Introdução
A tutela de urgência, espécie de tutela provisória, é uma modalidade de tutela processual baseada em cognição sumária. Significa isto que a tutela de urgência é baseada num exame da causa cuja profundidade permite apenas a formação de um juízo de probabilidade acerca da existência do direito material deduzido no processo pela parte a quem a decisão concessiva da medida de urgência aproveita.
Exatamente por conta disso é que o art. 296 do CPC estabelece que as tutelas provisórias, aí incluídas, evidentemente, as tutelas de urgência, podem ser modificadas ou revogadas a qualquer tempo. É que o aprofundamento da cognição exercida pelo órgão jurisdicional, com a vinda de mais elementos de prova, pode levar à verificação de que o direito que, a princípio, parecia provavelmente existir, na verdade não existe, ou não existe nos termos em que, no momento anterior, parecia.
Não se trata, portanto, de uma revogação ou modificação da decisão concessiva da tutela de urgência porque o julgador mudou de ideia, ou por ter ele se arrependido da decisão anteriormente proferida, ou qualquer fenômeno semelhante. O que se tem é uma autorização para que, diante de novos elementos de prova, que levem a um aprofundamento da cognição a ser exercida pelo órgão jurisdicional, se verifique que os requisitos de concessão da tutela de urgência, que em um exame menos aprofundado da causa pareciam estar presentes, na verdade não estão.
Resulta daí a possibilidade de ter-se efetivado uma tutela de urgência e depois se verificar que a parte por ela beneficiada não fazia, na verdade, jus à obtenção de tutela processual. Mas se isso ocorre, então a parte contrária terá suportado a efetivação da tutela de urgência indevidamente, o que pode ter causado danos que precisam ser reparados. Daí a necessidade de examinar como a lei processual regula a obrigação de indenizar os danos resultantes da efetivação da tutela de urgência.
O art. 302 do CPC
Dispõe o art. 302 do CPC o seguinte:
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:
I - a sentença lhe for desfavorável;
II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;
III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;
IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Esse dispositivo trata não só de indicar quem é o devedor da indenização (a parte), mas também aponta os casos em que a indenização pelo prejuízo resultante da efetivação da tutela de urgência é devida. Além disso, indica que essa indenização é devida “independentemente da reparação por dano processual”. Pois estes são os pontos que se pretende, com este breve ensaio, esclarecer.
A responsabilidade civil da parte beneficiada pela tutela de urgência
Em primeiro lugar, é preciso ter claro que o devedor da indenização sempre será a parte que foi beneficiada pela tutela de urgência, e nunca o Estado (empregado o termo aqui, claro, em sentido amplo). E isso se explica não só pela circunstância de ter sido a parte a beneficiada pela tutela de urgência, mas também pelo fato de que a tutela de urgência não pode ser deferida de ofício, sempre dependendo de requerimento da parte interessada para ser concedida. É o que resulta do disposto no art. 299 do CPC, que fala em requerimento de tutela provisória (de urgência ou da evidência).
Fosse admissível o deferimento de ofício da tutela de urgência e certamente haveria, ao menos nos casos em que ela fosse concedida sem requerimento, a ruptura do nexo de causalidade entre a conduta da parte beneficiada e o dano suportado indevidamente pela parte contrária, o que afastaria – ao menos nesses casos, repita-se – a possibilidade de responsabilização daquele que é protegido pela tutela de urgência. Dada a exigência de provocação para que se conceda tutela processual de urgência, todavia, torna-se presente o aludido nexo de causalidade.
Resulta daí, então, a possibilidade de se afirmar que aquele que requer tutela de urgência deve estar consciente do risco que daí resulta. É que, na prática, vê-se que as pessoas postulam a tutela de urgência de forma quase automática, como se esse tipo de requerimento fosse mesmo um requisito indispensável das petições iniciais. Pode acontecer, todavia, de se obter a tutela de urgência e, depois, em razão do modo como se desenvolve o processo, ter-se de indenizar a parte contrária. Assim, aquele que vai a juízo buscar lã pode voltar tosquiado. E raramente se tem notícia de que os advogados advirtam seus clientes desse risco (o que poderia até levar à responsabilização do advogado, por força de direito de regresso, mas isso é tema estranho ao presente ensaio).
