Migalhas de Responsabilidade Civil

O STJ e o dano moral coletivo: entre conduta e interesse tutelado

O STJ e o dano moral coletivo: entre conduta e interesse tutelado.

11/2/2021

Uma das mais importantes e interessantes discussões no âmbito da responsabilidade civil refere-se ao dano extrapatrimonial (ou moral)1 coletivo. É tema que envolve, por exemplo, considerações sobre ilicitude, interesses juridicamente protegidos, dano ressarcível, funções da responsabilidade civil – portanto, um rico tema para análise.

Assim como sua vertente individual, essa figura também sofreu contestação inicial. A decisão da 1.ª Turma do STJ no Recurso Especial 598281/MG (rel. Min. Luiz Fux, rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki, 1.ª T., j. 02/05/2006) é considerada um marco importante sobre o tema, especialmente em razão dos debates em torno das posições sustentadas, de um lado, pelo Min. Luiz Fux, relator – defendendo o reconhecimento jurídico do dano moral da coletividade –, e, de outro, do Min. Teori Zavascki, redator para o Acórdão – sustentando que “a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa”, não sendo compatível com "a ideia de transindividualidade (= da indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão".

Naquela oportunidade, a posição defendida pelo Min. Zavascki sagrou-se vencedora; no entanto, o tema voltou a ser analisado em diversas oportunidades2 e, hoje, com o reconhecimento de sua viabilidade jurídica, parece superada a discussão3.

Neste breve ensaio, cumpre analisar duas importantes questões: qual é a conduta que se busca evitar e qual é o interesse que se busca tutelar por meio de condenação à indenização por dano moral coletivo, com base no entendimento do STJ. Entende-se que a compreensão desses dois pontos é crucial para ter-se maior segurança e clareza acerca das situações em que é legítima a sua concessão.

Hoje há uma aparente unanimidade quanto ao fato de que não é qualquer infração à lei que acarreta o dano moral coletivo. Constata-se, em diversos julgados, a utilização de uma variedade de expressões "qualificadoras" que tornariam uma infração apta a ser sancionada4 por meio de indenização: por exemplo, a conduta ilícita deve agredir, "de modo ilegal ou intolerável, os valores normativos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva" (REsp 1819993/MG, rel. Min. Herman Benjamin, 2.ª T., j., 03/11/2020); configurar "grave ofensa à moralidade pública" (REsp 1303014/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, rel. p/ acórdão Min. Raul Araújo, 4.ª T., j. 18/12/2014); ser "grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva" (REsp 1438815/RN, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 22/11/2016); ou, ainda, atingir "alto grau de reprovabilidade", de modo a transbordar "os lindes do individualismo, afetando, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais" (REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª T., j. 27/10/2020).

No entanto, essas expressões, analisadas abstratamente, pouco ou nada dizem a seu respeito. É necessário ir além, e várias questões podem – e devem – ser suscitadas. O que significa "intolerável"? O que provoca "repulsa e indignação na consciência coletiva"? O que configura "grave ofensa à moralidade pública"? Como caracterizar "intranquilidade social"? Não se trata de fazer uma crítica apriorística à utilização desses conceitos; o problema decorre "do uso de expressões sem conteúdo preciso ou desprovidas de delimitação dogmática que, em verdade, pouco ou nada dizem"5.

O problema, aliás, não é novo. A mesma questão foi enfrentada na análise do dano moral individual: o seu ressarcimento não pode configurar arbítrio ou subjetivismo do julgador, de modo que "o juiz há de ter critérios (...) e a pertinência de tais critérios há de ser objeto da motivação da sentença"6.

As respostas dependem do caso concreto. A análise de julgados pode lançar luz ao significado dessas expressões "qualificadoras". Não se fará, aqui, análise favorável ou contrária à conclusão alcançada nesses julgados; apenas se apresentará situações consideradas aptas, pelo atual entendimento, a acarretar dano moral coletivo.

Em recente caso, a 2ª Turma do STJ enfrentou situação referente a uma empresa autuada diversas vezes, em dois anos, por permitir que seus veículos trafegassem em rodovias nacionais com excesso de peso. A partir da consideração de que o direito ao trânsito seguro trata da "vida, saúde e bem-estar coletivos, três dos pilares estruturais do Direito brasileiro", e de que seria fato notório "que o tráfego de veículos com excesso de peso provoca sérios danos materiais às vias públicas" – aliado à conduta reiterada da empresa –, a Turma concluiu que a conduta da empresa agravaria os "riscos à saúde e à segurança de todos, prejuízo esse atrelado igualmente à redução dos níveis de fluidez do tráfego e de conforto dos usuários", sendo apta a acarretar dano moral coletivo (REsp 1819993/MG, rel. Min. Herman Benjamin, 2.ª T., j. 03/11/2020).

A 3ª Turma do STJ também considerou intolerável conduta de instituição bancária de submeter seus clientes com dificuldades de locomoção à utilização de escadas em agência bancária, com nítida preocupação com a promoção de acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida (REsp 1221756/RJ, rel. Min. Massami Uyeda, 3ª T., j. 02/02/2012).

Por outro lado, a mesma Turma considerou que exigir tarifa bancária considerada indevida "não infringe valores essenciais da sociedade, tampouco possui os atributos da gravidade e intolerabilidade, configurando mera infringência à lei ou ao contrato", sendo insuficiente para caracterizar dano moral coletivo (REsp 1502967/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 07/08/2018).

