persistindo a ideia de responsabilidade subjetiva, e, após, tratou do regime da responsabilidade objetiva, especialmente a partir das teorias do risco administrativo (que admite excludentes de responsabilização) e risco integral (que inadmite excludentes de responsabilização).

Atualmente, os elementos que perfazem o dever indenizatório são o fato lícito ou ilícito, o resultado danoso e o nexo de causalidade. O estágio a que se chegou por meio da Lei Fundamental brasileira prescinde em algumas hipóteses do dolo ou da culpa em relação às pessoas jurídicas, exigindo-se tais elementos subjetivos com relação ao agente causador do dano se contra ele houve regresso por parte das entidades morais (passando a ser responsabilidade subjetiva no caso pessoa jurídica-agente causador). Segundo enuncia a Constituição: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (art. 37, § 6º)2.

Nesse momento é que se chega à questão acerca da aplicação do regime da responsabilidade civil extranegocial em relação aos atos inconstitucionais emanados do Estado-Legislador, ou seja, à atribuição de um dever indenizatório estatal por leis inconstitucionais. Dessa leitura vê-se que as pessoas jurídicas de Direito Público em geral e as pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviços públicos respondem objetivamente por fatos a elas imputáveis, especialmente atos cometidos por seus agentes3. A última parte do texto constitucional transcrito permite que a parte que respondeu perante o terceiro busque o ressarcimento junto a seu agente se este agiu com dolo ou culpa.

O mandado de injunção permite compreender a dúvida sobre a responsabilidade do Estado-Legislador, pois das suas três fases no âmbito judicial, uma delas conferia à parte lesada pela omissão inconstitucional a busca por indenização – tese esta superada pela atual visão concretista consolidada na lei 13.300/2016. Se o Estado-Legislador responderia por suas omissões, então pode-se indagar acerca da existência da responsabilização estatal por atos comissivos, especificamente por leis consideradas inconstitucionais.

Sobre a indagação acima, Juliana Cristina Luvizotto4 expõe que há duas correntes. A primeira responde que não há como responsabilizar o Poder Público em sua feição legislativa, pois se trata de ato que representa a vontade geral e, portanto, é revestido da imunidade parlamentar, soberano, abstrato, genérico e que inova a ordem jurídica com espaço de conformação legislativo que efetivamente tem poder de constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas subjetivas.

A segunda corrente aduz que é possível responsabilizar o Poder Público pelo exercício inconstitucional da função legiferante5, eis que o vício de inconstitucionalidade é constatado pela decisão judiciária, cuja carga declaratória remete às origens do texto legal e, também, que a disciplina legal brasileira (leis 9.868/1999 e 9.882/1999) e a disciplina constitucional de Portugal (art. 282º) mostram que as decisões que decretam a inconstitucionalidade, regra geral, retroagem, em evidente referência à doutrina do judicial review estadunidense, desfazendo os atos inconstitucionais e abrindo margem para reclamos indenizatórios.

Apesar da divergência quanto ao plano e quanto à carga eficacial da decisão de inconstitucionalidade, a segunda corrente parece fazer mais sentido, à luz da teoria geral da responsabilidade civil do Estado, mas com algumas considerações se fazendo necessárias tanto sobre a inconstitucionalidade quanto sobre a decisão judicial pertinente. Inconstitucional é o ato que não atende aos requisitos de validade inscritos na Constituição e cujas consequências podem ou não ser a fulminação do ato. O STF (RE 226.643, RE 153.464, Inq 3.932) já se manifestou sobre a viabilidade de responsabilizar o Estado por lei inconstitucional, desde que não haja modulação dos efeitos da decisão, sendo este um critério crucial para o pleito indenizatório. Calham dois arestos ilustrativos: no primeiro, o STF (RE 153.464) apreciou caso no qual fixou entendimento de que "O Estado responde civilmente por danos causados aos particulares pelo desempenho inconstitucional da função de legislar"; no segundo caso, também analisado pela Corte Constitucional brasileira (RE 158.962), constou no teor da ementa que "Cabe responsabilidade civil pelo desempenho inconstitucional da função de legislar".

Um segundo critério é sobre a extensão da inconstitucionalidade para além dos casos. Segundo decisão do STJ (REsp 571.645), pressupõe a responsabilização estatal por ato legislativo inconstitucional que a invalidade tenha sido decretada em sede de fiscalização principal e abstrata de constitucionalidade. Discorda-se de tal posicionamento, em razão do fato de que outras vias além daquela do controle citado permitem expandir efeitos: é dizer, não há necessidade do uso do controle principal e abstrato, eis que o regime de repercussão geral e o crescente empenho em tornar as decisões judiciais das Cortes mais coerentes dão sinais de paulatino overruling do pensamento fixado pelo STJ, no citado REsp 571.645 (que exige o procedimento de maior abstração).