As hipóteses de responsabilidade civil por dano resultante da efetivação da tutela de urgência
São quatro os casos em que a parte que foi beneficiada pela tutela de urgência pode ter de responder pelos danos que resultam da sua efetivação.
O primeiro desses casos é o da prolação, após a concessão da tutela de urgência, de sentença desfavorável à parte beneficiada pela tutela provisória. Em outros termos, o que se tem aqui é uma decisão inicialmente proferida, com base em cognição sumária, em favor de uma das partes (a demandante) e, posteriormente à realização de cognição exauriente, e exatamente em função desse exame mais completo e profundo da causa, sua revogação pela decisão definitiva de mérito, que rejeita a pretensão deduzida por aquela mesma parte. Pois neste caso caberá à parte afinal vencida reparar os danos resultantes da efetivação da tutela provisória que, a rigor, nem deveria ter sido deferida. Protege-se, deste modo, aquele que realmente tem razão no plano do direito material (e, por isso, faz jus à tutela processual), em detrimento de quem até aparentava ser titular do direito, mas não verdade não o tem.
Outro caso é o da parte demandante que, beneficiada pela tutela de urgência antecedente, não providencia, no prazo de cinco dias (úteis), os meios necessários para a realização da citação do demandado (como no caso de não ser fornecido endereço para realização da citação, ou não ser efetuado o recolhimento das custas relativas à diligência de citação). Evita-se, deste modo, que a tutela provisória se perpetue indevidamente, impondo-se ao demandante por ela beneficiado uma conduta cooperativa, destinada a permitir o regular andamento do processo.
Terceira hipótese é a de, por qualquer razão prevista em lei, cessar a eficácia da tutela de urgência, como se dá, por exemplo, quando, obtida tutela de urgência cautelar antecedente, não se formula o pedido de tutela definitiva dentro do prazo de trinta dias úteis a contar da efetivação da medida (CPC, art. 308).
Por fim, também responde o beneficiário da tutela provisória pelos danos no caso de a sentença reconhecer a prescrição ou decadência do direito do autor, hipótese que, a rigor, se subsume à primeira das hipóteses aqui indicadas, já que nesse caso se terá sentença desfavorável à parte que fora beneficiada pela tutela de urgência.
A liquidação do dano e sua cumulabilidade com o dano processual
Estabelece o parágrafo único do art. 302 do CPC que a indenização pelos danos resultantes da efetivação da tutela de urgência deverá, sempre que possível, liquidada nos próprios autos. Resulta daí que é efeito da decisão que revoga a tutela de urgência tornar certa a obrigação de indenizar os danos resultantes de sua efetivação. Para que possa o beneficiário da indenização, porém, promover a execução (que sempre deverá basear-se em título representativo de obrigação certa, líquida e exigível), é preciso promover-se a determinação do valor a ser pago.
Essa liquidação se fará, sempre que possível, nos próprios autos do processo em que havia sido deferida a tutela de urgência, através da instauração de um incidente de liquidação de sentença (previsto nos arts. 509 a 512 do CPC), e terá por objeto a determinação do valor a ser pago a título de indenização dos danos materiais e, se for o caso, também de compensação de danos morais.
Nada impede, porém, que se cumule a esses valores os que eventualmente tenham de ser pagos em razão do reconhecimento de que o demandante atuou no processo como litigante de má-fé. E é disso que trata o texto normativo ao afirmar que a indenização será devida "independentemente da reparação por dano processual".
A base normativa para essa outra indenização, então, é o disposto nos arts. 79 a 81 do CPC. E são mesmo indenizações cumuláveis, já que referentes a causas distintas.