Da mesma forma, apesar de reconhecer a ilicitude da atividade de exploração de atividade de bingo, a 3.ª Turma considerou que, no caso, tratava-se de "associação civil sem fins lucrativos que realizou a conduta em questão (bingos e sorteio prêmios) com a finalidade de angariar fundos para o fomento do desporto local", motivo pelo qual, "em razão do contexto social da prática da recorrente, impossível a afirmação de que sua conduta provocou um profundo abalo negativo na modal da comunidade em que está inserida" (REsp 1438815/RN, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 22/11/2016).

Destaca-se, ainda, interessante caso que tratou da suposta "máfia do apito", referente às alegações de fraude na arbitragem de futebol em 2005. A 3ª Turma do STJ considerou que o Estatuto do Torcedor assegura ao torcedor o direito de a arbitragem das competições administradas por entidades do desporto ser independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões. No entanto, "a análise acerca da configuração do dano moral coletivo na espécie deve levar em conta a percepção do torcedor médio", desconsiderando-se os extremos (de um lado, os que assistem determinadas modalidades esportivas em seus momentos de lazer; de outro, os que colocam determinada modalidade como sua prioridade). A partir disso, considerou-se a ausência de lesão "intolerável, com inadmissível agressão ao ordenamento jurídico e aos valores éticos fundamentais dessa coletividade" (REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T., j. 27/10/2020).

Ao fim, a questão da intolerabilidade relaciona-se com a própria ideia de dano moral individual. Se meras ofensas e aborrecimentos banais não são suscetíveis de indenização, "a mesma prudência deve ser observada em relação aos danos extrapatrimoniais da coletividade"7.

A outra questão a ser analisada diz com os interesses a serem tutelados. Sabe-se que os interesses coletivos são subdivididos em interesses difusos, interesses coletivos stricto sensu e interesses individuais homogêneos (inclusive, conforme art. 81 do CDC). A questão que se coloca é: a lesão intolerável a qualquer desses interesses acarreta dano moral coletivo?

No já citado Recurso Especial n.º 1.819.993/MG, a 2.ª Turma do STJ sustentou que o dano moral coletivo é aquele "de natureza transindividual que atinge classe específica ou não de pessoas". Após, é referido que "na noção, inclui-se tanto o dano moral coletivo indivisível (por ofensa a interesses difusos e coletivos de uma comunidade) como o divisível (por afronta a interesses individuais homogêneos)".

Ocorre que, em momento anterior, a 4.ª Turma do STJ havia decidido que "apenas danos difusos ou coletivos stricto sensu poderiam" acarretar dano moral coletivo, enquanto violações a interesses individuais homogêneos "só rendem ensejo a condenações reversíveis a fundos públicos na hipótese de fluid recovery". Para o Min. Salomão, "a própria legislação prevê consequências bem distintas a cada espécie de interesses e direitos levados a juízo", como alcance da coisa julgada e legitimidade para propositura de ação ou execução. Em razão disso, no entender do Min. Relator, "a violação de direitos individuais homogêneos não pode, ela própria, desencadear um dano que também não seja de índole individual, porque essa separação faz parte do próprio conceito dos institutos" (REsp 1293606/MG, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 02/09/2014). Aparentemente, o Min. Salomão reiterou o entendimento recentemente, conforme noticiado no site do STJ – apesar de ainda não ter sido publicado o acórdão8.

Essas questões demonstram que o tema ainda requer constante investigação. Doutrina e jurisprudência precisam atentar para que a utilização da figura do dano moral coletivo não se torne um "remédio para todos os males"9, com verdadeiro desvirtuamento e banalização do instituto.

*Rodrigo Ustárroz Cantali é doutorando e mestre em Direito Privado pela UFRGS. Associado ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado.

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1 As duas expressões são utilizadas indistintamente pelos Tribunais.

2 Em 2009, por exemplo, a Min. Eliana Calmon referiu "não aceitar" a conclusão do REsp 598.281/MG, por entender "não ser essencial à caracterização do dano extrapatrimonial coletivo prova de que houve dor, sentimento, lesão psíquica" e que "as relações jurídicas caminham para uma massificação e a lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais". REsp 1057274/RS, rel. Min. Eliana Calmon, 2.ª T., j. 01/12/2009.

3 Sobre a evolução jurisprudencial do tema, ver SOARES, Flaviana Rampazzo. O percurso do "dano moral coletivo" na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 76-95.

4 Segundo o Min. Cueva, o dano moral coletivo "possui importantes funções – dissuasória (prevenção de condutas antissociais), sancionatório-pedagógica (punição do ato ilícito) e compensatória (reversão da indenização em prol da própria comunidade direta ou indiretamente)". REsp 1664186/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª T., j. 27/10/2020. Defendendo que o "modelo jurídico do dano moral coletivo (…) não passa de peculiar espécie de pena civil", ver ROSENVALD, Nelson. O dano moral coletivo como uma pena civil. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 119.

5 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 42.

6 MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, Ano 3, n. 9, p. 7073-7122, 2014, p. 7116.

7 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. 4.ed. Salvador: Juspodivm, 2017, v. 3, p. 354.

8 Violação de direitos individuais homogêneos não gera dano moral coletivo, entende a Quarta Turma.

9 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018, p. 44.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

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