A superação da visão inicial sobre o segundo critério é ilustrada com decisões do STF pela via do Recurso Extraordinário (RE 153.464, RE 158.962, RE 210.917, RE 226.643), todas no sentido de tornar mais palpável a responsabilização do Estado em razão de ato legislativo inconstitucional cuja decretação teve efeitos retroativos.

Além do posicionamento judicial sobre o tema, a segunda corrente ganha certo predomínio pelo fato de que (i) a lei emana do Poder Constituído, que não é soberano, e sim sujeito aos limites constitucionais; (ii) se se fala de erro judiciário, hipótese de responsabilização do Estado-Juiz, de dano oriundo da Administração, que gera o dever indenizatório do Estado-Administrador, o Estado-Legislador não escapa da igualdade na seara da responsabilidade civil em relação às leis inconstitucionais; (iii) os atos legislativos não são sempre gerais e abstratos, podendo ser concretos e especiais, o que pode ser fonte do dever derivado de indenizar; e (iv) a despeito do fato de ser presumível a vontade geral nos atos legislativos, fato é que existem grupos que podem ser afetados, com destaque para as minorias políticas, que são tuteladas com grande ênfase pelo papel contramajoritário judicial, que pode reconhecer o dever de indenizar os grupos afetados.

Com relação ao regresso, exige-se harmonização em razão da imunidade parlamentar, que abrange a responsabilidade civil (STF, RE 226.643). No caso, adota-se uma interpretação de pertinência funcional quanto à imunidade parlamentar: estará imune se o exercício da função legislativa ocorrer dentro dos limites, todavia, haverá fuga de tal imunidade se houver abusos por parte do membro do Legislativo, isto é, respondem civil e criminalmente por atos abusivos ou estranhos em relação às imunidades conferidas. O STF (Inq 3.932) reconheceu a exceção à imunidade em manifestação parlamentar não acobertada pela inviolabilidade material, o que abriu margem para a busca por indenização pela vítima.

Conciliando os artigos 37, § 6º, e 53 da Constituição Federal, por meio da aplicação ou da teoria do abuso de posição jurídica ou do não-acobertamento do ato, o parlamentar responderá regressivamente por um ato legislativo inconstitucional se evidenciado que seu ato foi proferido sob evidente abuso da imunidade parlamentar ou sem qualquer nexo com o mandato eletivo.

Às hipóteses acima são aplicáveis regimes jurídicos diversos: a disposição do § 6º ao art. 37 é aplicável nos casos nos quais não há pertinência entre o ato e o mandato, atraindo a responsabilização subjetiva do agente público legislador. Por outro lado, ao se falar de abuso de posição jurídica (= da imunidade parlamentar), aplica-se a teoria objetiva do abuso6, a qual prescinde de demonstração de dados psicológicos da culpabilidade, cabendo para a responsabilização demonstrar a relação de causa entre o comportamento adotado pelo legislador e o ato inconstitucional que gerou dano a um terceiro.

*Felipe Bizinoto Soares de Pádua é advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional, em Direito Registral e Notarial, em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade, todos pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB), e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), e membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). 

**Marcel Edvar Simões é procurador Federal. Doutor e mestre em Direito Civil, e bacharel em Direito, todos pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil e Direito Digital na Universidade Paulista. Professor-convidado nos cursos de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC).

__________

1 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. São Paulo: Almedina, 2015, p. 33 e ss.; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1452 e ss.

2 Aqui cabe destacar que o processo legislativo é de caráter complexo e que envolve agentes de outras funções do Estado, o que atrairia a responsabilização-regresso a que, p. ex., inicia ou sanciona um projeto de lei. Para fins deste artigo, a aplicação do regime do regresso ficará restrita ao âmbito do Legislativo, sem que, todavia, não deixe de ser suscitada essa necessária ampliação para melhor análise acadêmica e consequente aplicação prática.

3 Obviamente, a perspectiva é feita sem considerar que o ordenamento legal atribui a responsabilização objetiva, p. ex., a partir do risco trazido por certa atividade, cf. art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro.

4 Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. Cit., p. 117 e ss.

5 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado Legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. Cit., p. 127 e ss.; FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 319-320.

 

6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, pp. 610-613.

__________

Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.