Basta pensar no caso em que, em razão de uma tutela cautelar, um bem tenha sido apreendido e, até a sentença de improcedência do pedido, tenha o demandado sido privado de seu uso. Isso, evidentemente, é fundamento suficiente para que o réu seja indenizado pelo dano sofrido. Imagine-se agora que, neste mesmo processo, o autor tenha provocado incidentes manifestamente infundados, como seria o caso de arguir suspeições ou impedimentos que evidentemente não ocorrem, ou dar causa injustificadamente ao adiamento de audiência. Isto, por si só, e independentemente de ter sido ou não deferida a tutela de urgência, também é razão para a condenação da parte a reparar os danos sofridos pela parte contrária. Resulta daí que essas verbas indenizatórias, porque resultantes de causas distintas, e tendo por fim a reparação de danos diferentes, podem ser cumuladas.
Promovida a liquidação dos valores a serem pagos, será possível prosseguir-se nos próprios autos, mediante a instauração da fase de cumprimento de sentença, intimando-se a parte condenada a pagar o valor apurado em liquidação de sentença para que efetue o pagamento em quinze dias úteis, sob pena de multa de dez por cento, honorários advocatícios de dez por cento, e prosseguimento do procedimento executivo.
Conclusão
O tema da responsabilidade civil pelo dano resultante da efetivação de tutela de urgência tem sido negligenciado pelos estudiosos do Direito Civil e da Responsabilidade Civil. Provavelmente isso se dá por estar a matéria tratada no Código de Processo Civil, de que resulta um certo desconhecimento sobre o assunto. Basta ver como é raro encontrar-se, na prática, algum acórdão que tenha tratado especificamente do tema. Basta dizer que, com quase cinco anos de vigência do CPC/2015, só se encontra um acórdão do STJ que tenha tratado especificamente do tema à luz das disposições da vigente codificação (o REsp 1770124/SP).
Há, porém, um aspecto que deve levar os processualistas a se preocuparem com o tema (embora seja ele fundamentalmente, como visto, de direito material). É que a responsabilidade civil por dano decorrente da efetivação de tutela de urgência se insere, juntamente com outros institutos, na construção de um modelo de litigância responsável.
É que não se pode mais admitir – especialmente em um país com tanta litigiosidade, de que resulta um número exageradamente alto de processos judiciais instaurados – que, em nome do caráter abstrato do direito de ação e da garantia constitucional de acesso à justiça, simplesmente se admita a ideia de que é possível a qualquer um, em qualquer caso, ajuizar sua demanda, mesmo não tendo qualquer direito, e daí não resultar qualquer consequência. É preciso que haja o reconhecimento de riscos na atividade processual das partes. A imposição do custo econômico do processo a quem lhe dá causa indevidamente, com sua condenação a pagar as despesas processuais e honorários advocatícios, evidentemente, se insere neste sistema, já que impõe à parte um cálculo de custo-benefício e uma necessidade de análise dos riscos que o processo pode gerar. Mas é preciso ir além disso. A majoração de honorários advocatícios em razão da sucumbência recursal tem sido matéria a receber o devido destaque quando o tema é a litigância responsável. Mas também a responsabilidade pelos danos resultantes de atividades anticooperativas ou que resultem da má-fé, assim como o dever de indenizar danos resultantes da obtenção de tutelas provisórias que posteriormente não sejam confirmadas ou, em razão de desídia do seu beneficiário, acabem por ter sua eficácia extinta, se inserem nesse modelo. E é preciso, cada vez mais, impor às partes essa exigência de litigância responsável como elemento integrante do modelo cooperativo de processo civil que se constrói a partir do princípio constitucional do contraditório e de seu corolário, o princípio da cooperação, expressamente previsto no art. 6º do CPC. Só assim se poderá inserir o processo jurisdicional num contexto de construção de justiça civil para o Brasil, essencial para o desenvolvimento nacional.
*Alexandre Freitas Câmara é doutor em Direito Processual (PUC-Minas). Professor adjunto de Direito Processual Civil da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. Membro do IBERC, do ICPC, do IBDP, do IIDP e da IAPL. Desembargador no TJ/RJ.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil